A Febem não morreu

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Por Lu Sudré, publicado em Brasil de Fato – 

Trabalhadores e ex-internos denunciam violência cotidiana e afirmam que instituição “só mudou de nome”

Dezembro de 2018. Numa sala de 25 metros quadrados, 66 adolescentes são espancados por agentes da Fundação Casa da unidade Casa Nogueira, do Complexo Raposo Tavares, zona oeste de São Paulo. Após a sessão de espancamento, cinco deles precisaram levar pontos na cabeça.

Oito meses depois, em agosto de 2019, um jovem de 16 anos perde o baço e parte do pâncreas após ser espancado por dois funcionários da unidade de São José dos Campos, no Vale do Paraíba, sudeste do estado.




Os casos recentes de violência nas unidades da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente remontam o ambiente da antiga Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo (Febem), extinta em 2006 justamente por seu histórico de violência contra menores, conflitos e rebeliões.

Criada em 1976 para atender adolescentes em conflito com a lei, durante décadas a Febem foi palco de levantes e alvo de denúncias que ganharam o noticiário nacional e internacional entre o fim da década de 1990 e início dos anos 2000. Trinta anos após sua criação, em 22 de dezembro de 2006, o então governador Cláudio Lembo sancionou a lei 12.469/06, que criou a Fundação Casa.

“Era o início de uma nova história”, registra o site oficial da instituição.

O primeiro capítulo da “nova história” se deu com a criação de unidades no interior que descentralizaram os complexos da capital paulista. A reestruturação tinha como propósito o cumprimento das medidas socioeducativas em conformidade com os direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Uma tentativa de desvencilhar-se da imagem manchada da Febem.

No entanto, a política de contenção de rebeliões, assim como mudanças metodológicas e organizacionais, não vieram acompanhadas da interrupção da violência contra os adolescentes de 12 a 21 anos internados nas 143 unidades espalhadas pelo estado.

Os casos de agressão seguem se perpetuando pelos corredores e portões da Fundação Casa como se fossem uma herança da Febem, segundo funcionários e ex-internos ouvidos pelo Brasil de Fato. Eles aparecem nesta reportagem com nomes fictícios.

Na memória de Matheus, que ficou internado por 1 ano e 4 meses na Casa Vila Guilherme, no bairro da Vila Maria, os episódios de violência surgem com frequência.
“Via muito funcionário agredindo e dando paulada. Já vi menino tomar paulada no tornozelo, no pé, de no outro dia nem conseguir andar. Tudo isso eu via e guardava na minha mente: ‘Eles vão fazer isso comigo’”, conta.

Em liberdade há mais de um ano, Matheus descreve um ambiente hostil e militarizado, no qual os jovens são orientados a permanecer de cabeça baixa em grande parte do tempo.

“Lembro de um menino que não queria ficar na tranca [isolamento por período indeterminado]. Aí o funcionário deu um rodo (rasteira) e chegou até a algemar. Deu um monte de bicuda, chutou a cara dele. Qualquer coisinha é chute, paulada, tapa e deixar no castigo. Eles já chegam assim: ‘Vai caralho, anda nessa porra’. Como se fossemos lixo”.

Hoje Matheus tem 20 anos e trabalha como assistente administrativo. Ele acredita que o esforço para implementação das medidas socioeducativas se perde no momento em que ocorre a primeira agressão.

“Se não fosse esse jeito de tratar a gente, seria até tranquilo para tirarmos os dias e refletirmos o que queremos da nossa vida. Lá tem bastante coisa pra distrair a mente. Tem a escola… Mas não adianta nada, porque você apanha. Chega no dia da visita e fala pra sua mãe, não dá nada. Tem juiz que fala com você, aí você diz que fulano está batendo nos meninos, mas o juiz não faz nada. Os funcionários ficam sabendo que falaram deles pro juiz, chega lá dentro e batem de novo nos meninos”.

Com duas passagens pela Fundação – a primeira de dez meses na Casa João do Pulo e a segunda de 1 ano e 8 meses na Casa Paulista – as histórias que Lucas narra não diferem das memórias de Matheus.

Ele relata que a violência era a resposta padrão para resolver qualquer questão. Por exemplo, brigas entre os internos.

“Levavam eles para salas onde a gente estudava e eles ficavam de castigo um, dois dias. Eles iam lá ‘conversar’ com os meninos e batiam. Ouvíamos os murros. Eles pegavam os meninos e jogavam na parede, então dava pra ouvir bastante”, relembra Lucas, morador de São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo.

