Por Fernando Horta, no Facebook –
Quando cheguei em Brasília para fazer mestrado na UnB, vim de “mala e cuia”, como se diz na minha terra. Vim com filhos e minha avó, que na época ainda era viva e necessitava de cuidados 24 horas, pois tinha esquizofrenia e tinha tido as pernas e as mãos inutilizadas por ação de filhos gananciosos. O tempo que eu tinha dava banho e a levava até ao banheiro. Mas, precisávamos de uma pessoa para nos ajudar.
Foi quando encontramos a Wal. Wal tinha já mais de 40 anos e estava desempregada. Era do nordeste e morava em Brasília há mais de 25 anos. Tinha dois filhos que estavam em escola pública e por quem, depois aprendi, Wal dava literalmente o sangue.
Wal era meu braço direito, tornou-se amiga e parte daquele esforço de sobrevivência. Wal tinha perdido o emprego fazia quatro meses. A outra “patroa” a havia proibido de comer enquanto fazia o serviço. Wal me contou que ela estava quase desmaiando por pressão baixa e comeu uma banana, pelo quê foi ofendida e repreendida como “muleca”. Wal não aguentou e respondeu. Foi demitida.
Quando contratei Wal, gastei alguns meses convencendo-a a assinar sua carteira. Com mais de 30 anos de trabalho (25 anos só em Brasília) tinha uma carteira de trabalho em branco. Tentou me convencer a pagar para ela o valor do inss e outros encargos. Disse-me que o “Pastor” tinha dito que assim era melhor. Wal ia usar parte disto para pagar a Igreja. Não vou entrar na discussão do mal que causam estas igrejas e como roubam das pessoas mais pobres. Meu problema era a Wal. Ameacei de demissão, caso ela não aceitasse a carteira assinada. Fiquei dois dias em pânico dela não aceitar e eu perder uma pessoa honesta, capaz e tão correta. No final Wal aceitou.
Eram tempos finais de Lula e o país ia bem. Podíamos pagar e o salário dela era reajustado. Wal sonhava que seus meninos iriam para a faculdade. Conversávamos diariamente. Eles tinham futuro. O Brasil tinha futuro. Eu tinha presente. Wal tinha trabalho. O governo tinha planos e carteiras assinadas recolhendo impostos.
Em 2014, Wal começou a faltar ao trabalho alegando dor de cabeça e desmaios. Insisti para que fosse ao médico. Foi e não acharam nada. Continuou faltando ao trabalho, com desmaios até na parada de ônibus. Levaram de emergência a um hospital, fizeram tomografia (que em seis meses nenhum médico havia pedido) e constataram o pior. Wal tinha um tumor do tamanho de uma laranja na cabeça. Precisa operar, precisava parar de trabalhar para lutar pela sobrevivência.
Graças aos governos do PT e a um gaúcho de esquerda que foi para Brasília, Wal pode receber auxílio saúde. Depois evoluiu para aposentadoria por incapacidade. Não fosse por Lula, aquela nordestina que trabalhava desde os 10 anos para gente rica e branca teria ficado morrendo à míngua.
Vejam a importância das políticas sociais de um governo.
Veio o golpe. Veio Temer.
Com a redução nos investimentos em saúde, Wal não pode ter na velocidade e no número a quimioterapia e a radioterapia que precisava. Os tumores voltaram e outras operações foram feitas. Pior, com as “auditorias” de Temer, Wal foi classificada como “possível fraude” ao sistema de seguridade pois tinha 40 e poucos anos, contribuído apenas 3 ou 4 e estava aposentada. Temer cortou a aposentadoria de Wal por quase seis meses até “perícia extraordinaria”.
Wal passou necessidade. Não tinha dinheiro, nem conhecimento para advogados desfazerem aquele absurdo. Os absurdos de um governo neoliberal contra os pobres, para “diminuir números”, ficam sempre impunes. Wal me pediu ajuda para fazer rancho, eu já estava apertado. Os tempos do golpe e da crise de Temer já se faziam sentir.
Ajudei como pude. Me contaram depois que aquela guerreira nordestina, forte e orgulhosa que eu conheci, passou a pedir ajuda aos vizinhos para poder comer. Uma perícia teve a cara de pau de dizer que Wal estava “parcialmente apta” ao trabalho, não podendo fazer força. Falei com Wal ao telefone e depois pessoalmente. Ela chorava por não conseguir se expressar.
