Por Milagros Pérez Oliva, publicado em El País –
A alemã Carolin Emcke, filósofa e repórter de guerra durante dez anos, analisa como a xenofobia tenta monopolizar o discurso político
A jornalista e filósofa alemã Carolin Emcke (Mülheim an der Ruhr, 1967) vem há muitos anos observando e refletindo sobre diferentes formas de violência que condicionam nossas vidas. Aluna de Jürgen Habermas, o pensador vivo mais influente do mundo, trabalhou como repórter de guerra para a Der Spiegel entre 1996 e 2006, em lugares como o Afeganistão, Kosovo e Iraque. Seus livros Gegen den Hass (“Contra o ódio”) e Wie Wir Begehren (“Como desejamos”), ambos inéditos no Brasil, são uma referência nos debates sobre a ascensão de uma extrema direita racista e xenófoba que tenta monopolizar e condicionar o discurso político. Emcke proferiu nesta semana uma conferência dentro do ciclo Feminismos, do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona (CCCB).
PERGUNTA. Em sua obra você aborda a relação entre poder e violência. O que mais a preocupa em relação a esta questão?
RESPOSTA. Preocupa-me a força que está adquirindo uma ideologia autoritária, antimoderna e baseada em dogmas de pureza que constroem a realidade como se fosse um perigo, uma ameaça. Esta ideologia está mudando o discurso político no sentido de normalizar o racismo, o antissemitismo, o antifeminismo, e contribui para desumanizar as pessoas ou coletivos que mais tarde são vítimas de atentados da extrema direita. O problema é que, quando eles ocorrem, focamos o debate na violência e despolitizamos o contexto ideológico que a torna possível. Não só temos que lutar contra o extremismo quando é violento, mas também contra a ideologia que leva à violência.
P. Essa ideologia poderia chegar a ser hegemônica como foi na primeira metade do século XX?
R. Nos EUA ela já está na Casa Branca, no Brasil é sustentada pelo presidente, a encontramos em muitos países europeus e agora também na Espanha, com o Vox. Não está na periferia da sociedade, e sim no centro.
P. Que papel você acha que os meios de comunicação desempenham na expansão desse discurso?
R. Eles se tornaram o seu principal instrumento de propaganda porque não entendem sua estratégia. A extrema direita não tem nenhum interesse em discutir nem em ganhar nenhum debate. A única coisa que ela procura é visibilidade. E isso é o que lhes proporciona o mau jornalismo que recorre aos debates políticos para ganhar audiência. A doença da televisão atual é confundir neutralidade com cinismo. O problema desses programas é que são apenas um simulacro de debate. E não é verdade que todas as opiniões valham igual. Há opiniões que estão apoiadas em mentiras. O que a extrema direita procura é que não se distinga entre verdade e mentira.
P. Na Espanha, a extrema direita ataca com especial virulência o feminismo. Usa inclusive o termo “feminazis”. Por que você acha que ela faz isso?
R. O relevante dessa ideologia é que trata a sociedade como um corpo e apresenta cada diferença religiosa, de identidade ou de sexualidade como se fosse uma contaminação do corpo, uma doença. Uma das primeiras leis dos nazistas na Alemanha foi proibir que os judeus pudessem nadar nas piscinas públicas. Essa ideia de contaminação, de marcar o “outro”, é terrível, mas também me parece um sintoma de fragilidade. Muitos homens se sentem vulneráveis perante o avanço do movimento feminista. Só a ideia de que precisam aprender algo, mudar algo, já os altera, e reagem com infantilidade.
P. Mas também há uma questão de poder, não acha? O que incomoda no movimento Me Too é que tenha conseguido, através da denúncia pública, o que não se conseguia nos tribunais.
“A extrema direita tem sua utopia. É regresiva, mas é uma utopia. Os conservadores e os socialdemocratas não têm nenhuma”
R. Claro. O problema é que temos um radar para o racismo e para o antissemitismo, mas não temos um radar muito sensível para o ódio às mulheres. E acredito ser necessário que esse radar exista. O Me Too é um ataque, mas não contra os homens em geral, e sim contra a injustiça e a desigualdade. É tão evidente que não se pode nem se deve aceitar a violência em uma relação! Isso não é negociável. O que as mulheres conseguiram com estes protestos é mudar o alvo da vergonha. Que quem tem que sentir vergonha é quem comete o abuso. A pessoa que se defende não deve se sentir envergonhada.
P. Mas se só as mulheres reagirem diante desses ataques ou quando ocorre um crime machista, isso não alimenta a ideia de corpo estranho?
R. Sim. Temos que conseguir que os homens lutem contra o antifeminismo; é uma questão de rechaço à violência, de justiça, de direitos humanos. Não quero viver em uma sociedade que deixa judeus, homossexuais e mulheres à própria sorte.
P. Como vê o futuro da Alemanha e da Europa depois de Merkel?
R. O problema dos últimos anos foi a falta de desejo político. Parece que só a extrema direita tem uma utopia. É uma utopia regressiva, de morte e destruição, mas utopia. Conservadores e social-democratas não têm nenhuma. Se acham que escorregando para o discurso da extrema direita vão ganhar, estão enganados. Quando esse discurso se difundir, votarão no original, não na cópia. Não se pode organizar uma paixão sem utopia. Os Verdes a têm. Eles foram imunes ao racismo e sempre se mantiveram fiéis ao discurso universalista dos direitos humanos. Já não se veem mais como um partido fundamentalmente urbano. Acredito que qualquer Governo que existir na Alemanha depois de Merkel incluirá os Verdes.
P. O que opina dos rumos que está tomando o conflito territorial na Espanha? Viu as imagens dos distúrbios em Barcelona?
R. Sim. Não gosto das manifestações violentas, mas também vi imagens de agressões policiais preocupantes. A polícia é um instrumento da democracia e deve ser treinada para reduzir a tensão. Com relação ao problema político de fundo, não acredito que se possa resolver com sentenças. Pode ter uma dimensão jurídica, mas é um problema político. Acho difícil de entender por que, havendo oportunidades de chegar a um acordo, não há via de diálogo.