Por Arcírio Gouvêa, jornalista. Texto extraído da sua seção Noel Rosa: O Poeta da Vila (Facebook)
Em meados dos anos 30, Noel Rosa, assim como a massa do samba, não era assíduo frequentador do bairro da Lapa. Para as farras, o lugar preferido era o Mangue, de ambiente mais popular e mais, digamos, permissivo. Sem muita cartola e fraque. Em “O X do Problema”, Noel diria: “Nasci no Estácio / Não posso mudar minha massa de sangue / Você pode ver que palmeira do mangue / Não vive na areia de Copacabana“. Mas foi num cabaré da Lapa, o Apolo, na Rua Mem de Sá, que Noel conheceu Cecy (Juracy Corrêa de Moraes), o grande amor da sua vida.
Em homenagem ao compositor, em 1934, já um grande cartaz da música popular, foi organizada nesse local uma festa de São João. Noite de sábado, o Apolo está lotado, gente saindo pelo ladrão, a pista de dança sem que se possa dar um passo, as mesas tomadas. Um tanto estranha para o lugar, a decoração, porém, é fiel ao clima: lanternas e bandeirinhas coloridas suspensas cruzam o salão. Só falta a fogueira, que arderia depois no coração de Noel para o resto da vida, a partir desse dia.
Enquanto era esse o clima no Apolo, Noel, angustiado e tenso, está em uma festa com sua mulher Lindaura na Ilha do Governador. A todo momento pergunta a hora a alguém. Lindaura não desgruda de seu pé, sabe quem ele é e quantas já lhe aprontara. Uma vez, a esquecera em uma festa no longínquo (à época) bairro de Bangu, de madrugada e em outra também sumira de uma festa no centro da cidade, com Lindaura sendo levada cavalheirescamente para casa de táxi por Mário Reis.
Nessa festa da Ilha do Governador, Noel também era o convidado de honra, iria cantar seus grandes sucessos e todo mundo estava ali, na verdade, para ouvi-lo. De repente, Noel desaparece. Procura daqui, procura dali e nada. Ele escapulira e dirigi-se correndo para as barcas. Todo esbaforido, pega a primeira que sai em direção ao centro da cidade. Um trajeto naquele tempo lento em barcas antigas.
Quando todos no Apolo já achavam que Noel não apareceria mais eis que ele surge todo apressado. A casa se acende de vez com a luz da sua presença. Noel começa a cantar, em sua apresentação, alterna grandes sucessos com músicas menos conhecidas. A platéia vem abaixo quando ele faz um de seus números prediletos, cantar, “comme il faut”, o samba “Gago Apaixonado”. Samba esse que somente Noel conseguiu transmitir exatamente o tom de brincadeira irreverente da imitação de um gago cantando, embora a composição tenha sido gravada por centenas de grandes nomes de nossa música popular.
Mesmo do palco, o compositor não deixa de notar uma moça vestida de verde que não havia de ter idade para estar ali (na verdade, contava 16 anos e, dias mais tarde, começaria a trabalhar naquele mesmo cabaré). Depois do espetáculo, os dois conversam, e Noel, rápido no gatilho, se oferece para levá-la em casa. Ela, educada e malandra, recusa.
Em “Dama do Cabaré” ele registra esse encontro:
Foi num cabaré da Lapa
Que eu conheci você
Fumando cigarro
Entornando champanhe no seu soirée
Dançamos um samba
Trocamos um tango por uma palestra
Só saímos de lá
Meia hora depois de descer a orquestra
Lá fora, um bom carro nos esperava
Mas você se decidiu
E foi pra casa a pé
No outro dia lá nos Arcos eu andava
À procura da dama do cabaré
Eu não sei bem se chorei
No momento em que lia
A carta que recebi
Não me lembro de quem
Você nela me dizia
Que quem é da boemia
Usa e abusa da diplomacia
Mas não gosta de ninguém.
Noel se concede algumas liberdades poéticas nessa letra: claro que Cecy não fumava. Nem poderia entornar champanhe no soirée porque não usava soirée aquela noite e, provavelmente, nem tinha dinheiro para usar soirée. Um bom carro na porta também é difícil. Noel tinha um carro, um Ford Bigode, que ele apelidou de “O Pavão”, mas que não estava ali e nem era bom, pois enguiçava muito e vivia na garagem. Fora-lhe dado por Francisco Alves, em troca de direitos autorais devidos a Noel e não pagos nunca. É provável que quando ele diz que “lá fora um bom carro nos esperava” estivesse se referindo ao táxi de seu amigo “Malhado”, motorista de praça acostumado a levar as celebridades da época para casa. Só que “Malhado” costumava fazer ponto no Café Nice, muito mais chic e elegante e não ali no Apolo.
E outra coisa: Cecy dividia um apartamento com uma amiga a poucos metros dali na Rua Gomes Freire, talvez, por isso, tenha preferido ir pra casa a pé. Mas que dançaram um samba, dançaram; e palestraram, como já foi dito, deixando o tango para lá, nacionalista ao extremo que era, não iria, logo nesse dia, dançar um tango, coisa de argentino.
Composto em 1934, o samba só seria gravado três anos depois, por Orlando Silva, na Victor, fazendo parte da trilha sonora do filme “Cidade Mulher”, produção de Carmem Santos e direção de Humberto Mauro. Onde Noel também compôs a música tema “Cidade Mulher”, esplendidamente gravada por Orlando Silva, uma obra-prima de letra e melodia, que muitos estudiosos (assim como eu também) acreditam que deveria ser o hino oficial da cidade do Rio de Janeiro.