Atualmente com 21 anos, o jovem trabalha de segunda a sexta com telemarketing e de fim de semana como motoboy. Sonha em ser psicólogo e fala sobre isso com empolgação. Mas quando o assunto é a Fundação Casa, as marcas da violência atravessam sua voz.

“Tinha um menino de São Bernardo que o funcionário quebrou o maxilar dele. Ele teve que comer papinha. Não conseguia comer a mesma comida que a nossa. A ocorrência que foi aberta diz que ele foi pra cima do funcionário e o funcionário tentou conter ele, ele escorregou e caiu, bateu o maxilar em uma mesa. Mas não foi isso que aconteceu. Nunca era isso”.

“Tenho amigos que estão lá. Converso com a mãe deles. É o mesmo procedimento, não muda. As técnicas são muito coniventes com os casos de agressões. Já ouvi de psicóloga que se eu fizesse algo de errado, ia ser punido, porque era o que eles achavam melhor”, acrescenta.

Apesar do ambiente hostil, Lucas orgulha-se de ter lido 34 livros durante a segunda internação. Pegou gosto pela leitura e já participou de palestras e debates públicos sobre o ECA, espaços onde pode perceber de forma ainda mais nítida as contradições da Fundação Casa.

“É muito frustrante tudo que vivemos lá. Tudo bem, não estou mais lá. Mas e o sentimento de revolta? E os que ainda estão lá? E os que virão? Eu acredito que o sistema é muito podre. Dizem que eles pregam a igualdade e a Justiça, mas na prática não é nada disso. Mas eu acredito que da mesma forma que consegui mudar, outros também vão conseguir. É de extrema importância sabermos dos nossos direitos”, defende o garoto.

“SÓ MUDOU DE NOME”

A frase acima foi dita por quatro funcionários da Fundação Casa que concederam entrevista ao Brasil de Fato em momentos diferentes e sob condição de anonimato. Isso porque, segundo eles, quem questiona ou se posiciona contra as violências é perseguido ou transferido como forma de retaliação.

Renato, agente educacional há mais de dez anos em uma unidade da capital, ressalta que os recorrentes maus tratos contrariam o regimento interno da instituição.

O artigo 3º do documento, por exemplo, determina que entre os princípios do atendimento socioeducativo ao adolescente estão o respeito aos direitos humanos, assim como incolumidade, integridade física e segurança.

“A agressão é a regra para disciplinar. Uma disciplina comparada ao presídio de adultos. Falamos para o adolescente que ele está cumprindo uma medida socioeducativa, mas quando eles conversam com o funcionário da segurança, eles dizem: ‘Você está em uma cadeia, tem que se comportar como ladrão’. Todo um trabalho, uma construção, é derrubada”, afirma Renato.

O diagnóstico é enfático: “É o modelo antigo da Febem. A Febem não morreu, está mais viva do que nunca. Só mudou o nome. Se tiver um afastamento da mídia e dos direitos humanos, volta tudo”, denuncia.

Ele conta que, além de receberem frequentes socos no peito e pisões no pé, os garotos permanecem de ‘castigo’ sentados no chão ou de pé olhando para a parede por horas. Frequentemente o profissional é impedido de entrar nas salas onde os outros funcionários levam os adolescentes “para conversar” – locais onde geralmente ocorrem as agressões.

O educador também relata que os agentes provocam os adolescentes para que eles “percam a linha” e a agressão seja “justificada”.

A assistente social Carla, que trabalha há quase duas décadas na instituição, desde a época da Febem, confirma que a represália é constante e que o medo de falar toma conta tanto das vítimas quanto dos funcionários que discordam do uso da violência.
Segundo ela, na internação provisória as agressões são mais veladas, mas, nas unidades onde os adolescentes cumprem as medidas sentenciadas, “o coro come”.

“A Corregedoria da Fundação demora muito pra verificar o caso de violência. Aí, depois o próprio servidor coage o garoto para mudar a versão. Existe muito isso. A represália é direta. O funcionário fala que o menino foi pra cima, que ele foi se defender dele.. Tem uma série de desculpas. São agressões que ficam o hematoma, o menino mostra. Às vezes, quando mostra, já tem três, quatro dias. E os próprios meninos falam que se denunciar, piora”, detalha a assistente social.

PROCESSOS E INVESTIGAÇÕES

Em resposta à demanda da reportagem, a instituição afirmou que quando se constatam abusos cometidos pelos servidores, é realizada uma investigação por meio de sua Corregedoria Geral. Após processo administrativo, é aplicada a punição, inclusive com demissão por justa causa, se for o caso.

