A Frente Ampla contra o Brasil

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Por , compartilhado de Outras Palavras – 

É justo somar forças para afastar Bolsonaro e seu governo de devastação. Mas para isso, será preciso desfazer uma aliança que já existe. Ela une o extremismo do capitão, o fundamentalismo religioso e o ultracapitalismo do poder econômico

O desenvolvimento da longa crise política brasileira, que remete à 2013, se instaura em 2014 e se intensifica a partir de 2016, entrou, não é difícil perceber, em uma nova fase. O conjunto inominável, em atos e palavras, de ações criminosas, vindas particularmente da Presidência da República, não bastasse todos os absurdos pregressos de uma realidade cuja estrutura não só tem, como ultrapassa, aquela da ficção, nos põe, agora, diante do horror. A enorme perplexidade que enseja, dentro e fora do país, é compreensível: atualmente, nos encontramos, a maioria da população, dentro das fronteiras de um dos piores países do mundo para se viver e estar em meio ao combo diabólico de crise sanitária e econômica que tomou conta do planeta.

Gastar mais tinta resgatando o roteiro que nos trouxe até aqui não será muito útil. Já o conhecemos. Assim, a menos para aqueles ainda presos ao estágio da negação, a pergunta mais óbvia, que se impõe, é a seguinte: por que, afinal de contas, Bolsonaro não cai – se apresenta considerável e crescente rejeição, dentro e fora do país, e se já acumula um enorme rosário de crimes de responsabilidade (e mesmo contra a humanidade)? Se há mais do que suficientes motivos e evidências para tanto, por que, ao contrário, o presidente e seu movimento de extrema direita seguem triunfante avançando sua Blitzkrieg, quase que impunemente, sobre nós?




Neste ponto, tornou-se comum apresentar explicações igualmente já bem conhecidas, a ser: i) a falta de unidade da oposição de esquerda, do campo progressista ou, caso se queira, de uma grande frente ampla nacional contra Bolsonaro – algo obstado por vaidade, oportunismo eleitoral, falta de ousadia e ética da convicção; ii) a covardia contemporizadora das instituições públicas e seus dirigentes – que não fazem muito mais, ressente-se, do que soltar notas de repúdio; iii) a falta de expressões mais claras, em proporção e intensidade, de um descontentamento popular ativo frente ao “transe” bolsonarista (ou “fascista”, para os mais alarmados) que tomou parte significativa da população – eles ocupam as ruas enquanto “nós” ficamos em casa, ciosos de nossa responsabilidade coletiva e pública; iv) a astúcia da razão maquiavélica de Bolsonaro e seu entorno, que oculta uma estratégia coerente por trás de um comportamento apenas em aparência paranoico e errático. Nenhuma dessas teses, é preciso dizer, toca no ponto fundamental; nenhuma delas responde, sozinha ou em conjunto, a mais óbvia das perguntas postas neste estágio da crise política brasileira: por que, afinal de contas, Bolsonaro não cai.

Em meio ao desenrolar de uma situação que nos aparece como a contingência mais imediata e inominável da autonomia da esfera política, uma pura e simples guerra institucional de “todos contra todos”, a resposta se encontra na determinação em última instância da defesa e implementação insistente de um programa econômico tornado praticamente consensual, certamente hegemônico, entre as elites políticas e econômicas do Brasil. A constatação dessa renitente permanência (ao menos desde 2015), em meio a todas as impermanências do cenário, nos permite perceber que a, por alguns tão sonhada, “frente ampla”, em verdade, já está em operação: ela apenas não é, naturalmente, construída em salões do Congresso Nacional, debates na esfera pública ou na mobilização de setores da sociedade civil, mas em “lives” de corretoras de investimentos da Faria Lima, onde medalhões dos três poderes da República – ministros de governo civis e militares, congressistas e altos magistrados – discutem o futuro do país com grandes empresários e financistas. Esta “frente ampla” nos fornece, todos os dias, sinais de flagrante falta de energia e boa vontade quanto a qualquer saída para crise que passe, neste momento, pela retirada de Bolsonaro do poder.

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Mais evidente ao menos desde 2014, quando começa a se cristalizar com maior força a deterioração do cenário econômico nacional, a radicalização da posição ativa do mercado como poder “enformador” da sociedade segue sua marcha de destruição. Enquanto os índices da bolsa se mantiverem ou se recuperarem modestamente, tão menos importará a tragédia nacional – cristalizando, em contornos particularmente sombrios, a tendência global de sobreposição da lógica financeira à produtiva. Neste quadro, é bastante compreensível que autoridades prefiram falar diretamente, e a seu convite, ao “mercado” do que se dirigir à nação: é lá aonde, ao fim e ao cabo, as grandes decisões são tomadas.

