Por Luís Nassif, em Jornal GGN–
Regras sociais são uma construção da civilização. São elas que impedem que desavenças sejam resolvidas com a morte de um dos contendores, que pessoas sejam agredidas em locais públicos, que famílias consigam conviver com diferenças internas.
Comparem-se os hábitos de crianças, adolescentes e adultos. o aprendizado continuado dos direitos e limites. A música é uma forma de interação social. Na periferia, os ambientes que cultivam a música são menos propensos a quebra-paus do que os sem-música.
Em um ambiente social, presencial, pessoas que não se bicam cruzam, mas se respeitam. Cada qual ocupa seu espaço, com seu círculo, sem maiores problemas. Quem ousa manifestar irritação pública, é censurado por olhares ou gestos dos demais presentes ou, no limite, pela polícia.
Essas regras sociais vão sendo aprimoradas na medida em que as sociedades se civilizam. É mais fácil um quebra pau em um boteco de periferia do que em um restaurante do centro. Eram mais usuais assassinatos políticos nos anos 20 do que agora.
Não que haja mais civilizados no centro, ou na atualidade, mas as regras sociais conseguem domar seus instintos mais primários. A besta que habita cada um de nós é domesticada por um conjunto de regras e de leis.
Com o advento das redes sociais, quebraram-se essas regras.
No escurinho do seu quarto, o sujeito passou a se julgar com liberdade para avançar para além dos limites, botar para fora seus instintos mais selvagens. Na outra linha, os que se escandalizam tiram o time de campo, bloqueiam seu perfil, deixam de interagir; e os que apoiam, veem saudá-lo. Cria-se, então, um padrão que facilita a organização de alcateias por todo o espectro das redes.
Tornam-se membros de uma sociedade livre, como eram as sociedades pré-históricas, sem o jugo das regras sociais, das hierarquias sociais, do respeito ao próximo e às leis, sem as limitações do politicamente correto.
Na liberdade das redes, colocam-se para fora os vícios privados. Pode-se agredir, assassinar moralmente os adversários, cometer adultérios, cultivar a pornografia, blasfemar, o que der na telha, livre como um adolescente que descobre a liberdade.
O fuzuê do impeachment
Agora, transporte esse quadro para o campo da institucionalidade. E relembre as cenas dantescas do impeachment, sob a ótica libertária-selvagem das redes sociais.
Mesmo em uma democracia imperfeita, as regras constitucionais garantem um funcionamento relativamente harmônico das instituições, definem limites aos poderes e aos atos individuais.
É vedado ao magistrado (ou ao procurador) manifestar-se fora dos autos, explicitar preferências partidárias, comportar-se fora dos limites da Constituição e das leis. Se são visceralmente contrários a determinado partido, as normas legais impedem sua manifestação dentro ou fora dos autos.
É vedado ao Congresso formar maiorias e tomar atitudes que afrontem a Constituição. É vedado ao Supremo Tribunal Federal invadir atribuições do Congresso, mas é sua obrigação colocar freios, quando o Congresso atropela o que é vedado pela Constituição.
Na campanha do impeachment, observou-se, nas instituições, o mesmo fenômeno das redes sociais. O espetáculo dantesco do fim dos limites sociais na Internet tomou conta do país e das instituições, com a euforia embriagadora promovida pelo golpe. Um espetáculo animalesco induzindo empresários, procuradores e juízes desfilando nas ruas suas posições políticas, Ministros do Supremo respondendo com um riso abobalhado às manifestações de fãs em shoppings, frequentadores de restaurantes agredindo adversários, um Procurador Geral empunhando uma placa salvacionista, outro Ministro comportando-se como hater de rede social, defendendo o Estado de Exceção, e simbolicamente de braços dados com espectros que lotavam as passeatas com seus gritos guturais.
Em tudo lembrou as grandes celebrações dionisíacas da antiguidade, não a celebração da política, mas os bacanais, os porres homéricos, pornográficos de bárbaros empunhando taças de vinho com o líquido escorrendo pela boca, arrancando nacos de carne da Constituição, babando saliva e sangue
Foi a grande Noite de São Bartolomeu, em que tudo foi permitido.
Procuradores saíram à caça de recalcitrantes, fossem alunos de uma escola ocupada, universitários discutindo política, técnicos liberando financiamentos à exportação de serviços, da mesma maneira que cães de guerra atiçados pelo comando “isca.. isca…”, para susto de procuradores e ministros mais responsáveis, que viam a instituição tomada de assalto pelos seus próprios haters.
Juízes de instrução impedindo tratamentos a presos com risco de vida, grampos telefônicos no próprio Palácio do Planalto, a pretexto de monitorar presos da Papuda. Enfim, viu-se de tudo. Essa será a imagem que, até o fim dos meus dias, estará indelevelmente em minha memória, o enorme bacanal que fizeram com a Justiça e o país.
Passarão os meses, os anos, em algum momento as nuvens carregadas da barbárie serão afastadas do horizonte por um novo vento reparador e civilizatório.
Mas as imagens de um Celso de Mello fazendo selfie no shopping, de Janot com um ar apalermado carregando um cartaz de salvador do pátria, Barroso com seu sorriso angelical de sílfide conduzindo a barca de Caronte, pessoas aparentemente corretas, que se comportavam de acordo com as regras e com as leis, autoridades que deveriam ser referenciais, de repente tomadas pelo espírito das trevas, que induzem caráteres mais fracos.
Todas essas imagens têm um cunho simbólico mais forte do que a menina do Exorcista e sempre servirão de alerta quando, no futuro, se ousar formar qualquer nova maioria.
Mesmo que seja para castigar os que faltaram com seu dever constitucional.