A fiel descrição de uma imagem

Compartilhe:

Por Rita Alves, professora
A imagem traz, no primeiro plano, o espelhamento de forças aparentemente desiguais. De um lado vemos uma imensa viatura policial que ocupa 1/4 da imagem, no seu interior a silhueta de policiais e um deles com o braço pra fora do veículo como se o espaço automotivo de segurança pública fosse pequeno, como se pudesse apressar a condução do automóvel. Do outro lado do espelhamento vemos uma jovem senhora solitária, de cabelos grisalhos cacheados, em vestido elegante e casual de estampa sóbria, elegantes sapatos pretos de salto, máscara de proteção, corpo esguio e ereto, o braço direito estendido que aponta algo para o “outro lado” que, ao que parece, vê-se paralisado.
Mulher e viatura estão sobre uma ponte num rio. Dia ensolarado, céu azul e límpido; à direita uma luminária pública acrescenta camadas de tempo à imagem. Neste cenário bucólico vemos outras pontes sobre o rio na profundidade da imagem.
Mas no espelhamento da foto não vemos uma mulher impotente e solitária frente uma viatura policial protegida e vigorosa. Não. O braço estendido da mulher é quase uma arma; o braço direito do policial está inerte, para baixo, sem ação.
A foto não diz coisas relevantes. Era dia 29 de maio de 2021 e massivas manifestações contra a política genocida da presidência da República tomaram as ruas do país. A cidade é Recife e neste dia a PM reprimiu violentamente a manifestação. Minutos depois da cena fotografada o policial usou o spray de pimenta a poucos centímetros do rosto da mulher através da janela do carro, sem ao menos desembarcar da viatura para cumprir sua função.
A jovem senhora é vereadora, docente da Universidade Federal de Pernambuco, advogada, mestra e doutora em Direito.
A pergunta que a foto suscita logo de cara: o que ela tem na mão que faz parar a viatura policial? Seria a caixinha de medicamento sem eficácia contra Covid-19? Não, não faria sentido, o contexto era outro. Seria uma arma letal? Pouco provável. Sabemos, para além da imagem, que o objeto ‘mágico’ e pouco visível, mas central na foto, é sua identificação funcional de representante do povo recifense, uma carteira de couro com o brasão da instituição pública para a qual foi eleita legitimamente.
Trata-se de uma vereadora identificando-se e agindo legitimamente frente os agentes estatais de segurança que reprimiam violentamente a população pernambucana em manifestação pacífica.
O que vemos na fotografia são as várias faces do Estado e da coisa pública em conflito: ponte, leito carroçável e rio são responsabilidades estatais, “coisas” públicas; policiais aprovados em concursos públicos e remunerados com recursos públicos; docente de universidade pública tb aprovada em concurso público e remunerada com recursos públicos que ademais também é representante do povo amparada por recursos públicos; viatura policial e carteira funcional legislativa, ambos estruturas do estado.
Dos 2 lados temos, teoricamente, representantes do estado responsáveis pela mesma coisa: a garantia do respeito à Constituição Federal e manutenção da esfera pública no contexto do estado democrático de direito.
Nestes 2 lados de ação estatal destaca-se, sem dúvida, a mulher-docente-advogada-acadêmica e representante do povo agindo com firmeza, elegância e certeza das suas responsabilidades públicas. Não há humilhação ou imposição sobre os policiais, mas apenas a plena consciência de suas obrigações e direitos, o conhecimento dos limites do estado democrático de direito e sua firme atitude.
Por fim, e o mais importante: a mulher na foto é a Liana Cirne e a fotógrafa é a Malu Aquino.

O Bem Blogado precisa de você para melhor informar você

Há sete anos, diariamente, levamos até você as mais importantes notícias e análises sobre os principais acontecimentos.

Recentemente, reestruturamos nosso layout a fim de facilitar a leitura e o entendimento dos textos apresentados.
Para dar continuidade e manter o site no ar, com qualidade e independência, dependemos do suporte financeiro de você, leitor, uma vez que os anúncios automáticos não cobrem nossos custos.
Para colaborar faça um PIX no valor que julgar justo.

Chave do Pix: bemblogado@gmail.com

Tags

Compartilhe:

Categorias