De acordo com dados disponibilizados pela Fundação, entre o período de janeiro de 2015 a outubro de 2019, foram instaurados 12.399 procedimentos administrativos, entre sindicâncias e processos, para averiguação de faltas funcionais como atrasos, faltas e envolvimento com episódios de violência.

Destes, 6.444 foram concluídos. A assessoria de imprensa informou que, nos últimos cinco anos, 58 funcionários foram afastados por “suposta prática de violência” e 30 deles foram demitidos por justa causa.

Atualmente, há 17 funcionários afastados em 6 processos administrativos disciplinares, ainda não concluídos. A Fundação mencionou ainda que a Corregedoria foi reestruturada em maio deste ano para dar maior celeridade aos procedimentos.

Somente este ano, entre os mês de março e setembro, a Comissão Permanente de Acompanhamento das Medidas Socioeducativa do Conselho Tutelar recebeu 21 denúncias de maus tratos e agressões pelo Disque 100. O canal recebe denúncias anônimas e integra o serviço de proteção de crianças e adolescentes vinculado ao Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescente.

Uma delas veio do complexo do Brás, uma do Complexo da Vila Maria, três da Casa Jardim São Luiz e 16 do Complexo Raposo Tavares, onde as cinco casas (Nova Aroeira, Nogueira, Jatobá, Ypê e Cedro) são elencadas pelos funcionários entre as mais violentas. Gledson Deziatto, coordenador da comissão e conselheiro tutelar da região do Rio Pequeno /Raposo Tavares, acredita que a maioria das denúncias anônimas por telefone devem partir dos próprios funcionários, devido a riqueza de detalhes.

Ele critica a postura da instituição. “A Fundação sempre justifica com o argumento da contenção, que os meninos se rebelaram, citam tentativa de tumulto. Que os meninos ficam bravos com as revistas programadas e vão pra cima. Mas, desde quando eu atendo, posso dizer que quase nenhum funcionário sai machucado. São pouquíssimos. Agora os meninos sempre saem machucados, com hematomas, olho roxo, mancando. Eles levam muita bicuda e tapa na cara”, diz Deziatto.

O conselheiro tutelar confronta a ideia originária da Fundação Casa, de ser um espaço acolhedor, de inclusão social e boa estrutura, com a realidade que as denúncias evidenciam.

Deziatto aponta ainda que as cinco unidades do Complexo Raposo Tavares não passaram por nenhuma reestruturação física e estão exatamente do mesmo jeito que eram no tempo da Febem.

“Eles ficam trancados lá dentro. A Fundação diz que não é prisional, mas é prisional. Eles vivem atrás das grades, de cabeça baixa, mão pra trás. Tem que pedir licença até para o extintor de incêndio. São tratados como cachorro. Aliás, pior. Nem cachorro é tratado desse jeito”, desaprova.

ALTERNATIVAS À INTERNAÇÃO

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo é a responsável pelo atendimento da maioria dos adolescentes sob medidas de internação. Daniel Secco, coordenador do Núcleo de Infância e Juventude (Neij) do órgão, afirma que houve uma evolução da Febem para a Fundação Casa, mas não o suficiente para garantir o fim das violações e a punição dos responsáveis.

“Ainda temos, infelizmente, alguma herança dessa época da Febem, do Código de Menor. Não só na Fundação, mas na sociedade como um todo, de que a violência é um mecanismo legítimo para ‘corrigir’ adolescentes. Essa é uma visão muito equivocada”, enfatiza Secco.

O coordenador do Neij argumenta que a privação de liberdade limita o potencial das medidas socioeducativas, já que afasta o jovem do convívio familiar e da comunidade. É por esse motivo, diz ele, que o ECA e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) determinam que a internação deva ser excepcional e pelo menor prazo possível.

Quatro das medidas socioeducativas do Estatuto, por exemplo, não preveem a privação de liberdade do adolescente. São elas a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade e a liberdade assistida.

“A internação deve ser breve e logo substituída por uma medida em meio aberto e muito mais apta a reintegração social do adolescente, mais apta a atender os objetivos que a medida socioeducativa se propõe. Só o fato de ele ficar privado de liberdade, já vai gerar um trauma, vai trazer prejuízos para o desenvolvimento daquele adolescente”, explica o defensor público.

Um adolescente que convive constantemente com a violência, conclui Secco, corre o risco de vê-la como uma forma legítima de resolver conflitos e situações, perpetuando um efeito negativo na vida adulta deste jovem.

