“Por que é que eu vou fazer oposição a Elmano?”, pergunta Cid Gomes (vídeo acima) aos jornalistas que o rodeavam, na última quinta-feira, numa coletiva que o senador concedeu na Assembleia Legislativa do Ceará. Era uma cerimônia de posse de um correligionário seu, o deputado estadual Antônio Granja, que assumiu a vaga de Oriel Nunes, também do PDT, que por sua vez se licenciou para comandar uma secretaria no governo do estado.
Por Miguel do Rosário, compartilhado de O Cafezinho
Dias antes, Cid Gomes havia incendiado o debate político no estado ao participar do podcast As cunhãs, tocado pelas jornalistas Inês Aparecida, Hébely Rebouças e Kamila Fernandes. No programa Cid fala pela primeira vez sobre as eleições de 2022, e suas principais críticas destinam-se ao próprio irmão, que teria errado ao tomar decisões com o “fígado”, e a um setor minoritário do PDT que ainda, segundo suas palavras, mantém um “espírito beligerante” em relação ao PT.
Esse grupo do PDT, que defende uma postura de oposição a Elmano de Freitas, atual governador do Ceará, é liderado publicamente por Roberto Claudio, ex-prefeito de Fortaleza, e José Sarto, atual prefeito, do mesmo partido. Mas o seu líder oculto é Ciro Gomes, cuja estratégia em 2022, marcada por um virulento antipetismo, acabou contaminando também a campanha de Roberto Claudio ao governo do estado.
Na mesma entrevista, Cid Gomes disse que Ciro deverá voltar à cena política como um político de oposição a Lula, e sinalizou discretamente que isso produzirá novos constrangimentos ao PDT, porque o partido integra o Executivo, através do ministério da Previdência Social, ocupado por Carlos Lupi, e faz parte da base de apoio ao governo no Congresso.
“Lá no senado, somos base do governo”, explicou.
A bem da verdade, a situação do PDT cearense tem sido turbulenta desde o final do ano passado, sobretudo em Fortaleza, onde esse “espírito beligerante” do cirismo ainda tem uma presença forte.
Dois vereadores do PDT descolaram-se da linha do partido na Câmara, e vem fazendo oposição aberta ao prefeito José Sarto.
O jovem vereador de Fortaleza, Julio Brizzi, tem feito manifestações muito duras nas redes contra Sarto, acusando inclusive de estar se aproximando de Bolsonaro e Capitão Wagner.
A vereadora Ana Paula, por sua vez, apareceu em suas redes vestindo uma camisa com a inscrição “Fora Sartanás”.
A origem de toda essa confusão dentro do PDT pode ser remetida aos erros da estratégia de Ciro Gomes em 2022.
Em algum momento, o pedetista resolveu ir para o tudo ou nada, e não apenas ficou com nada, como arrastou seu partido, que perdeu a oportunidade histórica de governar um grande estado do Nordeste.
Na entrevista às Cunhãs e na coletiva que concedeu na Assembleia, o senador explica as razões de sua neutralidade muda na campanha para o governo do estado, recusando-se a apoiar publicamente o candidato do PDT, Roberto Claudio. Segundo Cid, ele foi “atropelado” pelos ciristas do PDT cearense, que decidiram romper o acordo costurado por ele mesmo, Cid, para lançar Izolda Cela para o governo. Cid criticou a “ambição” de Roberto Claudio (“achou que o céu era perto”), e a falta de bom senso do partido, ao recusar o apoio de Camilo Santana e Lula, os dois políticos mais populares do Ceará, a um candidato do PDT.
Desde o final do primeiro turno, no qual teve um desempenho pífio, inclusive no Ceará, perdendo até mesmo em Sobral, Ciro Gomes tem mantido um silêncio hostil, agressivo, onde parece autorizar tacitamente os descaminhos de sua própria militância. Esse espírito “beligerante” que Cid Gomes vê ainda presentes em setores do PDT, pode ser observado no que sobrou da militância cirista, tão embrigada de antipetismo que poderíamos até parodiar a famosa frase latina “fiat justitia, pereat mundos” (faça-se justiça, ainda que o mundo pereça). A paródia ficaria assim: permaneceremos antipetistas, ainda que o Brasil e o PDT sejam destruídos.
É quase fascinante testemunhar o que se tornou parte da militância cirista, que se encontra sem líder por tempo indeterminado, já que Ciro Gomes não se dá sequer ao trabalho de fazer uma live para conversar com os milhares de brasileiros que trabalharam de graça em sua campanha, nem dá nenhuma pista sobre seu eventual retorno ao debate político. A famosa “turma boa” do Ciro vem se dispersando num insuportável festival de vitimismo. Ciro teria sido “destruído” por artistas, jornalistas, influencers, traidores do próprio partido… A deputada mais votada do PDT, Duda Salabert, o senador Cid Gomes, o ex-prefeito de Niteroi, são xingados de traidores para baixo, porque se distanciaram da estratégia suicida de Ciro. Todos os nomes que a turma boa idolatrava ou admirava, como Marina Silva, Guilherme Boulos, Flavio Dino, Marcelo Freixo, passaram a ser tratados como inimigos mortais, porque se aproximaram de Lula. Carlos Lupi, que até pouco tempo era presidente nacional do partido, tem sido igualmente alvo de crítica virulenta por parte dos setores mais raivosos do cirismo, porque não teria expulsado sumariamente os quadros pedetistas que não apoiavam explicitamente Ciro Gomes, ou que sinalizaram para Lula antes do primeiro turno. Os poucos que arriscam sugerir uma autocrítica são imediatamente taxados de “infiltrados” do PT, atacados e isolados.