Em meio ao ruído de superfície das aparentes divergências protagonizadas em “webinars” e “lives” promovidas por grande instituições financeiras, emergem, assim, repetidamente, os dogmas econômicos do ultraliberalismo à brasileira. Mesmo diante do significativo pacote de medidas econômicas emergenciais adotadas para o combate da pandemia e seus efeitos econômicos – efetivadas a contragosto, diga-se – trata-se de afirmar, com insistência, seu caráter puramente eventual que, ademais, nos legará, alertam os dedos em riste, um passivo a ser pago em mais arrocho na rodada seguinte. Definitivamente não se trata de uma “conversão keynesiana”. A gritaria estridente e unificada contra a débil sugestão de expansão fiscal feita por ocasião de lançamento do natimorto plano Pró-Brasil, encabeçado pelo general Braga Netto, em verdade um conjunto difuso de lâminas sem qualquer conteúdo substantivo, serve de indício do que se fala. Segue, em suma, tudo lá: manutenção da vigência do férreo teto de gastos, diminuição e desmonte estrutural do Estado em todas as dimensões e níveis da administração pública – particularmente no tocante à previdência e assistência social, precarização e flexibilização geral das relações de trabalho, garantia pública da liquidez necessária à nova rodada de centralização do capital que se avizinha e, por fim, à americana, uma pressão contínua, ora implícita ora explicita, pelo relaxamento do distanciamento social – que, retoricamente, se diz cauteloso pela situação, mas cujas ações concretas denunciam a crença na inevitabilidade de um grande número de mortes. Mortes, é claro, daqueles podem morrer sem afetar ainda mais a economia no curto prazo, com o bônus, do outro lado do balcão, de aliviar um bocado mais o orçamento da previdência.

A funesta política bolsonarista, sua contrarrevolução permanente, longe de um desvairo sui generis, não faz mais do que nomear o desejo difuso da grande burguesia brasileira – que tem em Paulo Guedes um fiel executivo: lucro acima de tudo, ganho de curto prazo acima de todos. Quem mais poderá nos garantir, afinal, nesta conjuntura, uma certa gestão de crise permanente a entregar nada menos do que a pilhagem radical de um país fraturado pela brutal desigualdade econômica, política e social, e, para piorar, acometido pela peste? O que de melhor do que o par Bolsonaro-Guedes, secundado por forças de segurança em raivosa prontidão, poderá dar como líquida e certa, em tempos tão extremos, a garantia de que nenhuma intervenção desfavorável na dinâmica do conflito distributivo será ensaiada?

Pensemos, rapidamente, a partir desta chave, nos três setores que compõem atualmente o governo federal. Os militares, em geral já ideologicamente ganhos por este mesmo programa econômico e convencidos, como Bolsonaro, a um alinhamento geopolítico a Trump, assistem, confortavelmente, aos próximos passos sem, para isso, terem de pagar sozinhos o ônus político de uma esbórnia que, afinal, também lhes beneficia – ademais sendo formalmente alçados à posição de fiel da balança em qualquer desenvolvimento político vindouro. Faz todo sentido, aqui, seguir pagando para ver. Por sua vez, o núcleo ideológico do exotismo olavista, que nunca teve muito a perder (e aqui reside sua potência), avança exultante como força de tração ideológica em meio à desorientação subjetiva de um país arrasado pela crise. Um setor, em aliança com o radicalismo neopentecostal, que fornece, em suma, a necessária “transcendência” política a uma força social que tem na negação ressentida de “tudo que está aí” sua razão de ser. Por fim, a âncora material, a casa de força, o “lastro” de Bolsonaro na política dos “grandes negócios”: o liberalismo radicalizado de crise, pinochetista, encarnado na figura do “Chicago boy” Paulo Guedes e sua equipe. O arranjo é certamente novo, mas não deixa de recordar, em muitos aspectos, aquele de 56 anos atrás, quando setores importantes da política nacional também se moviam basicamente de olho na próxima eleição, que, ao fim, demorou 25 anos para ocorrer.

