A guerra está remodelando o mundo. Vamos aproveitar a urgência desse momento para tomar uma ação climática ou sucumbir a um boom final – e mortal – do petróleo e do gás?
Por Naomi Klein, compartilhado de The Intercept
UMA NOSTALGIA DE IMPÉRIO parece mobilizar Vladimir Putin – isso e um desejo de superar a vergonha da terapia de choque econômico-punitiva imposta à Rússia ao final da Guerra Fria. Uma nostalgia de “grandeza” norte-americana é parte do que mobiliza o movimento ainda liderado por Donald Trump – isso e um desejo de superar a vergonha de encarar a vilania do supremacismo branco que moldou a fundação dos Estados Unidos e ainda mutila o país. Uma nostalgia também mobilizou os caminhoneiros canadenses que ocuparam Ottawa por quase um mês, empunhando suas bandeiras vermelhas e brancas como um exército conquistador, evocando tempos mais simples, quando suas consciências não eram incomodadas por pensamentos sobre corpos de crianças indígenas, cujos restos ainda estão sendo descobertos nos terrenos de instituições genocidas que já ousaram se chamar de “escolas”.
Não se trata de uma nostalgia calorosa e acolhedora de lembranças remotas dos prazeres da infância. É uma nostalgia furiosa e aniquiladora que se apega a falsas memórias de glórias passadas contra todas as evidências que as mitigam.
Todos esses movimentos e figuras mobilizados por nostalgias compartilham um anseio por outra coisa – que está relacionada a eles, embora possa parecer que não. Uma nostalgia por uma época em que os combustíveis fósseis podiam ser extraídos da terra sem pensamentos incômodos sobre extinção em massa, sem crianças exigindo o direito a um futuro e sem relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), como o publicado no fim de fevereiro – e que pode ser lido, nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, como um “atlas do sofrimento humano e uma acusação de liderança climática fracassada”. Putin, é claro, lidera um petroestado que, de forma desafiadora, se recusou a diversificar sua dependência econômica em relação ao petróleo e ao gás, apesar do efeito montanha-russa devastador das commodities sobre seu povo e da realidade das mudanças climáticas. Trump é um obcecado pelo dinheiro fácil que os combustíveis fósseis oferecem e, como presidente, fez do negacionismo climático uma política de desregulamentação que é sua marca registrada.
Os caminhoneiros canadenses, por sua vez, não apenas escolheram paralisações com veículos de nove eixos e galões de combustível contrabandeados como símbolos de protesto. A liderança do movimento também está profundamente enraizada no óleo extra-sujo das areias betuminosas de Alberta. Em 2019, antes de formarem o que hoje chamam de “Comboio da Liberdade”, muitos desses mesmos atores encenaram o ensaio geral conhecido como United We Roll, outro comboio, que mesclava uma defesa zelosa dos oleodutos, oposição à precificação do carbono, xenofobia anti-imigração e nostalgia explícita por um Canadá cristão e branco.‘O petróleo é um substituto para uma visão de mundo mais ampla’.
Embora os petrodólares financiem esses atores e forças, é fundamental entender que o petróleo é um substituto para uma visão de mundo mais ampla, uma cosmologia profundamente vinculada ao Destino Manifesto e à Doutrina do Descobrimento, que classificou as vidas humanas e não humanas em uma hierarquia rígida, situando os homens brancos cristãos no topo. Nesse contexto, o petróleo é o símbolo da mentalidade extrativista: contempla não apenas a percepção de que seguir extraindo combustíveis fósseis é um direito concedido por Deus, como também é um direito continuar tomando o que quiser, deixando veneno pelo caminho sem nunca olhar para trás.
Por isso, a veloz crise climática representa não somente uma ameaça econômica para pessoas envolvidas nos setores extrativistas, mas também uma ameaça cosmológica para quem tem essa visão de mundo. Porque as mudanças climáticas significam a Terra nos dizendo que nada é de graça, que a era do “domínio” humano (branco e masculino) acabou, que não existe uma relação de mão única que envolva apenas tomar para si, que toda ação implica reação. Séculos de perfurações e jatos de combustível agora desencadeiam forças que fazem com que até as estruturas mais robustas criadas pelas sociedades industriais – cidades costeiras, rodovias, plataformas petrolíferas – pareçam vulneráveis e frágeis. Para a mentalidade extrativista, isso é inaceitável.
