A influência norte-americana nos sistemas processuais penais latinos. Por que este interesse todo ?

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Afrânio Silva Jardim, em seu Facebook – 

Temos de tomar conhecimento e refletir. Será que toda esta situação insólita, que está ocorrendo em nosso país, explica o interesse dos Estados Unidos em transformar os sistemas processuais penais da América Latina, baseados no princípio da legalidade, em uma verdadeira “justiça pactuada”, informada por princípios privatísticos e dependente de negócios jurídicos processuais ???




Recentemente, li um importante livro que importei da Argentina, intitulado “Bases del nuevo código procesal penal de la nación”, de autoria de Marcelo A. Solimine, ed. Had-Hoc, Buenos Aires, 2015. Esta obra cuida do sistema do código federal que ainda se encontra em “vacatio legis”. Em sua parte introdutória, tal autor argentino faz uma interessante explanação sobre o movimento de reforma processual penal na América Latina. Na verdade, foram novos códigos de processo penal, em 15 países, começando pela Guatemala, em 1992 e terminando em 2009, no México.

Mais impressionante do que este tempo recorde é o fato de que todos estes novos códigos de processo penal, com estrutura do chamado sistema adversarial, sofreram influência direta de juristas e organismos dos Estados Unidos da América do Norte, conforme estudo do professor argentino Máximo Langer, escrito originalmente em inglês, já que ele estava fazendo sua pós-graduação naquele país. Escreveu Marcelo Solimini, in verbis: “A partir de alli se desencadenó un proceso de reforma que Máximo Langer muestra con detalle y profundidad, con mención de los componentes políticos e ideológicos coyunturales que le dieron impulso, incluída la injerencia de organismos de los EE.UU. e internacionales (como ILUANUD) … que concluyó con una cascada de códigos acusatorios y reformas procesales … (p.51/52).

Em relação ao estudo acima citado de Máximo Langer, a obra que lemos faz constar em seu rodapé n.4, pag.51: “Muestra alli la labor da la USAID (Agência de los EE.UU. para el
desarrollo internacional), que patrocinó los procesos de reforma em América Latina a partir de 1985, sin imponer modelos estadounidenses y apoynando a las instituiciones locales existentes …”.

Mais adiante, na p.55, Marcelo Solimine esclarece sobre a presença de grupos provenientes das universidades norte americanas nos debates sobre novos códigos de processo penal, inclusive em relação ao argentino, conforme dito por Marcos Salt, em sua exposição na Câmara de Senadores do Congresso.

Desta forma, julgo estar confirmado o que venho dizendo há muito tempo. O chamado sistema processual adversarial (sistema acusatório puro ou radical) tem origem na ideologia liberal e privatista reinante nos Estados Unidos e não atende ao interesse público.

Vários autores, que se filiam a este modelo, chegam a sustentar que o conflito decorrente do delito se dá entre aquele que pratica o crime e a vítima, motivo pelo que o Ministério Público “sequestrou” o ofendido do processo penal (sic). Assim, deve prevalecer a vontade privada destes sujeitos, mesmo que seja para afastar a incidência da lei penal (cogente, por ser pública). É a volta ao sistema romano, onde o crime era “um problema da vítima”.

Neste equivocado sentido, é a tese de doutorado do argentino Francisco Castex, aprovada com a restrição que transcrevemos abaixo. O autor sustenta que o conflito resultante da prática do delito é, na verdade, entre o autor da infração penal e a vítima, motivo pelo que deve ser aplicada a ação penal privada e ser ampliado o poder dispositivo no processo penal, através da manifestação de vontade do ofendido. Chega-se a sugerir um sistema penal sem o Ministério Público … A referida crítica foi feita pelo conhecido examinador professor-doutor Daniel R.Pastor, in verbis:

“Sin embargo, no me imagino que un acercamiento entre las partes, com exclusión total o parcial de la voluntad del Estado ao respecto, sea lo “más adecuado”, ya en abstracto, para así resolver por mediación el conflito penal entre el asesinado y su asesino, entre el genocida y los exterminados, en fin, entre Videla y las Madres de Plaza de Mayo. Y se esto no es posible (p.127 y ss.), es probable que en el modelo propuesto algo essencial esté falando. En cambio, me resulta más tentadora de aceptar, aunque aún no la comparto, la idea de Castex, consecuencia directa e inevitable de su tesis, de vivir el futuro en um mundo libre de fiscales”. (Francisco Castex, Sistema Acusatório Material, Buenos Aires, ed.Del Puerto, 2013, p;174

Na verdade, cuida-se do neoliberalismo globalizante trazido para o “novo” processo penal.