Há, em suma, ao menos do ponto dos interesses econômicos imediatos do grande empresariado brasileiro, então, uma curiosa e inesperada “ordem no caos” no governo Bolsonaro. Vale para o setor financeiro praticamente tanto quando vale para setor “produtivo”, dada sua interpenetração objetiva em tempos de financerização generalizada. Vale também para o agronegócio, aliado de primeira hora, contabilizando, ademais, safra recorde e câmbio favorável. Converta-se isso em grupos de interesse e bancadas atuantes no Congresso Nacional e tem-se um bom panorama das enormes incertezas colocadas para qualquer processo de impedimento presidencial neste momento.

Portanto, isso nada tem a ver diretamente com os 30% de aprovação popular de Bolsonaro nem com sua ousada e perspicaz capacidade de iniciativa política (lembremos que o establishment político brasileiro não demonstrou nenhum medo ou pudor em manter na cadeia um dos líderes mais populares do país, à altura com cerca de 50% de intenções de voto para presidente), não remete à falta de “coragem” dos presidentes da Câmara e do Senado ou do STF, e tão menos está submetido à ausência de uma ação sincera e abnegada das principais lideranças políticas em prol de uma “frente ampla”. Tem a ver, antes, com a sobredeterminação dos interesses materiais em jogo.

O estado avançado de decomposição das instituições da República, produto de anos de crise política e econômica, a fratura do movimento sindical frente às novas relações de trabalho na cidade e no campo, o afastamento objetivo de qualquer força partidária da tarefa fundamental de mobilização popular e da sociedade civil (algo que o bolsonarismo tem sabido fazer, a seu modo), e, por fim, a elevada imprevisibilidade de uma situação que parece simplesmente incontrolável, enfraquecem ainda mais os atores políticos de parte a parte. Frente a essa debilidade generalizada do campo político, só resta o acotovelamento de uma disputa ansiosa pelo melhor lugar no coração desta elite econômica – que, de sua parte, não está lá muito disposta a qualquer “sacrifício pelo país”.

Frente a esta “mútua anulação” de forças políticas no campo institucional, o que podem, de fato, Maia, Alcolumbre e os ministros do STF? O que pode a grande imprensa, que a despeito de sua aberta oposição cultural e, agora, “sanitária” e moral, a Bolsonaro, cerra fileiras junto ao mesmo consenso econômico de ocasião? O que pode Ciro Gomes, com seu intelecto privilegiado, em seus apelos por um projeto nacional-desenvolvimentista e indústria forte, vaiado em plena Confederação Nacional da Indústria durante a campanha de 2018 (contra um Bolsonaro ovacionado)? O que pode Lula, com sua conhecida verve e capacidade de negociação, em seus apelos por consciência e moderação a banqueiros e grandes empresários, “que nunca ganharam tanto” como em seu governo, em prol de uma retomada daquele que ele e seu partido fantasiaram ser o “algoritmo perfeito” da conciliação de classes no Brasil? O que podem, enfim, os apelos à razão e ao bom-senso científico da minoritária oposição de esquerda brasileira?

Eis, portanto, o paradoxo de uma nação à beira do abismo: o programa econômico hegemônico em marcha ao mesmo tempo em que é apresentado e defendido como a única saída unificada possível para a crise é, na verdade, ele mesmo, o próprio motivo de base para a manutenção e intensificação da crise, uma vez que aprofunda o esgarçamento do tecido social e, assim, a deterioração política do país. Eis aí a macabra “frente ampla” da política brasileira – que inclui a quase todos, até mesmo, direta ou indiretamente, setores relevantes da chamada “oposição”. Àqueles mais à esquerda do espectro político, que estão fora deste consórcio, restou a posição de meros espectadores dos acontecimentos, completamente alheios a qualquer protagonismo político real.

É que enquanto as oposições e seus líderes se atêm ao mencionado jogo do “andar de cima”, cujo espaço para a movimentação se torna a cada vez mais restrito, as maiorias sociais são jogadas à própria sorte e ao desespero, com risco crescente de adesão, dada a escassez de alternativas concretas, à base de mobilização de bolsonaristas e igrejas neopetencostais que compõem sua aliança. Incapaz de mobilizar e se conectar com este setor popular, a oposição, que diz representar a civilização contra a barbárie, aparece como apenas mais outra defensora de um “luxo”, um privilégio disponível a poucos neste país periférico e desigual flagelado pela pandemia: o de ficar em casa e cuidar da própria saúde. Assim, conforme se agrava a situação, as oposições, particularmente à esquerda, são tragicamente empurradas ao papel de bode expiatório de um desfecho contra o qual supostamente mobilizam todas as suas energias: a violência, o autoritarismo e a morte.

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