Dadas suas cosmologias comuns, não deveríamos nos surpreender com a convergência entre Putin, Trump e os “comboios da liberdade”, a partir de geografias díspares e circunstâncias extremamente diferentes. Trump celebra o “movimento pacífico de caminhoneiros, trabalhadores e famílias patrióticas do Canadá protestando por seus direitos e liberdades mais básicos”; Tucker Carlson e Steve Bannon torcem por Putin enquanto caminhoneiros ostentam bonés da campanha de Trump; Randy Hillier – membro da Assembleia Legislativa de Ontário e um dos apoiadores mais animados do comboio – declara no Twitter que “Muito mais pessoas morreram e morrerão dessa injeção [vacinas contra a covid-19] do que na guerra Rússia/Ucrânia”. E o que dizer do restaurante em Ontário que colocou em seu quadro de pratos do dia o anúncio de que Putin “não está ocupando a Ucrânia”, mas enfrentando o Great Reset e os satanistas, “lutando contra a escravização da humanidade”.
À primeira vista, essas alianças parecem profundamente estranhas e improváveis, mas veja um pouco mais de perto. Fica evidente que há uma atitude comum em relação ao tempo, apegada a uma versão idealizada do passado, que rejeita, de modo enfático, verdades difíceis sobre o futuro. Também compartilham o prazer em exercer força bruta: caminhão de 18 rodas versus pedestre, grito de realidade fabricada versus relatório científico cauteloso, arsenal nuclear versus metralhadora. Essa é a energia que emerge atualmente em esferas muito variadas, deflagrando guerras, atacando sedes de governos e desestabilizando, com postura desafiadora, os sistemas de apoio à vida do nosso planeta. Este é o ethos na raiz de tantas crises democráticas, geopolíticas e climáticas: o apego violento a um passado tóxico e a recusa a enfrentar um futuro mais complexo e inter-relacional, cujas fronteiras finais são os limites do que as pessoas e o planeta suportam. Trata-se da pura expressão do que a escritora bell hooks frequentemente descrevia, com sutil ironia, como “patriarcado capitalista supremacista branco imperialista” – porque às vezes é necessário descrever com precisão todas as grandes armas do nosso mundo.
A tarefa política mais urgente que temos em mãos é pressionar Putin o suficiente para que ele veja sua invasão criminosa da Ucrânia como um risco grande demais a se sustentar. Mas isso é apenas o mais simples dos começos. “Há uma janela breve e que se fecha rapidamente para garantir um futuro habitável no planeta”, afirmou Hans-Otto Portner, copresidente do grupo de trabalho do IPCC responsável pelo relatório histórico divulgado no final de fevereiro. Se há uma tarefa política unificadora em nosso tempo, é a de fornecer uma resposta abrangente a essa conflagração de nostalgias tóxicas. Em um mundo moderno que nasce do genocídio e da desapropriação, é necessário elaborar a visão de um futuro em que nunca estivemos antes.
Salvo raras exceções, as lideranças de nossos países não estão à altura de enfrentar esse desafio. Putin e Trump são figuras nostálgicas, que olham para trás, acompanhados por muita gente na extrema direita. Jair Bolsonaro foi eleito jogando com a nostalgia da ditadura militar no Brasil, e, de forma alarmante, as Filipinas estão prestes a eleger como presidente Ferdinand Marcos Jr., filho do falecido ditador que pilhou e aterrorizou o país asiático nas décadas de 1970 e 1980. Mas não se trata de uma crise exclusiva da direita. Muitos expoentes progressistas também são figuras profundamente nostálgicas que oferecem apenas neoliberalismo requentado como antídoto para o fascismo em ascensão, abertamente alinhados com interesses corporativos predatórios – da indústria farmacêutica aos grandes bancos – que destruíram padrões de vida. Joe Biden foi eleito com a promessa reconfortante de um retorno à normalidade pré-Trump, ainda que esse tenha sido o solo em que o trumpismo brotou. Justin Trudeau é a versão mais jovem do mesmo impulso: um eco superficial de economia da atenção do seu pai, o ex-primeiro-ministro canadense Pierre Elliott Trudeau. Em 2015, a primeira declaração de Trudeau Jr. na arena mundial foi “O Canadá está de volta”. Cinco anos depois, Biden disse: “A América está de volta, pronta para liderar o mundo”.