As operações lhe haviam deixado sequelas e apesar de usar um lindo turbante para esconder a falta de cabelos, a gente via como um governo canalha e desonesto havia quebrado a vontade de Wal. Os tumores voltavam, ajudados pelo pequeno número de sessões de quimio e rádio. Wal precisava fazer outra operação. Não havia agenda. Os médicos se multiplicavam para dar conta da precarização de Temer. Atrasaram a operação em alguns meses. O tumores eram agressivos.
Quando Wal foi restituída para receber a aposentadoria, após duas outras perícias atestarem a sua incapacidade, os atrasados não foram pagos. Wal precisava entrar na justiça. Assim age um governo neoliberal. Coloca barreira na frente de barreira para fazer com que o cidadão pobre não receba o seu direito. No final do “exercício”, algum tecnocrata canalha vai usar o direito não pago de Wal e de milhões de outros como propaganda de “boa gestão”, de “redução de custos”. Algum senador desonesto e cafajeste vai usar Wal como número para mostrar como “mamam no Estado”.
Finalmente, Wal vai operar novamente. Me disseram que os médicos deram poucas chances de sobrevivência. Se sobreviver vai ficar com sérias sequelas. Para mim, a imagem de Wal que quero reter é a Wal do governo Lula, que na sexta feira fazia piada comigo dizendo que ia ao forró “viver a vida”. Dizia que gaúcho não sabia o que era de bom um “forró” e emendava um “oxente” de orgulho e com uma força que só mulheres negras, solteiras e mães sabem o tamanho.
Não falei propositadamente dos maiores amores de Wal. Três filhos. Um mais velho de quase 25, um de 18 e um de 16. Enquanto ela ajudava a cuidar dos meus filhos – com um amor de impressionar – me contava tudo sobre os dela. Ralhava com eles no celular. Cobrava as aulas, as lições. Dei aula no colégio que eles estudavam. Wal me perguntava sobre os professores, sobre o “ambiente”. “Minha mãe era empregada doméstica, eu trabalho com limpeza e faxina, mas estes meninos vão estudar e ser gente”, dizia ela.
Mal sabia Wal que eu a achava “gente”, mesmo que ela se colocasse fora deste grupo. Era o Brasil do PT. O Brasil que quebrava as correntes da pobreza e a prisão do imobilismo social. Eu sabia tudo “daqueles meninos”. Wal lutava como uma leoa por eles.
Com Temer, o mais velho está há dois anos sem emprego, os mais novos largaram o colégio e hoje estão nos pequenos crimes e nas drogas. Quando a aposentadoria de Wal foi cortada, eles foram empurrados ainda mais para os braços do crime. Sem dinheiro ou comida em casa, eles tiveram que “se virar”. “Se virar” como todo negro jovem, morador de periferia e com pouco estudo no Brasil se vira. Um dia (e eu rezo para que não) algum policial ou “homem de bem” vai dar-lhes um tiro e se vangloriar por ter “matado bandido”.
Eles já viraram estatística para o governo Temer. Tal qual Wal virou. Estatística para aprovar intervenção, para fazer ppp para construir presídio e para colocar a classe média contra os pobres. Wal, muito provavelmente, não vai ver o destino dos seus filhos, mas eu li em seus olhos, na última vez que a abracei, que ela sabia que tinha perdido a luta.
Eu vi como um governo neoliberal acabara com aquela nordestina que tanto me ajudou e por quem eu tanto tenho apreço. Eu vi como um “gestor” mata. Duas gerações. Eu vi como as panelas trouxeram “o Brasil de volta”. E eu não perdoo estes canalhas.
A história de Wal é a prova de como um governo dá esperança e condições de vida (lula e dilma) e como tira e destrói as pessoas (Temer). A Wal que marcou a minha vida e a de meus filhos é a Wal pela qual eu luto. Era o símbolo de um país orgulhoso e com futuro, que as panelas e as camisas da seleção transformaram em “vagabunda e aproveitadora”.
Não vão conseguir devolver Wal. Não vão conseguir devolver o futuro dos filhos dela. Não vão conseguir tirar a minha dor de ter visto esta história de perto.
Fora Temer é pouco. Por mim, Temer e todos os seus apoiadores morreriam como estão deixando Wal morrer.
Fora Temer é pouco. É preciso Lula presidente.
E eu prometi que iria conhecer um forró com Wal. Eu vou Wal, eu vou. Depois que arrumarmos esta merda toda, eu vou. E você vai estar comigo. Você já é parte de mim. Parte da minha luta.
Muito obrigado, por tudo. “Óxente”!