Por Aldo Fornazieri, Jornal GGN –
Diversos setores de esquerda vêm manifestando uma recorrente incompreensão acerca do tema da corrupção. Essa incompreensão tem dois eixos: um é de natureza história e empírica; o outro, de natureza conceitual. O eixo histórico-empírico se relaciona ao fato de que a esquerda não aprende com os acontecimentos: os grandes reveses que a esquerda sofreu no Brasil e na América Latina, de modo geral, envolviam denúncias de corrupção, embora não só. Já o eixo conceitual se deve à identificação que a esquerda faz entre combate à corrupção e moralismo de direita, descartando qualquer abordagem moral e ética do tema.
As circunstâncias que levaram ao suicídio de Getulio Vargas, ao golpe militar de 1964, à maior crise do governo Lula (mensalão) é à crise do governo Dilma (Petrobrás) apresentam uma clara e constante imbricação com denúncias de corrupção. Na Argentina, no Chile e agora na Venezuela, as dificuldades de governo de esquerda também estiveram ou estão relacionadas com denúncias de corrupção. Não resta a menor dúvida de que os militares e a direita política potencializaram e potencializam as denúncias e as transformaram em combustível para intervenções armadas contra governos eleitos. Se nada justifica as intervenções militares, também não restam dúvidas de que, de uma forma ou outra, os governos de esquerda foram lenientes e se deixaram envolver por práticas corruptas.
O trágico é que as esquerdas não aprenderam nada com os duros reveses da história. Continuam caminhando para derrotas pelos mesmos caminhos equívocos que derrotaram seus companheiros de ideias no passado recente. Certamente, a corrupção não foi a única causa da derrocada de governos de esquerda. Uma série de incompreensões sobre economia também foram razões centrais dos fracassos. A corrupção das esquerdas em nada alivia a direita: os regimes militares, além das torturas, assassinatos e perseguições, invariavelmente acabaram sob a acusação de corrupção. Igualmente, os partidos liberais ou de centro que estiveram ou estão no poder também não escapam de graves acusações de corrupção.
O Conceito de Corrupção
O conceito de corrupção não é unívoco. Nem mesmo em Maquiavel, que a identificou como o principal mal das repúblicas, o termo aparece com um sentido único. Ela não se restringe a um regime político ou a um tipo de governo: pode ocorrer nas monarquias, nas aristocracias e nas repúblicas e pode afetar os governos dos príncipes, dos aristocratas e do povo. Ela pode ser entendida como a corrupção das leis, dos princípios, dos costumes, da eficácia governamental, das instituições etc. O seu sentido político mais geral se refere à preeminência do bem privado em detrimento do bem público comum. Todo ato de desvio de recursos públicos se enquadra nesta última acepção. A corrupção privada ou social incide em várias dessas acepções.
Uma república corrompida – povo corrompido – segundo Maquiavel é de difícil reordenamento. Como regra, a corrupção do povo (da sociedade) é conseqüência da corrupção dos governantes. A forma de sanear a república corrompida consiste na reintrodução das boas leis e da boa ordem – tarefa que cabe a um líder de extraordinária virtù. A coisa se complica porque quando a sociedade está corrompida, dificulta também o surgimento de um líder de tal envergadura. Enfim, a restauração das boas leis, a promoção da justiça, a religiosidade e os bons costumes são mecanismos imprescindíveis para a restauração da virtù do povo. Para Maquiavel, o combate à corrupção envolve questões técnicas (boas leis e boas instituições), questões políticas (controles e participação ativa dos cidadãos) e questões morais (qualidades e virtudes dos líderes e do povo).
Já a república bem ordenada, para evitar a corrupção, precisa ativar a participação do povo, promover o expurgo dos maus de forma recorrente, renovar os princípios e fundamentos e punir impiedosamente os culpados. O Estado não deve mostrar nenhuma misericórdia para fazer valer a lei. Os mais altos magistrados que se corrompem devem ser rigorosamente punidos para que isto sirva de exemplo e infunda, de forma generalizada, o temor do castigo. Sem a inclemência das leis e a certeza da punição toda república será carcomida em suas próprias entranhas. O exemplo dos líderes é fundamental para que o povo não se corrompa. Os líderes devem comportar-se como verdadeiros heróis. Eles devem ser de “tal reputação e de tal exemplo, que os homens bons desejam imitar e os maus se envergonham de levar uma vida contrária a eles”, diz Maquiavel.
A Corrupção e a Moralidade
Existem muitos equívocos interpretativos acerca de como Maquiavel estabelece a relação entre a ação política e a moralidade. O primeiro a ser desfeito consiste na tese de que a política, para o escritor florentino, não seria “nem moral e nem imoral, mas amoral”. Na verdade, um dos grandes feitos teóricos de Maquiavel consiste em ter descoberto que a política tem uma moral própria, diferente da moral do senso comum ou da moral cristã. A moral própria da política é avirtù (as qualidades específicas do príncipe no caso da monarquia e, do povo, no caso da república). A existência da moral própria da política implica que, muitas vezes, para promover o bem público, é preciso levar a efeito uma ação que, julgada pela moral comum ou cristã, seria condenável. A moral política é plena de paradoxos e ambigüidades.
Mas Maquiavel é muito mal compreendido, pois o seu metro, tanto no principado quanto na monarquia, sempre é a promoção do bem público, o exercício do bom governo. Assim, nunca se deve contrariar a moral do senso comum e a moral cristã sem uma clara justificativa que seja capaz de resultar em bem público. O fato de dizer que muitas vezes se deve praticar o “mal” para produzir o bem nunca significa que se deve praticar o mal para alcançar um objetivo qualquer e nem mesmo significa dizer que os fins justificam os meios. É por isso que Maquiavel afirma que o governante deve aparecer e ser tido “aos olhos e aos ouvidos dos outros, todo piedade, todo fé, todo integridade, todo humanidade, todo religião, com muito cuidado para que nunca escape de sua boca expressões que não traduzam essas cinco qualidades”.
Aqui está o ponto. Embora sejam diferentes, a moral da política e a moral do senso comum não são opostas. Relacionam-se em suas ambigüidades e paradoxos. Somente nos casos extremos elas se opõem nos meios, mas nos fins também quer o bem público – fim específico da moralidade política. A corrupção contraria as duas morais. Na normalidade da política elas devem andar lado a lado. É precisamente isto o que a esquerda não entende. Não entende porque não pode entender. Não pode entender, pois capitulou, na prática, à tese de que os fins justificam os meios.
Para Maquiavel, a relação entre meios e fins deve ser medida pelos resultados, pelas conseqüências. O homem comum julga o político pela moralidade comum. Por isso, o político jamais deve desprezá-la. E quando as ações dos políticos contrariam os fins relativos à moral política, que consistem na produção do bem comum, e também os fins da moral comum, que são a honestidade, a integridade etc., tem-se o colapso e o apodrecimento do sistema político da república. É esta situação que o PT ajudou construir e que não consegue compreender e explicar para a sociedade, circunstância que o deixa encurralado e na defensiva ante os ataques da direita.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política.