Não derrotaremos as forças da nostalgia tóxica com essas doses fracas de nostalgia um pouco menos tóxica. Não basta estar “de volta”, precisamos desesperadamente de algo novo. A boa notícia é que sabemos como é lutar, ao mesmo tempo, contra as forças que permitem as agressões imperiais, o pseudo-populismo de direita e o colapso climático. Soa muito como um Green New Deal, um marco para abandonar os combustíveis fósseis investindo em empregos sindicalizados de apoio à família, por meio de ocupações significativas – como a construção de casas verdes acessíveis e boas escolas, começando pelas comunidades mais sistematicamente abandonadas e poluídas. Isso requer deixar para trás a fantasia de crescimento sem limites e investir nos trabalhos de cuidado e reparo.
O Green New Deal — ou o Red, Black, and Green New Deal, iniciativa que busca envolver minorias no ativismo climático — é nossa melhor esperança para a construção de uma coalizão multirracial robusta da classe trabalhadora, fundada na busca de um terreno comum que supere divisões. É também a melhor maneira de bloquear os petrodólares que fluem para pessoas como Putin, já que as economias verdes que venceram o vício do crescimento sem fim não precisam de petróleo e gás importados. Também é assim que cortamos o oxigênio do pseudo-populismo de Trump/Carlson/Bannon, cujas bases se expandem porque eles são muito melhores em explorar a raiva dirigida às elites de Davos do que o Partido Democrata, cujos líderes, em sua maioria, integram essas elites.
A invasão russa na Ucrânia sublinha a urgência desse tipo de transformação verde, mas também traz à tona novos desafios. Antes mesmo de os tanques russos começarem a avançar, já ouvíamos que a melhor maneira de parar o ataque de Putin seria aumentando a produção de combustíveis fósseis na América do Norte. Poucas horas após a invasão, todos os projetos que incendiaram o planeta — e que o movimento por justiça climática conseguiu bloquear na última década — foram novamente colocados à mesa por políticos de direita e especialistas amigáveis à indústria: todos os oleodutos que haviam sido cancelados, os terminais de exportação de gás impedidos, os campos de fracking protegidos e os sonhos de perfurar o Ártico. Como a máquina de guerra de Putin é financiada por petrodólares, nos dizem que a solução é perfurar, fraturar e exportar mais por conta própria.‘Não existe jogo de curto prazo em relação aos combustíveis fósseis’.
Tudo isso é uma farsa capitalista desastrosa, do tipo que já comentei muitas vezes. Em primeiro lugar, a China segue comprando petróleo russo, não importa o que aconteça na formação de Marcellus ou nas areias betuminosas de Alberta. Em segundo lugar, as linhas do tempo são fantásticas. Não existe jogo de curto prazo em relação aos combustíveis fósseis. Os projetos aventados como solução para a dependência em relação aos combustíveis fósseis russos levariam anos para gerar impacto. Além disso, para que seus custos irrecuperáveis fizessem sentido financeiramente, eles precisariam seguir operando por décadas, o que desafia os alertas cada vez mais desesperados da comunidade científica.
Mas é claro que o impulso para novos projetos fósseis na América do Norte não tem a ver com ajudar os ucranianos ou enfraquecer Putin. A verdadeira razão pela qual se tira a poeira de todos esses sonhos antigos é muito mais grosseira: essa guerra os tornou mais lucrativos da noite para o dia. Na semana em que a Rússia invadiu a Ucrânia, o petróleo de referência europeu — Brent — atingiu o preço de 105 dólares o barril, algo que não era visto desde 2014, e o valor ainda paira acima dos 100 dólares, o dobro comparado ao preço do final de 2020.
