Compartilhado de Ultrajano –
Quando uma notícia relevante em meio à triste situação que o país atravessa é negligenciada e ignorada pela grande imprensa – como aconteceu, lembremos, no período das “Diretas Já” –, não perdem apenas os jornais, perdemos todos nós jornalistas, perde toda a sociedade. Dar as costas a manifestações espontâneas como as de sábado (…) é uma vergonhosa demonstração de desrespeito à imparcialidade e à independência que tanto esperamos de uma imprensa séria e digna
POR LUIZ ANTONIO DO NASCIMENTO – MAIO 31, 2021
Estava fora de combate. Cheguei à beira do outro lado da linha. E pedi encarecidamente ao meu eterno amigo Trajano que me desse uma folga. Tinha passado por um edema pulmonar agudo, provocado por uma síndrome de nome muito estranho: takotsuba, que, contou-me o médico, é o nome de uma espécie de panela japonesa que imobiliza o polvo antes que ele morra no vapor. Pois bem: em apenas 0,0026% dos casos, a síndrome ataca após uma ablação destinada a corrigir arritmias no átrio do coração. Paralisa os ventrículos e o sangue jorra para os pulmões. Aconteceu comigo.
Não sei se consegui reproduzir corretamente o que me foi explicado. Desnecessário dizer, porém, que Trajano me deu a folga e solidariamente se preocupou comigo. Encerramos a conversa no sábado com a promessa de que ele nos representasse na manifestação programada para o fim da tarde na Paulista. E esta é a razão que me fez cancelar a folga e desabafar contra o papel da imprensa na cobertura do evento. E logo num dia em que o jornalismo perdia um de seus editores mais corretos e exemplares do nosso papel na sociedade. O comunista e vascaíno Mílton Coelho da Graça.
Vi imagens nas redes sociais, A multidão em São Paulo e no Rio de Janeiro, a violência da polícia no Recife, as concentrações em todas as grandes cidades do país. Demonstrações comoventes de apego à democracia, desabafos irados contra o governo que nada fez para preservar a saúde de seu povo, apelos persistentes por comida no prato, por um aumento no auxílio emergencial, por mais verbas para a educação, mais vacinas e uma palavra de ordem: “Fora Bolsonaro”. Ou, como anunciava um cartaz que uma mulher carregava, “Vaza Genocida”.
Confesso: trazia comigo uma dúvida: estaríamos fazendo a mesma coisa que os negacionistas ao provocar aglomerações e não respeitar o distanciamento social? A dúvida não me atormentou por muito tempo. Simplesmente porque não há vírus pior que o genocida Bolsonaro. Além disso, todas as pessoas foram orientadas – e tinham consciência disso – a usar máscaras, levar álcool em gel e manter o distanciamento possível.
Fiquei animado com a resposta às pífias manifestações que os bolsonaristas vinham realizando como donos da rua. E esperei pelo noticiário nas emissoras de TV. Decepção. A Globo fez uma cobertura protocolar, distante, destacando, a cada cidade, a formação de aglomerações, em nome de uma falsa imparcialidade. SBT e Record, nem isso. Chegaram a dizer, em VTs de tempos bem curtos, que as manifestações aconteciam somente para homenagear as 460 mil vítimas fatais da Covid-19 e lembrar a importância do auxílio emergencial. O mesmo se repetiu no noticiário das TVs por assinatura.
Bem, vou esperar então os grandes jornais. Decepção maior ainda. Apenas a Folha de S.Paulo publicou o noticiário na primeira página. Estadão e O Globo simplesmente ignoraram a relevância das manifestações. O Estadão estampou a relevantíssima manchete: “Cidades turísticas se reinventam para atrair o home-office”. O Globo preferiu a economia: “PIB reaquece e empresas desengavetam R$ 164 bilhões em projetos”. Só para lembrar: um domingo antes, dia 23, a motociata promovida por Bolsonaro e sua tropa de fanáticos, num ato político que as Forças Armadas tentam ignorar até hoje para não punir o general Pazuello, foi anunciada na primeira página. Apesar das imagens escandalosas e do pronunciamento daquele que Bolsonaro chamou de “Meu gordinho”, o Comando Militar anunciou apenas que abriu inquérito para saber o que aconteceu. Como se ninguém tivesse visto.
Triste constatação para quem alardeia aos quatro ventos que age como um dos pilares da democracia. Quando uma notícia relevante em meio à triste situação que o país atravessa é negligenciada e ignorada pela grande imprensa – como aconteceu, lembremos, no período das “Diretas Já” –, não perdem apenas os jornais, perdemos todos nós jornalistas, perde toda a sociedade. Dar as costas a manifestações espontâneas como as de sábado – repararam que Lula não foi visto para evitar qualquer conotação política partidária ao movimento? – é uma vergonhosa demonstração de desrespeito à imparcialidade e à independência que tanto esperamos de uma imprensa séria e digna.
O curioso é que foi mais fácil saber o que aconteceu sábado nos quatro cantos do país recorrendo às mídias alternativas, como Mídia Ninja, The Intercept, Revista Forum, Alma Preta e Brasil 247, ou procurando publicações estrangeiras. Elas respeitaram os fatos. “Oposição a Bolsonaro mostra a sua força nas ruas brasileiras“ (O Público, Portugal); “Ele é mais perigoso que o vírus; do Brasil, as novas manifestações contra o presidente Bolsonaro” (Le Monde, França); “Dezenas de milhares de brasileiros marcham para exigir impeachment de Bolsonaro” (The Guardian, Inglaterra); “Milhares inundam cidades brasileiras para protestar contra a política de Bolsonaro no combate à Covid-19” (Forbes, Estados Unidos).
Ao mesmo tempo em que a grande imprensa se omitia, vale destacar a posição tomada por várias pessoas públicas, como Zélia Duncan, Thaís Araújo, Tico Santa Cruz, Mônica Martelli, Renata Sorrah, Paulo Betti, Gregório Duvivier, Fernanda Lima, Guta Stresser, Luísa Arraes e tantos outros. No momento em que o Brasil vive esta terrível tragédia, eles não se esconderam nas confortáveis sombras do sucesso. Foram pra rua gritar por justiça e punição para todos os responsáveis por tanto desgoverno, tantas mentiras, tantas mortes.
Em tempo. Na beira do meu precipício particular do fim de semana, vi que o espaço dedicado ao Brasil estava completamente lotado. Mais de 460 mil almas aguardam a chegada do déspota assassino para um acerto de contas. Um juízo final por esse crime contra toda a humanidade. Por aqui, a turma do Sensacionalista ainda encontrou alguma leveza para alertar: o gabinete do ódio continua reunido em Brasília para decidir que notícia vai plantar nas redes sociais: “Houve aglomeração ou não foi ninguém?” A grande imprensa brasileira escolheu, mais uma vez, virar as costas para a história.