Por Genivaldo Neiva, juiz de Direito, em Justificando –
A leitura do livro de Carl Hart – Um preço muito alto, a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas – [1] é de fundamental importância para compreensão do problema das drogas tornadas ilícitas e da violência causada pela política de guerra às drogas.
Um pequeno exemplo sobre a importância da educação parental nos incomoda e convida à reflexão:
“Vários outros estudos confirmam essas constatações no que diz respeito ao impacto da educação parental, ao estilo de comunicação com os filhos e ao vocabulário no aprendizado precoce da linguagem e na preparação para a escola. Fatores menos óbvios, como a exposição das crianças a um vocabulário amplo ou restrito e a diferentes intensidades de estímulo ou desestímulo linguístico podem influenciar muito mais seu futuro que velhos e conhecidos bodes expiatórios, como as drogas” (Pg. 41).
Partindo de nossa experiência com adolescentes dependentes ou usuários de drogas consideradas ilícitas, passamos a perceber como são determinantes na vida desses usuários aspectos como os citados pelo cientista. Contudo, as drogas continuam a ser o “bode expiatório” que povoa o imaginário das pessoas como a causa de todos os males sociais. Pais e mães muitas vezes se esquecem da relação com os filhos, de beijos e abraços, da conversa franca, do domingo de futebol no estádio, do passeio de bicicleta, de montar quebra-cabeça e de tantas coisas simples – mas com forte simbolismo para a formação de um adolescente. Daí, inicialmente, entregam os filhos à televisão e outras tecnologias; depois, entregam à escola e, por fim, à rua e à polícia. Como resultado, tempos depois, já na adolescência, lamenta-se e culpa-se o destino pelo fato do filho ter se tornado um usuário problemático.
O tabu e o preconceito apenas agravam a situação. De início, o esforço hipócrita de esconder de si mesmo o fato do filho ser usuário; em seguida, a repressão pura e simples, o castigo como forma de remendar erros do passado e, por fim, como nada disso resolve o problema, o desespero e o maior de todos os erros de buscar soluções estapafúrdias como a internação compulsória ou o chamamento da polícia.
Certa vez, ao ser procurado por um pai em desespero que acabara de descobrir que o filho usava maconha, e depois de muita conversa sobre a importância de encarar o problema e conversar francamente com o filho, cheguei ao “absurdo” de lhe propor a permissão para que o filho pudesse usar em casa para evitar o contato com as “bocas de fumo” e a probabilidade de ser preso ou se envolver em problemas de maior gravidade. Depois de me olhar incrédulo, meu interlocutor refletiu por alguns instantes e, meio a contragosto, terminou concordando que usar em casa seria menos perigoso do que na rua. Esse rapaz, pelo que sei, continua usando e agora está trabalhando e vai ser pai em breve.
Sobre isso, há outra importante informação no livro do Carl Hart que nos desconcerta e comprova a ineficácia das medidas privativas de liberdade para adolescentes infratores, nos moldes que conhecemos no Brasil, e sua a relação com a reincidência:
“Os pesquisadores constataram que, independentemente da gravidade do delito inicial, os adolescentes encarcerados tinham três vezes mais probabilidade de voltar a ser encarcerados quando adultos, em comparação com os que não haviam sido encarcerados por delitos semelhantes. O fato de terem sido trancafiados não os deteve, pelo contrário, forçou-os a conviver com criminosos e possivelmente ensinou-lhes mais sobre outras maneiras de cometer diferentes tipos de crime, preparando-os para voltar à carceragem” (Pgs. 134 e 135).
Este dado nos revela, assustadoramente, que a punição de adolescentes através da privação da liberdade, ao contrário do que possa parecer, não serve como lição para um futuro sem prática de crimes, mas aprendizado para outros crimes. Assim, ao contrário do velho senso comum de que a punição evita crimes futuros e que a impunidade evitaria a reincidência, é preciso compreender que o modelo punitivo/prisional termina causando mais problemas do que soluções. Na verdade, nenhum jovem adulto deixa de praticar algum delito por ter se recordado da experiência da privação da liberdade. Não existe uma lógica do tipo: “Não vou abordar essa pessoa e lhe tomar o celular, pois posso ser preso por isso e já sei como é terrível permanecer em privação da liberdade”. As causas da criminalidade, portanto, passam longe disso e estão muito mais relacionadas às condições sociais de cada adolescente. Neste sentido, o que esperar de um jovem que cumpre uma medida de internação e, agora livre, retorna sem lenço e sem documento para a mesma vida que levava antes? Agora, além de todos os problemas de antes e que lhe levaram à punição, é um ex-interno, ou seja, sua vida será sempre um inferno.