Bancos e empresas de energia estão desesperados para aproveitar ao máximo essa alta, no Texas, na Pensilvânia e em Alberta.
Tão certo quanto a determinação de Putin para redesenhar o mapa pós-Guerra Fria do Leste Europeu, esse jogo de poder do setor de combustíveis fósseis deve alterar o mapa da energia. O movimento por justiça climática ganhou algumas batalhas muito importantes na última década. Conseguiu banir o fracking em diversos países, estados e províncias. Também impediu o avanço de grandes oleodutos, como o Keystone XL, muitos terminais de exportação e perfurações no Ártico. As lideranças indígenas desempenharam um papel central em quase todas as lutas. Além disso, de forma extraordinária, até agora 40 trilhões de dólares em dotações e fundos de pensão de mais de 1.500 instituições já foram desinvestidos dos combustíveis fósseis, fruto de uma década de mobilização obstinada em prol do desinvestimento.
Mas aqui há um segredo que nossos movimentos muitas vezes escondem até de si mesmos: desde que o preço do petróleo despencou em 2015, temos lutado contra uma indústria que está de mãos atadas. Isso ocorre porque o petróleo e o gás mais baratos e de fácil acesso estão praticamente esgotados na América do Norte. As batalhas relacionadas a novos projetos dizem respeito sobretudo a fontes não convencionais e de extração mais cara: combustíveis fósseis em rochas de xisto, nas profundezas oceânicas ou sob o gelo do Ártico, ou então o lodo semissólido das areias betuminosas de Alberta. Muitas dessas novas fronteiras de combustíveis fósseis só se tornaram lucrativas após os EUA invadiram o Iraque em 2003, o que elevou os preços do petróleo. De modo repentino, investimentos multibilionários para extrair petróleo do fundo do mar ou transformar o betume lamacento de Alberta em petróleo refinado passaram a fazer sentido. Vivemos anos de uma explosão, como descreve o Financial Times ao descrever o frenesi das areias betuminosas como “o maior boom de recursos da América do Norte desde a corrida do ouro de Klondike”.
No entanto, quando o preço do petróleo colapsou em 2015, a determinação da indústria de continuar crescendo em ritmo vertiginoso se tornou vacilante. Em alguns casos, os investidores não tinham certeza de que receberiam seu dinheiro de volta, o que levou algumas grandes empresas a recuarem em relação ao Ártico e às areias betuminosas. Com lucros e ações em queda, os ativistas do desinvestimento conseguiram argumentar que os estoques de combustíveis fósseis não eram apenas imorais, como também um péssimo investimento, mesmo em termos capitalistas.
Bem, as ações de Putin desataram as mãos da indústria do petróleo e as transformaram em punhos.
Isso explica a recente onda de ataques ao movimento climático e ao pequeno grupo de políticos democratas que obteve avanços no que diz respeito a ações climáticas com base científica. O deputado republicano Tom Reed, de Nova York, afirmou: “Os EUA têm os recursos energéticos para tirar totalmente a Rússia do mercado de petróleo e gás, mas não usamos esses recursos por causa do favorecimento partidário do presidente Biden aos extremistas do meio ambiente do Partido Democrata”.
A verdade é exatamente o oposto. Se as propostas de políticas promissoras da última década, como o Green New Deal, tivessem sido implementadas, Putin não seria capaz de desrespeitar a lei e a opinião pública internacional como tem feito de forma flagrante, com a crença e a segurança de que seguirá tendo clientes para seus hidrocarbonetos cada vez mais lucrativos. A crise subjacente que enfrentamos não é que os países da América do Norte e do Leste Europeu tenham falhado em construir infraestruturas de combustíveis fósseis para desbancar o petróleo e o gás russos, e sim que todos nós – EUA, Canadá, Alemanha, Japão – ainda consumimos quantidades obscenas e insustentáveis desses combustíveis – na verdade, de energia, ponto final.
