A face precária da “capital do calçado”

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Em Franca (SP), mulheres relatam a brutalidade da indústria calçadista. A remuneração é baixíssima. Jornada estende-se madrugada adentro e crianças precisam ajudar mães na costura de sapatos. Prefeitura faz vista grossa

De CartaCapital, compartilhado de Outras Palavras




Foto retirada do site Carta Capital

Por Fashion Revolution, na Carta Capital

Em bairros de baixa renda de Franca, no interior paulista, mulheres costumam ser vistas costurando sapatos em “x”, seja na fila de um posto de saúde ou em frente às suas casas. Elas atendem uma indústria de 388 fábricas, que segundo levantamentos recentes do setor, movimenta cerca de US$ 92 milhões (R$ 455 milhões) por ano.

A cada par, essas operárias faturam uma média de R$ 0,90 a R$ 2. Para chegar ao final do mês com um salário mínimo, se desdobram em turnos de até 18 horas, de segunda a segunda. Bem-vindo a capital nacional do calçado masculino.

A indústria calçadista de Franca cresceu junto com a industrialização do país, especialmente nas décadas de 60 e 70. Em 2022, produziu cerca de 22,4 milhões de pares e tem projeção de fechar 2023 com 34,3 milhões. A maioria das vendas (80%) é para o mercado interno, segundo a prefeitura. A tradição calçadista é vista com orgulho pelos munícipes, conta Letícia*, integrante de uma ONG da cidade. Pouco se fala, porém, das as condições de trabalho. “Todo mundo sabe o que acontece e todo mundo acha natural”, conta. “É muito normal ver mulheres costurando na frente de casa. E as crianças, as filhas, em especial, trabalhando junto”.

É o “padrão”: começar a trabalhar às 7h e só parar entre meia-noite e uma da manhã. Foi o que Letícia notou, ao entrar na casa das mulheres e ouvi-las. Através da escuta afetiva, ela pôde se inteirar mais dessa realidade. “São histórias muito abafadas, inclusive por elas mesmas.” explica. As jornadas extenuantes também trazem sequelas físicas: “Fortes dores nos braços, traumas, por ter costurado sapato até de madrugada.”

A assistente social Bruna* reforça que o trabalho, seja na fábrica, seja em casa, não é valorizado. Ela própria já foi uma destas funcionárias, e relembra: “Não tinha salário bacana, nem oportunidade.” A mulher que trabalha com o pesponto – ponto de costura feito em máquina – permanecerá como costureira pesponto, a coladeira idem.

Entre o desrespeito e baixo valor pago, há ainda o sofrimento de muitas mães. É o caso de Camila*, que engravidou aos 13 anos e começou a costurar aos 14 anos. Hoje, aos 40, a rotina é de trabalhar de segunda a quinta-feira, sexta “folgar” para limpar a casa, e continuar no sábado e domingo. Ela trabalha das 7h até a meia noite. “Costuro o dia inteiro, faço o almoço pros meus meninos maiores que vem almoçar, lavo os pratos e pego de novo. Sapato é isso. Não sou só eu, você pode perguntar para todas que costuram”.

Camila trabalha com a costura manual, com agulha e dedeira, em formato de “x” – a mais comum na cidade. Há seis anos, ela trabalha para a mesma empresa e, há quatro, recebe R$ 2 por par. A empresa deixa em sua casa uma média de 10 a 15 “fichas” (saco com os sapatos para fazer) com 30 pares.

Junto com a sua filha – que também ajudava na costura quando menor de idade e hoje, mesmo com emprego formal, segue auxiliando na produção à noite – Camila produz cerca de 45 a 60 pares por dia. “Eu faço 60 no domingo, 60 na segunda-feira, aí de terça pra quarta vai caindo [a produção], porque a mão vai ficando ruim”, explica. A família divide as contas para conseguir fechar o mês. Camila fica com o aluguel de R$ 1.100, mas para conseguir pagar essa fatia, ela precisa produzir 550 pares. “Sapatos, se você não pegar e esquecer tudo, não vai”, afirma.

Bruna diz que a produção é abusiva por parte das empresas. “A empresa deixa 100 pares com aquela mulher, se precisar de mais 100, ela não vai pensar, vai levar a noite para essa mulher e falar ‘a gente precisa desse daqui, dá pra você adiantar?’”. Com medo de não receber mais trabalhos caso digam não, as mulheres passam a produção na frente de qualquer compromisso.

Junto com a mulher, a criança

O trabalho infantil, em Franca, vive os mesmos dilemas comuns a setores de alta informalidade, vulnerabilidade e pobreza: impera a máxima de que é melhor uma criança em casa trabalhando do que na rua, usando drogas. Existem registros de trabalho infantil na indústria calçadista de Franca desde a década de 80.

Bruna* lembra que, uma vez que uma mulher, mãe, é submetida ao trabalho informal e precarizado, a criança acaba entrando na conta. “As mulheres que eu conheço acabam passando a costura para os filhos, porque aí chega a hora da janta e o sapato não pode ficar parado, então, enquanto ela vai cozinhar, a criança costura, ou vice-versa”. Letícia* completa: “Há crianças que não conseguem pegar numa caneta, escrever, por conta das dores”.

Para ajudar uma delas, Letícia arrecadou recursos para que a garota fizesse um curso, além de dar uma cesta básica para a família. Só assim, relata, uma tia aceitou que ela parasse de trabalhar. “Eu não posso chegar e falar ‘ó, ela tá costurando, não pode’. É bem desafiador.”.

Analisando a questão do trabalho infantil, Bruna relaciona a frustração juvenil com a pobreza e o possível envolvimento com drogas. “A criança tem sonhos… de ter o tênis novo, ir ao cinema. Infelizmente, aquela mãe se desdobra em cima do sapato e o dinheiro não sobra”, narra. “A criança vai chegar a uma idade que vai ficar revoltada por não ter tido o tempo de ser criança e ter que enfrentar o mundo adulto, sempre com a vontade de ter. É onde, às vezes, ela encontra oportunidades erradas para conseguir o que quer”.

O ideal, destaca a assistente social, é que as próprias empresas abram as portas para a ação da assistência social nestes esses espaços. Primeiro, é fundamental buscar a mapear as mulheres que trabalham na informalidade na indústria calçadista de Franca, assim como fornecer capacitação e rodas de escuta.

Uma barreira para fazer uma cooperativa, pondera Letícia, é que muitas delas irão perder o benefício que recebem do governo. A saída, ela vê, é analisar caso a caso, para que algumas consigam se tornar MEI, e que as que ainda assim sigam na informalidade, tenham condições de trabalho melhores.

Procurado pela reportagem, o presidente do Sindifranca, José Carlos Couto, afirmou não ter dados sobre informalidade no setor, mas diz que as empresas ainda não se recuperaram da pandemia – foram fechadas cerca de 60 fábricas no período.

A situação tributária, tanto no estado quanto no âmbito federal, também é um entrave para os empresários do ramo, bem como a competição com mercado internos (em Minas Gerais) e externos (Indonésia e China).

Tentamos falar com a Prefeitura de Franca para entender como a prefeitura lida com a informalidade, apoio social a mães e menores de idade que trabalham na indústria. A Prefeitura se limitou a responder apenas o seguinte: “a Secretaria de Ação Social informa que não há registros de trabalho infantil nas indústrias calçadistas de Franca”.

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