A filosofia não é vã

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E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, da coluna “A César o que é de Cícero”, nos traz um texto muito sensível sobre uma questão que, com passar do tempo, se torna mais próxima. Sem dar spoiler no texto, mas já dando, vai aqui um pensamento do filósofo Immanuel Kant: “Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida, então, morrer também vale a pena”.

Vamos ao texto:




“Para Dênis Alexandre, Mauro Célio, Flávio Pimentel, Leinimar Pires e, muito especialmente, Dioner Sotero Batista

Talvez eu venha a dar com os burros n´água com minhas elocubrações, mas não há outra maneira de saber senão escrevendo.

A notícia da morte de Antonio Cícero me trouxe à memória o filme “As invasões bárbaras”. É que há uma espécie de morte assistida: um homem, professor universitário no Canadá, é paciente terminal de câncer, sabe que vai morrer. Seu filho vem da Inglaterra para acompanhá-lo em seus últimos momentos. A filha não pode vir pois está em alto-mar em uma aventura do tipo da de Almir Klink.

Há uma espécie de conciliação entre pai e filho enquanto se prepara uma boa morte, que para o professor é em casa rodeado dos amigos, em franca oposição a uma morte no hospital, cercado de aparelhos e com a frieza das paredes brancas de ambientes hospitalares. É como se o homem tivesse preferido a impureza da vida à insipidez da morte.


Que fique claro que o filme é muito maior do que o recorte que fiz. E que a morte assistida de Antonio Cícero provavelmente ocorreu em um hospital na Suíça e não em sua casa no Brasil. Mas a questão é que ambos tomaram uma decisão a respeito de como morrer. Por isso a carta (leia abaixo) deixada por Antonio Cícero ganha enorme vulto, nos fornecendo um testemunho de uma postura notável diante da vida.


Em suma, a carta me transmite uma coragem, talvez mais que coragem, uma coerência com princípios filosóficos que nos faz acreditar na humanidade. Não é simplesmente viver de acordo com o que se acredita. Viver assim é chancelar aberrações comuns, como é o caso, creio, de gente como Bolsonaro e companhia. É outra coisa.

É não aceitar que a vida seja vivida pela metade nem usar, para ser bem-sucedido, as cabeças dos outros como degraus. Mas aprender a pensar com a cabeça dos outros, como disse certa vez B. Brecht. Antonio Cícero nos colocou para pensar.


Quanto às pessoas que cito na dedicatória, vale dizer: o meu irmão é filósofo; amigos do peito como Mauro Célio, Flávio Pimentel e Leinimar Pires, também. E minha mãe, com a sabedoria dos seus oitenta e cinco anos que vai aos poucos se esvanecendo, tem Alzheimer. Minha mãe, que já não tem mais condições de escrever nem sequer umas linhas. E quanta dificuldade ela tem em reconhecer as pessoas. E como tem ficado quietinha, até bem-comportada.


Aliás, coragem por coragem, devo dizer: meu pai, que era contador e psicanalista, teria tomado a mesmíssima atitude que Antônio Cícero tomou se soubesse que dificilmente sairia vivo do hospital onde ficou por mais de um mês num CTI dos infernos.

Meu pai gostava muito da vida, não pensava em morrer, mesmo sabendo que uma cirurgia na idade não era exatamente como fazer um canal no molar. Durante os longos dias de CTI, talvez tenha dito coisas como “Eu quero morrer” para abreviar seu sofrimento e o nosso. E quem o ouviu? E quem o entendeu?

Na última vez em que vi meu pai, não sei se é uma falsa memória, vi uma lágrima escorrer do olho dele. Depois no necrotério do hospital o vi pequeno, murcho, bem menor do que ele era, nu exceto por uma ridícula fralda e um buraco na garganta da traqueostomia (cuja permissão foi assinada por mim). E a vontade de esfolar o desgraçado do médico indicado para consolar a família que perde o ente querido? Puta que pariu! Esses caras parecem que não veem a série “House”.


Voltemos a Antonio Cícero. “Guardar” (leia abaixo), acho que este é o nome, é um poema lindo. E vem a calhar com a disposição do poeta de não aceitar viver sem poder guardar parte das suas lembranças, sem poder ter acesso a elas sempre que possível. Mesmo sabendo que nem tudo vem à tona como e quando a gente quer, todos nós sabemo o que significa ter uma memória e que sinal de saúde isto significa. Poder se lembrar das coisas, poder torná-las experiência, é algo da ordem do humano.


E o verso que mais gosto de Antonio Cícero abre a canção “Inverno”, cuja versão que conheço é interpretada por Adriana Calcanhoto: “No dia em que fui mais feliz / Eu vi um avião / se espelhar no seu olhar até sumir”. Eu adoro essa imagem meio de filme de 007 que se volta para o campo da lírica amorosa.

Que coisa bonita é o avião que passa. O amor também passa. E durante algum tempo o que parece restar, sobreviver, é aquela falta que preenchemos com lembranças que vão se esgarçando, se esgarçando, se esgarçando. Por vezes, é bom se esquecer também. Ou se não se esquecer, continuar caminhando aceitando de pronto a finitude da vida sem desespero.

É isso. A filosofia não é vã, apesar dos mistérios serem muitos.”

Guardar

(Antonio Cícero)

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto
                 é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é,
velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela
                                    ou ser por ela.
          Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
                         Do que pássaros sem vôos.
  Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se
                          declara e declama um poema:
                                     Para guardá-lo:
            Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
                  Guarde o que quer que guarda um poema:
                              Por isso o lance do poema:
                       Por guardar-se o que se quer guardar.

Leia a carta de Antonio Cicero
“Queridos amigos,

Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia.

O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.

Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.

Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.

Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.

Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.

Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.

A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.

Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.

Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.

Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019),  Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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