Conhecemos a saída para essa crise: ampliar a infraestrutura para as energias renováveis, abastecer casas com energia eólica e solar, fazer a transição dos nossos sistemas de transporte para modelos elétricos. E como todas as fontes de energia implicam custos ecológicos, também devemos reduzir a demanda por energia em geral, com maior eficiência, mais transporte coletivo e menos desperdício decorrente do consumo excessivo. O movimento pela justiça climática defende isso há décadas. O problema, portanto, não é que as elites políticas tenham passado muito tempo escutando “extremistas ambientais”, e sim que elas praticamente não nos ouviram.
Agora nos encontramos em um momento estranho. Muita coisa parece estar em jogo. A BP anunciou que venderá sua participação de 20% na gigante petrolífera russa Rosneft, e outras empresas estão seguindo esse exemplo. A notícia é potencialmente boa para a Ucrânia, já que a pressão sobre esse setor essencial certamente atrairá a atenção de Putin. No entanto, também devemos ter consciência de que isso provavelmente só está acontecendo porque a BP planeja tirar o máximo proveito do frenesi do petróleo e do gás na América do Norte e em outras regiões, desencadeado pela alta dos preços. “A BP segue confiante na flexibilidade e resiliência de sua estrutura financeira”, assegurou aos observadores do mercado o comunicado da empresa que anunciou a venda da participação na Rosneft.
Também é significativo que a notícia da BP tenha chegado poucas horas após o chanceler alemão Olaf Scholz anunciar que seu país construirá dois novos terminais de importação para receber carregamentos de gás natural, aumentando a dependência em relação aos combustíveis fósseis, em meio a uma emergência climática. Há muito tempo, esses terminais são criticados por ambientalistas alemães, mas agora eles são propostos sob o manto da guerra, apresentados como a única forma de compensar o gás que, segundo declaração recente de Scholz, não fluiria pelo Nord Stream 2 – gasoduto recém-construído que atravessa o Mar Báltico. Esse movimento transformou uma peça de infraestrutura de combustível fóssil de última geração em um “rombo de 11 bilhões de dólares”, nas palavras do chefe da sucursal europeia do The Globe and Mail, Eric Reguly.
No entanto, não são apenas os projetos de combustíveis fósseis que estão sendo mortos e ressuscitados. “Estamos dobrando a aposta nas energias renováveis”, anunciou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, antes da invasão russa. “Isso aumentará a independência estratégica da Europa em relação à energia.”
Ao observarmos essas peças de xadrez geopolítico voando pelo tabuleiro em questão de dias – acompanhadas da última onda de sanções drásticas contra empresas aéreas e bancos russos –, há muitas razões para o temor, incluindo novas medidas que punem os pobres pelos crimes dos ricos. Mas também há lampejos de otimismo. O que dá ânimo é menos a substância de qualquer movimento individual do que sua velocidade e determinação. Como nos primeiros meses da pandemia, a resposta à invasão russa deve nos lembrar que, apesar da complexidade de nossos sistemas financeiro e energético, eles ainda podem ser transformados por decisões de meros mortais.‘Se a BP pode desistir de uma participação de 20% em uma importante petrolífera russa, qual investimento não pode ser abandonado se tiver como premissa a destruição de um planeta habitável?’
Vale a pena refletir sobre algumas implicações. Se a Alemanha pode abandonar um gasoduto de 11 bilhões de dólares porque de repente ele é visto como imoral (sempre foi), então toda a infraestrutura de combustíveis fósseis que viola nosso direito a um clima estável também deveria ser debatida. Se a BP pode desistir de uma participação de 20% em uma importante petrolífera russa, qual investimento não pode ser abandonado se tiver como premissa a destruição de um planeta habitável? E se é possível anunciar dinheiro público para a construção de terminais de gás em um piscar de olhos, então não é tarde para lutarmos por muito mais energia solar e eólica.