Parte dessa beligerância nasce de uma concepção muito equivocada do que seja um partido político. São os patriotários de partido. O partido é visto como uma pátria. Vargas, Brizola, Jango, Darcy, não seriam lideranças nacionais, mas lideranças do PDT. Alguns militantes parecem inclusive pensar que o PDT tem o direito de imagem dessas figuras, e qualquer indivíduo não-cirista ou não pedetista que procure se manifestar em favor dessas lideranças deve ser repudiado, como se fosse um ladrão do patrimônio alheio.
Da mesma forma, eles não consideram Lula como liderança nacional, apesar dos 60,3 milhões de votos, e de seu enorme prestígio internacional, e sim como uma liderança do PT, e apenas do PT.
Durante a campanha de 2022, fiz algumas análises sobre os erros de Ciro Gomes nas quais terminava com uma súplica para que o PDT convocasse um adulto para enquadrar as infantilidades do presidenciável.
Cid Gomes, aparentemente, é este adulto. Ao contrário de Ciro, que no segundo turno repetiu o gesto de 2018 e se isolou, Cid Gomes participou ativamente da campanha de Lula, chegando até a repetir um dos refrões da trilha sonora lulista: “sem medo de ser feliz”.
O senador agora, com todas essas manifestações, se antecipa a qualquer gesto brusco de seu irmão, e o isola desde já no quartinho escuro de seus ressentimentos. Trabalhando ativamente para alinhar o PDT ao governo Elmano, no Ceará, e a Lula, a nível nacional, Cid Gomes não parece muito interessado em saber se a aliança com o PT é bom ou ruim para o partido, desde que esteja claro que ela pode ser útil para melhorar a vida dos cearenses e dos brasileiros.
As ações de Cid Gomes não se limitam a dar entrevistas. Ele vem articulando o apoio de todos os prefeitos de seu grupo (só do PDT são 63 prefeitos) ao governo do estado. Dentre a bancada trabalhista do PDT na Assembleia, formada por 13 deputados, 10 estão já alinhados com o governo Elmano, 1 afirmou que seguirá o partido e 1 confessou a Cid Gomes que não quer ficar na oposição.Todos os cinco deputados federais do PDT, segundo Cid, também desejam que o partido seja base de apoio ao governo Elmano (e a Lula).
Ou seja, o grupo “beligerante” do PDT, liderado por Roberto Claudio, tem apenas 1 deputado estadual, e nenhum deputado federal.
Cid Gomes tem tentado convencer Sarto a se manter neutro, até mesmo para que isso não atrapalhe a sua própria reeleição. “Tem que trabalhar e parecer que está trabalhando. Não é hora de fazer política”, foi o recado direto de Cid Gomes para Sarto, no podcast.
No entanto, as articulações de Cid Gomes podem até ter reestabelecido a aliança a nível estadual, mas dificilmente serão suficientes para estruturar uma parceria nas eleições municipais, pelo menos na capital. O PT certamente deve lançar um nome para disputar com Sarto e Capitão Wagner a chance de governar Fortaleza, até porque a campanha desastrosa de Roberto Claudio puxou para baixo as expectativas eleitorais do próprio Sarto, abrindo uma “vaga” à esquerda.
Em Fortaleza, por exemplo, Roberto Claudio teve 21% dos votos válidos, atrás de Elmano (38%) e Capitão Wagner (41%). Ciro teve um desempenho ainda pior na capital: teve 9% dos votos, contra 35% de Bolsonaro e 53% de Lula.
Os números favorecem a tese de que há espaço para uma candidatura própria do PT em Fortaleza, com chance de vencer. Caso perca Fortaleza, esse núcleo cirista do PDT ficará inteiramente órfão dentro do partido. Até mesmo Sobral, quartel general dos Ferreira Gomes, hoje administrada pelo irmão mais novo, Ivo Gomes, deverá ser disputada, igualmente com grandes chances de vitória, pelo PT, na pessoa da vice de Ivo, a professora e enfermeira Christianne Coelho.
Assim como a ira de Aquiles, um dos protagonistas da Ilíada, o faz abandonar a guerra, Ciro Gomes deixa mais uma vez que seu “fígado”, como diz seu irmão, comande sua estratégia política. Afinal, há silêncios e silêncios. No caso de Ciro, é um silêncio covarde, egoísta, tóxico. A história de “esperar 100 dias” não faz sentido, porque isso valeria apenas para comentar sobre o governo Lula, e não para articular a política de seu próprio partido, ou conversar com sua militância.
Aquiles só volta a guerra após a morte de Pátroclo, seu melhor amigo. Com a democracia ainda se recuperando dos ataques de Bolsonaro e seu trupe, esperamos que não seja preciso morrer ninguém para convencer Ciro Gomes a voltar à luta democrática e do lado certo da história, ajudando o Brasil a isolar cada vez mais esses movimentos reacionários e de extrema-direita, infelizmente ainda muito influentes e perigosos.
Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.