A   grande noitada

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Por Marco Aurelio Vasconcellos, cantor, compositor e cronista

O homem de meia-idade, enquanto fazia a barba, examinava no espelho as rugas nos cantos dos olhos e as pequenas bolsas intumescidas, abaixo dos cílios inferiores. Apesar desses vestígios da velhice, ele se achava fisicamente bem: músculos rijos, fisionomia jovem. Apenas o volumoso ventre — decorrência dos excessos da mesa e das cervejadas com  os amigos— impossibilitava um melhor estado geral.




Estava por completar cinco anos como aposentado do serviço público municipal e recém festejara, apesar de um casamento de acomodação, suas Bodas de Coral.

Acabado o ritual da  barba, meteu-se no chuveiro, em meticulosa e obstinada higiene. Nada convencional. Enquanto se ensaboava, pôs-se a pensar na amante: uma ligação  que já durava quinze anos, em encontros semanais no apartamento dela, onde não se demorava mais de três horas, o suficiente, pela sua visão machista, para os seus desafogos sexuais.

Desligou o chuveiro, puxou a toalha e enxugou-se freneticamente para ativar a circulação. Lembrou-se que o grande sonho da amásia era o de passarem uma noite inteira juntos, o que nunca havia acontecido. Nem mesmo haviam saído alguma vez para ir ao cinema, para jantar fora ou para um simples passeio. Os formais encontros sempre no acanhado apartamento onde a amante vivia com Fofita, a cadelinha de estimação.

Ao longo daqueles quinze anos, ela suportara estoicamente aquela insossa e servil relação. Por isso mesmo — argumentara certa vez — estava por merecer o almejado presente: uma noite inteira juntos. Afinal, nunca exigira nada, muito embora ele, espontaneamente, já lhe tivesse prestado vários obséquios, rotulados como ajutórios orçamentários. 

Perfumou-se, caprichou no desodorante, vestiu uma camisa colorida, uma cueca samba-canção, uma bermuda comprida e calçou uma sapatilha de praia. Saiu do banheiro e pôs numa sacola uma muda de roupa e os avios completos para o chimarrão. Sobraçando-a, dirigiu-se à mulher, que, na sala, folheava uma revista de modas:

— Querida …

 Ao vê-lo naqueles trajes e com a sacola na mão, ela interrompeu-o:

— Ué, aonde te atiras?

 Vou encontrar o Nunes. Ele vai dar uma olhada na casa da praia e me convidou para ir junto. Amanhã de manhã, por volta das dez horas, estaremos de volta

Inclinando-se sobre a fronte da mulher, beijou-lhe delicadamente a testa.

— Querido, bem que podias levar o isopor para trazer camarão. Tu sabes que eu adoro …

 Num forçado OK, o marido, contrafeito, foi até a despensa, pegou o isopor e nele colocou a sacola. Da porta da rua balbuciou um tchau e estalou um derradeiro beijinho de despedida.

Com o recipiente a tiracolo, atravessou a rua, dobrou a esquina e, no outro quarteirão, fez sinal para um táxi e, em poucos minutos, o carro estacionou defronte a um edifício de três andares de uma rua suburbana. Subiu as escadas com o coração disparado, já antevendo uma longa noitada de amor.

Apertou a campainha. A portinhola de segurança se abriu, enquadrando um rosto moreno e redondo, de cabelos encaracolados.

— Oiiiiiiiiiiiiiiii! — cumprimentou ele com um largo sorriso.

— Oi, lindão. Fofiiiiita! Venha ver quem chegou. É o papai. É o papai — matraqueou jubilosa.

 Aberta a porta, beijaram-se nos lábios, enquanto a cadelinha pulava, com insistência, nas pernas do recém chegado.

 — Vim passar a noite contigo, Neneca.

 A morena, cinqüentona e de carnes fartas, imitando a cachorrinha, pôs-se a pular de satisfação, provocando um som surdo no piso de parquê.

— Que beleza, lindão!  Finalmente, vamos passar uma noite juntos! Que bom, que bom, que bom! Hoje à noite tem um filme ótimo na TV. Estou louca para ver conti

— O jantar é comigo mesmo — adiantou ele, dando-lhe um tapinha no fofo traseiro.

 Depois da janta preparada com esmero (ele era um mestre em culinária), sentaram no sofá, comentando os acontecimentos da semana.

Em dado momento, ele se levantou e pôs um disco de boleros no aparelho de som. A sala foi inundada pela voz grave e morna de Gregório Barrios. O bolero?  Piel Canela. Pegou-a pela mão e puseram-se a dançar, os rostos colados, as  pernas se entrelaçando a cada passo, em voluptuosa cadência. E assim ficaram por quase hora e meia, enlevados pelos boleros que se sucediam.

Por fim, ela ergueu o pulso, olhou o relógio e, quase gritando, disse:

— Tá na hora do filme, querido. Vamos para o quarto.

Desvencilhou-se dele, ajeitou a cama, vestiu  uma camisola transparente e chamou:

— Vem, lindão ! O filme já vai começar. Vem, Fofita! Vem ver o filme com a mamãe e o papai.

  A cadelinha, serelepe, correndo como um corisco, pulou para a cama, enrodilhando-se toda no meio dela, enquanto sua dona ajustava a imagem na TV.

 Visivelmente contrariado, o homem, já de cuecas, enfiou-se debaixo das cobertas e aconchegou-se à amante.

Ela acompanhava com vivo interesse a melosa estória de amor, enquanto ele, depois de inúteis carícias, dava largos cochilos.

Terminado o filme, a morena adormeceu aninhada no peito do amante, que, com um estremecimento, despertou de uma de suas cochiladas. E, frustrado, não mais pregou olho.  Espichou o olhar para a amásia, que, num sono profundo, mostrava um leve sorriso nos lábios e uma indisfarçável felicida

Quando a primeira réstia de sol penetrou pela veneziana, o homem levantou-se e tomou uma rápida ducha.

Despertada pelo barulho do chuveiro, a cinqüentona acordou, espreguiçando-se, feliz. Levantou-se e carinhosamente dirigiu-se ao companheiro, que trocava de roupa:

— Queres que eu faça um chimarrão dos meus?

 — Não precisa. Já estou indo — respondeu ele, dirigindo-se para a porta, com o isopor embaixo do braço.

 — Vais voltar na semana que vem? — indagou, atônita.

— Talvez — respondeu o amante, secamente, já descendo as escadas.

  Na porta do apartamento, a fofa cinqüentona, ainda de camisola, com cara de tristeza, contrastando com a expressão alegre da cadelinha, sentada nas pernas traseiras e com as patinhas a se agitar no ar, como que acenando para o paizinho que descia.

Já na rua, carrancudo, ele chamou um táxi e indicou o rumo do Mercado Público, onde a Peixaria São Carlos era pródiga em frutos do mar.  

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