Tal visão privatista se vê também no novo código de processo civil, onde as partes podem criar novos procedimentos e prazos diferentes do que nele é regulado. O pior de tudo isto é que alguns companheiros estudiosos do processo penal ainda não perceberam … Realmente, o direito é uma superestrutura que vai sendo condicionada pela infraestrutura econômica social liberal.

De há muito, venho me opondo doutrinariamente à “importação” de institutos processuais peculiares ao sistema processual norte-americano, fundado em bases jurídicas e valores sociais diversos da nossa cultura latina.
Por outro lado, temos evoluído em prol do aperfeiçoamento do sistema penal acusatório, mas não devemos chegar ao exagero do que se convencionou chamar de “sistema adversarial”.

O processo não é “coisa das partes”, mas sim um instrumento público, através do qual o Estado presta a sua jurisdição. O interesse público, cristalizado na legislação cogente, está fora do alcance do poder dispositivo da acusação e da defesa. É o princípio da legalidade, fundante do sistema “civil law”, que nos foi legado pela tradição grega e romana.

Assim, não vejo com bons olhos a “ampliação da justiça penal pactuada no processo penal”. Já temos a transação penal para as infrações de pequeno potencial ofensivo, nos Juizados Especiais Criminais” e o acordo de cooperação premiada, prevista na legislação que cuida do “crime organizado”. O que mais se deseja?

Aliás, tenho escrito muito no sentido de que os tribunais superiores precisam fixar limites interpretativos a este novo instituto, pois constato excessos ilegais em muitas destas “delações premiadas”. Não acho possível, por exemplo, que um acordo entre um membro do Ministério Público e um indiciado possa afastar a aplicação das regras do Cod. Penal e da Lei de Execução Penal, prevendo benefícios não previstos na lei de regência ou benefícios por ela não admitidos (penas de reclusão altíssimas em regime domiciliar …).

Desta forma, não vejo o que ampliar. O membro do Ministério Público (pensemos em um jovem Promotor de Justiça em uma comarca bem distante dos grandes centros) não pode negociar com as regras do direito público, a qualquer pretexto. Não tem ele legitimidade e autorização constitucional para derrogar o direito posto.

Se o processo já não mais é “coisa das partes”, como foi em algum momento da antiguidade, com mais razão, não pertence ao membro do Ministério Público o poder de mudar o que está legislado (conteúdo do processo). O Direito Material, no caso, o Direito Penal, não pode ser objeto de barganha no inquérito ou mesmo na fase processual.

Vale dizer, precisamos combater, com todas as nossas forças, esta verdadeira e indesejável privatização do sistema penal. Poder demasiado não fortalecerá o Ministério Público. Ao contrário, vai fragilizá-lo perante a população.

Vejo um certo “deslumbramento” em algumas parcelas do Ministério Público pátrio, mormente do Ministério Público Federal. É preciso não esquecer das realidades totalmente diversas sobre as quais atuam os órgãos do Ministério Público dos Estados. Imaginem as diferenças entre as realidades de países com formação cultural tão distinta. Aliás, em muitos aspectos, temos que reconhecer o grande avanço e desenvolvimento dos Estados Unidos em relação a nós. Entretanto, nas questões sociais pouco precisamos aprender com eles.

Enfim, como professor e estudioso de Direito Processual Penal há 37 anos, estou muito preocupado com o rumo que as coisas estão tomando em nossa sociedade, no que diz respeito ao processo penal. Os interesses corporativos e profissionais, a ignorância ou desinformação de alguns, e o “modismo” de outros, tudo muito por conta do despreparo de nossa grande imprensa, estão “bagunçando” o sistema processual brasileiro, fruto de uma longa e sólida construção teórica, que vem acompanhando o nosso processo civilizatório. Lamentável.

Afrânio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal. Mestre e Livre-Docente em Direito Processual (Uerj)

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