“A cultura de violência que temos, não somente na Fundação Casa como na sociedade como um todo, vê o adolescente em conflito com a lei como se fosse o culpado por todos os males, quase um não ser humano. Temos muito o que evoluir. Enquanto Fundação Casa, enquanto Justiça, enquanto Defensoria Pública… Temos que evoluir enquanto sociedade como um todo”.

LEIS IGNORADAS

O Sinase (Lei Federal 12.594/2012) e os dispositivos do ECA são um sistema de resposta aos atos infracionais que consideram o desenvolvimento do adolescente e priorizam a via pedagógica, ao invés do punitivismo.

Seu objetivo é criar mecanismos psicossociais que ajudem o adolescente a romper com a trajetória infracional através do conhecimento e do exercício de direitos e deveres.

Para que o sistema funcione, no entanto, é necessária uma articulação mais consistente e efetiva de políticas públicas que priorizem a ressocialização – o que não tem sido prioridade do Estado brasileiro. A opinião é de Iolete Ribeiro, do Conselho Federal de Psicologia e ex-conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão instituído em 1991 como uma premissa do ECA.

“Ressocializar um adolescente é saber sobre ele, sobre o contexto de vida dele, construir vínculos para que a reeducação de fato aconteça.

Acompanhar família, escola, para monitorar e dar o suporte que ele necessita para construir outra forma de lidar com seu contexto de vida que não seja pela via do ato infracional”, explica Ribeiro.

Ela está entre os conselheiros do Conanda exonerados por Jair Bolsonaro (PSL) em setembro deste ano. Por decreto, o presidente reduziu a participação social no órgão ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Antes, 28 conselheiros titulares compunham o órgão, sendo 14 do governo e 14 de entidades ligadas à promoção dos direitos à infância e adolescência. Agora, são apenas 18 conselheiros, mantendo-se a paridade.

Segundo Iolete Ribeiro, durante anos o Conanda recebeu diversas denúncias de maus tratos, tortura e negligência na Fundação Casa e entidades congêneres em todo o país.

Para ela, com Bolsonaro, as políticas nas áreas da infância e adolescência estão ameaçadas.

“O governo claramente tem a intenção de rever a redução da maioridade penal, não reconhece a luta pelos direitos humanos das crianças, adolescentes e jovens, não reconhece uma série de outras ações que são essenciais especialmente para esse público que acaba chegando nas unidades socioeducativas: jovens, negros, que não tem acesso a direitos básicos. A sociedade deve se organizar para defender o ECA”, afirma.

JUVENTUDE ENCARCERADA

O ambiente rígido que funcionários e ex-internos descrevem se assemelha ao procedimento adotado em centenas de prisões espalhadas pelo Brasil. Em julho deste ano, a população carcerária do país chegou a 812 mil, segundo informações do Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – sendo que 65% da população presa é composta por pretos e pardos, conforme dados de 2016 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

Daniel Secco, coordenador do Neij, afirma que o padrão de encarceramento excessivo se repete na Fundação Casa, o que aprofunda suas dificuldades de funcionamento. Assim como no sistema prisional adulto, parcela relevante dos adolescentes, estão detidos pelo tráfico de drogas. “Infelizmente, o aumento de encarceramento dos adultos também ocorreu para os adolescentes. Nos últimos dez anos, tivemos uma explosão no número de adolescentes internados no Brasil. A seletividade que se verifica para os adultos é a mesma para os jovens: A maioria é da periferia, são pobres e em grande parte são negros. O sistema seleciona o mesmo perfil tanto pra adulto quanto pra adolescente”, critica o defensor público.

Na visão da assistente social Carla, a seletividade é nítida. “Os meninos chegam aqui com todo tipo de violação de direito. Depois, quando ele entra aqui, fica óbvio que ninguém os aceita. É como se trabalhássemos com o lixo da sociedade. Mas menino de elite não vem pra instituição, a Justiça de elite não vem… Eles são liberados. Por que o filho do Mauricinho não vem, só vem o filho do mané?”, questiona.

CAPACITAÇÃO INSUFICIENTE

A falta de formação dos servidores é apontada por Carla como a principal responsável para que as práticas da Febem continuem a ser reproduzidas na Fundação Casa. Conforme ela, oficinas e palestras sobre direitos humanos, por exemplo, não ocorrem na quantidade necessária.

“A instituição só mudou de nome, mas os servidores são os mesmos. Tem psicóloga e servidores que se acham juízes, que se mantém conivente com a situação. As práticas são as mesmas. Eles falam que mudaram mas os próprios gestores são coniventes para manter cargo.” Cecília, assistente social que trabalha em outra unidade da Fundação há mais de 15 anos, reforça a denúncia dos demais funcionários.