A mesma festa de São João e a mesma Cecy ainda inspirariam Noel a fazer o que muitos consideram sua obra-prima, o dolorido “Último Desejo”:
Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão
Perto de você, me calo
Tudo penso e nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero o seu beijo
Pois meu último desejo
Você não pode negar
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você me diga
Se você me quer ou não
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separação
Às pessoas que eu detesto
Diga sempre que eu não presto
Que meu lar é o botequim
Que eu arruinei sua vida
Que eu não mereço a comida
Que você pagou pra mim
Composto em fins de 1936, no período final da sua vida, foi passado para a pauta no leito de morte, com o compositor mal podendo ditar a melodia ao amigo Vadico. A gravação de Aracy de Almeida, em julho de 1937, para a Victor, realizada, dois meses depois da morte do Poeta da Vila, adultera o sentido original de um dos versos, erro que tem sido repetido na maioria das interpretações ao longo dos anos. Noel não escreveu “que meu lar é UM botequim”, e sim “que meu lar é O botequim”.
Essa não foi a primeira vez que Aracy adulterou os versos de Noel, em várias outras composições, Aracy, a seu bel-prazer, resolvia mudar o sentido original da letra na hora da gravação no estúdio, porque não gostava dessa ou daquela palavra. Uma atitude desastrosa e que denotava uma imensa falta de conhecimento cultural por parte da melhor intérprete das músicas do Poeta da Vila.
Com relação a essa gravação, com acompanhamento do regional “Boêmios da Cidade”, comandado por Benedicto Lacerda (que faz a flauta) por conta do destino e da confluência astral no estúdio, ficou de uma perfeição sonora e técnica impecáveis, uma das melhores de seu tempo, uma época ainda de incipiente estrutura de estúdio e com apenas um canal para registrar vozes e instrumentos.
No entanto, uma gravação do mesmo samba, realizada por Marília Baptista, rival de Aracy na preferência do compositor, feita muitos anos mais tarde, em 1963, apresenta uma melodia diferente na segunda parte. Marília morreu jurando que Noel lhe ensinara assim. Porém, como poderia ter-lhe ensinado uma outra parte se para “passar” a melodia para Vadico registrar na pauta já fora um sacrifício, com Noel sussurrando melodia e letra? E quando se deu isso, já que ele morreu logo depois? Fica a incógnita.
Se no primeiro samba (No outro dia lá nos Arcos eu andava / À procura da dama do cabaré) Noel, que tinha acabado de conhecer a futura amante, respeita e entende seu comportamento boêmio numa atualização, dir-se-ia que os dois estavam apenas a fim de “ficar” em “Último Desejo” o compositor faz um ajuste de contas em grande estilo poético, e nos brinda com uma despedida em alto estilo da vida e do seu amor, com uma das mais belas jóias de nossa música popular.
Noel compôs “Último Desejo”, no Restaurante “Taberna da Glória”, no bairro da Glória, que faz divisa com a Lapa, embora mais sofisticado e elegante. Para os amantes da obra e vida de Noel, o restaurante ainda existe, um pouco distante do lugar em que estava localizado na década de 30, mas as mesas, onde em uma Noel compôs a canção estão lá, (já postamos aqui no grupo uma extensa reportagem sobre o assunto).
O relacionamento de Noel com Cecy, infelizmente, para o compositor, foi desastroso e angustiante. Muitos amigos, inclusive, acusaram Cecy (lógico, inflamados pela perda do amigo) de culpada por ele ter contraído tuberculose, já que passava horas a fio com ela pelas madrugadas, alimentando-se mal e dormindo pior ainda, nas estalagens da Lapa.
Cecy nunca amou verdadeiramente Noel, pelo menos não como ele queria. Era apenas uma grande amiga. Noel sabia disso, em várias letras deixa transparecer sua dor. Ao mesmo tempo, sabe que nada poderia dar em troca para Cecy. Não tinha nada, apenas seu talento. Não pensava no futuro, vivia apenas o presente. E o amor não vive de barriga vazia. Também não era nenhum santinho e, apesar de amar Cecy, ele embarcava sempre no primeiro rabo de saia que aparecesse.
Em contrapartida, esse relacionamento rumoroso, ilógico e conturbado, que muito fez Noel sofrer em silêncio, exposto no samba “Eu Sei Sofrer” (já postamos aqui a letra original e não a modificada por Aracy na gravação), deixou um dos maiores legados para a nossa música popular. Como a ostra que produz a pérola da areia que lhe incomoda o viver.
Quem é que já sofreu mais do que eu?
Quem é que já me viu chorar?
Sofrer foi o prazer que Deus me deu
Eu sei sofrer sem reclamar
Quem sofreu mais que eu não nasceu
Com certeza Deus já me esqueceu
Mesmo assim não cansei de viver
E na dor eu encontro prazer
Saber sofrer é uma arte
E pondo a modéstia de parte
Eu posso dizer que sei sofrer
Quanta gente que nunca sofreu
Sem sentir, muitos prantos verteu
Já fui amado, enganado
Senti quando fui desprezado
Ninguém padeceu mais do que eu
* Na próxima postagem, diremos que fim levou Cecy e a última vez em que foi vista, depois de seu desaparecimento misterioso.