Como o ambientalista Bill McKibben escreveu em sua excelente newsletter, Biden poderia ajudar nessa transformação, usando os poderes disponíveis em períodos emergenciais para invocar a Lei de Produção de Defesa, construir uma grande quantidade aquecedores elétricos e enviá-los para a Europa, com o objetivo de mitigar a dor da perda do gás russo. Esse é o espírito criativo que necessitamos neste momento. Porque se estamos construindo uma nova infraestrutura de energia – e precisamos fazer isso –, certamente deve ser a infraestrutura do futuro, e não mais nostalgia tóxica.
Há muitas lições que devemos tirar do momento convulso que estamos vivendo. Sobre o risco de permitir que armas nucleares se proliferem sem controle. Sobre a miopia de constranger antigas grandes potências. Sobre a grotesca visão seletiva da mídia ocidental sobre quais países podem ser invadidos e quais vidas são descartáveis. Sobre quais migrações forçadas são tratadas como crise para as pessoas que se deslocam e quais são entendidas como crise para os países aos quais elas se dirigem. Sobre a disposição de pessoas comuns na luta por suas terras – cujas batalhas por autodeterminação e integridade territorial são celebradas em alguns casos como heroicas, em outros, como atividades terroristas. São lições que devemos aprender quando vivemos este momento de história nua e crua.
E devemos aprender esta também: quando a vida está em jogo, nós, humanos, ainda podemos mudar o mundo que construímos e fazê-lo de forma rápida e grandiosa. Assim como ocorreu há dois anos, quando foi declarada a pandemia, vivemos um momento aterrorizante, mas altamente maleável.
A guerra está remodelando nosso mundo, mas a emergência climática também. A questão é: vamos aproveitar os níveis de urgência e ação dos tempos de guerra para catalisarmos a ação climática e para que tenhamos mais segurança nas próximas décadas? Ou permitiremos que a guerra jogue mais combustível no planeta já em chamas? Esse desafio foi colocado de forma mais acentuada recentemente por Svitlana Krakovska, cientista ucraniana que integra o grupo de trabalho do IPCC, responsável pelo relatório divulgado em fevereiro. Enquanto seu país era atacado pelo Kremlin, ela teria dito a seus colegas cientistas, em reunião virtual, que “as mudanças climáticas provocadas pelo homem e a guerra na Ucrânia têm as mesmas raízes: combustíveis fósseis e nossa dependência em relação a eles”.‘Ao negar o colapso climático, basta um passo para negar pandemias, eleições e basicamente qualquer forma de realidade objetiva’.
Os ataques russos à Ucrânia devem nos lembrar que a influência corruptora do petróleo e do gás está na raiz de praticamente todas as forças que desestabilizam o planeta. E a presunção arrogante de Putin? Um oferecimento de Petróleo, Gás e Armas Nucleares. E os caminhões que ocuparam Ottawa por um mês, assediando moradores e enchendo o ar de fumaça, inspirando outros comboios ao redor do mundo? Uma líder da ocupação foi a um tribunal vestindo um moletom com a frase “Eu ? petróleo e gás”. Ela sabe quem são seus patrocinadores. E a negação da covid-19, acompanhada de uma crescente cultura conspiratória? Ei, ao negar o colapso climático, basta um passo para negar pandemias, eleições e basicamente qualquer forma de realidade objetiva.
Neste estágio avançado do debate, muito disso é bem compreendido. O movimento pela justiça climática ganhou todas as discussões sobre ações que transformam. No nevoeiro da guerra, o que corremos o risco de perder é a nossa coragem. Porque nada é tão capaz de mudar a pauta como a violência extrema, mesmo aquela ativamente subsidiada pelo aumento do preço do petróleo. Para evitar que isso aconteça, poderíamos fazer muito mais do que nos inspirar em Krakovska, que teria dito a seus colegas de IPCC, naquela reunião a portas fechadas: “Não vamos nos render na Ucrânia. E esperamos que o mundo não se renda para construir um futuro resiliente ao clima”. Segundo testemunhas, as palavras dela comoveram tanto seu colega russo que ele teria se aproximado de Krakovska para pedir desculpas pelas ações do governo Putin – um vislumbre breve de um mundo que olha para frente, e não para trás.
Tradução: Ricardo Romanoff