O pavor do crack e a ideia de que há uma forte epidemia que leva à formação de uma legião de “nóias” e zumbis pelas ruas, uma verdadeira horda de delinquentes e malfeitores, parece não se concretizar com tanta força prevista. Evidente que o crack, assim como qualquer droga, seja lícita ou ilícita, pode causar problemas à saúde do usuário, mas a epidemia sem controle e a violência apocalíptica não aconteceu por causa do crack. Não se tem pesquisas atualizadas sobre o uso de crack no Brasil, mas a última pesquisa da Fiocruz (2013) apontou que menos de 1% da população faz uso do crack. Muito abaixo do imaginado e muito inferior aos usuários de cocaína em pó e maconha [2]. O que se quer dizer com isso é que o problema não se resume ao surgimento de novas drogas no mercado, pois ainda vão surgir várias, mas às condições de vida de uma população vulnerável a essas novas drogas.
Nesse sentido, conclui Carl Hart:
“Não foi ele (o crack) que criou o mundo de traficantes, prostitutas e viciados celebrado por rappers, nem a economia subterrânea que eu sempre conhecera. Tratava-se a penas de uma inovação de marketing que vinha adicionar um novo produto ao mundo das drogas. A farmacologia da droga não gerava excesso de violência. Entretanto, sempre que uma nova fonte de lucro ilícito é introduzida, a violência aumenta, até se definirem e preservarem os territórios de venda, e em seguida decai, uma vez demarcado o território e estabilizado o mercado” (Pgs. 184 e 185).
Exatamente isso percebemos quando conversamos com jovens usuários de crack que cometem atos infracionais: não é a composição do crack (que é a cocaína em outro formato) que causa rápida dependência ou a violência, mas a presença do crack apenas potencializa uma realidade pré-existente, ou seja, o crack encontra vastíssimo campo em um modelo desumano e segregador das cidades dos suntuosos shoppings centers e periferias abandonadas, bem como de um modelo de sociedade terrivelmente desigual em que pouquíssimos detém quase toda a riqueza nacional em detrimento da miséria e abandono de milhões. Na verdade, não se compreenderá jamais o problema do crack e outras drogas sem compreender a alma humana e o modelo de sociedade em que se vive.
Por falta dessa compreensão, continuamos aplicando um modelo de política de “guerra às drogas” que prende, marginaliza e mata a juventude pobre e negra desse país, na ilusão de que assim estaremos livrando nossos filhos do terrível demônio que é o uso de drogas. Na verdade, estamos apenas sendo cúmplices da violência, criminalidade, encarceramento e mortes de milhares de jovens desse país, que são muito mais vítimas de um sistema injusto do que causadores dessa violência. São, portanto, muito mais clientes do sistema de assistência social do que clientes do sistema de justiça criminal.
Desnudos da hipocrisia, do medo e do preconceito, sem dúvidas, teremos muito mais condições de compreender o problema das drogas e de propor mudanças. Sem qualquer sombra de dúvidas, o primeiro passo é compreender que a atual política de “guerra às drogas” é um verdadeiro fracasso e a humanidade se envergonhará dela e terá remorsos da cumplicidade com uma política que só encarcera e mata pobres, jovens e negros. Em segundo, é preciso entender, sem traumas, que drogas sempre fizeram parte da vida da humanidade e um “mundo sem drogas” é apenas um mote inatingível para manter a atual política. Por fim, precisamos visitar e dialogar com as experiências de descriminalização e de legalização que vivenciam outros países e, sem hipocrisia e preconceitos, construirmos juntos uma nova política de drogas para este país, que passa, necessariamente, pela legalização da produção, distribuição e consumo de drogas.
Drogas são substâncias encontradas em plantas ou fabricadas em laboratórios. Existem porque os homens existem e, enquanto seres vivos pensantes e condenados à liberdade, sempre irão fazer uso de alguma substância para enfrentar os dissabores da vida, fugir de uma realidade cruel ou, simplesmente, sentir prazer. Nada disso, em conclusão, combina com proibição, repressão, prisão ou morte.
Gerivaldo Neiva é Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil da Leap – Law Enforcement Against Prohibition (Agentes da Lei contra a Proibição).