“A agressão verbal é de praxe. Os meninos são chamados de ladrão, vagabundo. É assim que eles são tratados. Se os adolescentes não querem cumprir alguma coisa, eles partem pra cima. Só mudou o nome. Aquela tônica do novo olhar é pra mudar um pouco a visão da sociedade, mas na realidade é a mesma coisa. Não mudou nada”, lamenta.

Para ela, os funcionários não são preparados para a ressocialização. “Eles trabalham com a punição e contenção. Isso faz parte do cotidiano, infelizmente”.

Por sua vez, a Fundação Casa afirma que são realizados cursos periódicos de atualização dos servidores e que desde 2015 foram capacitados 12.951 servidores.

A instituição acrescenta que em setembro deste ano foi inaugurada a “Universidade Corporativa da Fundação Casa” com uma diretoria exclusiva para trabalhar o desenvolvimento e a capacitação em direitos humanos.

A nota enviada pela assessoria de imprensa diz ainda que foi criado também um Comitê de Direitos Humanos e Enfrentamento à Violência vinculado à vice-presidência.

IMPACTOS PSICOLÓGICOS

A lógica de que só a violência resolve gera consequências graves para a vida dos internos. Conforme explica Janaína, psicóloga que atende em um dos complexos com casos de maus tratos mais chocantes, a subjetividade dos adolescentes é fortemente abalada.

Janaína não trabalhou na Febem, mas conheceu e reconheceu suas práticas no dia a dia da Fundação substituta. Ela fala sobre os casos que presenciou desde 2011.

“Eu já vi menino pisoteado com marca de sapato nas costas porque foi espancado. De conseguir reconhecer quem o agrediu pela marca do sapato. Outro adolescente teve o nariz quebrado. Por uma discussão boba, foi tirado da sala de aula e levado para uma salinha. Ali foi espancado a ponto de ter o nariz quebrado”, conta a profissional.

“Outro teve a perna quebrada e todo mundo sabia qual servidor tinha quebrado, mas ficou escondido. Eles ameaçaram o adolescente para não contar a verdade e ele via todo dia esse servidor. Passou a medida dele toda sem poder falar quem o tinha machucado dessa forma”, continua.

A psicóloga diz que há uma visão policialesca no atendimento ao adolescente, que o desrespeita enquanto cidadão. “Imagine uma pessoa ficar nove meses, um ano, dois anos, andando com a mão para trás pedindo licença a cada porta que passar, mesmo se não tiver ninguém, ter que falar: ‘licença senhor’. É uma tortura psicológica”, frisa.

Durante os atendimentos, os sentimentos de revolta e injustiça são os mais relatados pelos jovens. Por muitas vezes, segundo Janaína, eles afirmam que sentem ódio e que irão se vingar de seus algozes.
“Ele sai daqui com uma identidade subjugada, entendendo que ele não tem direito, que a sociedade nunca foi boa pra ele e nem vai ser. Não adianta falar de Justiça pra ele, porque para ele a Justiça não existe. Existe, aliás, só para puni-lo. Ele sai com um sentimento de injustiça muito grande”, detalha.

Neste contexto, o acompanhamento psicológico ao adolescente acaba anulado pela violência.

“Os servidores esquecem as agressões, mas os adolescentes não. Esse adolescente que teve o nariz quebrado, por exemplo, ficou com o nariz torto. Toda vez que olhar no espelho vai se lembrar do que aconteceu. Ele nunca vai se esquecer, é irreparável. Como ensinamos a esse adolescente que a vida das pessoas importa, se ninguém demonstra que a dele importa?”, indaga Janaína.

O QUE DIZ A FUNDAÇÃO

Procurada pela reportagem do Brasil de Fato, a Fundação Casa rebateu as denúncias.

“A presidência da Fundação Casa reitera seu compromisso com os direitos fundamentais dos adolescentes em medidas socioeducativas de meio fechado e ressalta que executa suas atribuições com total observância às diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)”, diz o texto enviado pela assessoria de imprensa.

O posicionamento alega ainda que a instituição está pautada por um regimento interno transparente que “disciplina a atuação de seus servidores nos exatos termos dos preceitos legais e constitucionais, repudiando toda forma de violência”.

FICHA TÉCNICA

Reportagem especial: Lu Sudré (texto e áudio) / Gabriela Lucena (artes) / Fotos: Nina Fideles / Edição: João Paulo Soares (texto) / Katarine Flor (áudio) / Coordenação: Vivian Fernandes, Camila Maciel e Daniel Giovanaz (Jornalismo) / José Bruno Lima (Multimídia) / Camila Salmazio (Rádio)

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