Por Adilson Paes de Souza, compartilhado de Projeto Colabora –
Não resta dúvida de que o bolsonarismo fincou pé nas polícias estaduais, notadamente nas militares. Agora, com a capitulação da Força, o ciclo se completa
Ao participar da manifestação ao lado de Jair Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello violou o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro. Não tem como negar o óbvio – o cúmulo do absurdo aconteceu. O comando do Exército e Pazuello montaram um jogo de pingue-pongue fajuto – um apresenta qualquer coisa como elemento de defesa, e o outro, em resposta, apresenta qualquer coisa como decisão fundamentada (sic), acolhe os argumentos (mentira é argumento válido num processo?) e determina a absolvição do acusado. Ópera bufa, falta de vergonha, além de confundir respeito à hierarquia com servilismo e submissão aos caprichos de outrem. O comandante do Exército abdicou de sua autoridade, maculou sua imagem e a da instituição que comanda e jurou preservar.
Sigmund Freud, em Psicologia das massas e análise do eu, define o exército como massa artificial. E elenca algumas de suas características: duradoura, bem organizada, não homogênea e que depende de uma coação externa para “[…] evitar a sua dissolução e impedir mudanças na sua estrutura”. O comandante assume posição central na constituição e existência dessa massa artificial. Tanto é que Freud o estabelece como substituto do amor paterno para seus comandados. Um pai rigoroso, controlador, digo eu. Sigmund Freud enfatiza que é nessa estrutura libidinal (o vínculo estabelecido entre os subordinados e o comandante), que reside o principal fator de união da massa. Se o comandante titubeia, o vínculo pode se enfraquecer e gerar riscos para a constituição dela, com graves consequências, por exemplo: desestabilização, desunião, quebra da ordem e da disciplina e até mesmo, o fim de sua existência.
Segundo o artigo 142 da Constituição Federal, as Forças Armadas brasileiras são instituições de Estado e têm como base a hierarquia e a disciplina. Estas, a meu ver, e amparado nos ensinamentos de Freud, são formas de exercer a coação externa e atuar sobre os militares subordinados, membros da massa artificial, que é o Exército. O episódio da absolvição do general Pazuello, mesmo diante da constatação flagrante de violação das normas militares, com os argumentos absurdos empregados em sua defesa, é circunstância suficientemente forte para provocar instabilidade e ruptura nessa massa artificial. Tudo porque o comandante não exerceu o poder disciplinar, expressão da coação externa necessária para a existência dela.
Exército Brasileiro: breve análise jurídica
Pazuello cometeu, com seu ato, transgressão disciplinar prevista no regulamento do Exército e deveria ser punido administrativamente. Mas, o que pouca gente sabe, é que ele também cometeu crime militar previsto no artigo 324 do Código Penal Militar – CPM (inobservância de lei, regulamento e instrução). Acontece que os crimes previstos neste código são de ação penal pública incondicionada. Uma vez praticado o fato, tipificado como crime militar, a única providência cabível é a instauração de Inquérito Policial Militar (IPM). No caso, pelo comandante do exército, nos termos dos artigos 9º e 10º “a” do Código de Processo Penal Militar.
Ao não fazer isso, o comandante do Exército cometeu o crime militar de prevaricação (artigo 319 do CPM). Cabe frisar que a única pessoa apta pela lei para decidir se há crime ou não é o integrante do Ministério Público Militar (MPM) que, ao analisar o IPM concluído, decidirá pelo arquivamento ou pela denúncia. Repito, somente o MPM poderá fazer esse juízo de valor, como titular da ação penal. Lição básica de Direito Penal Militar.
Mas, para além disso, o comandante do Exército praticou ato de improbidade administrativa previsto no artigo 11 da Lei 8482/92, ao atentar contra os princípios da administração pública. Quais princípios? Os descritos no artigo 37 da Constituição Federal, notadamente os da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativas; além do previsto no inciso I, por praticar ato diverso do fim previsto em lei ou regulamento e no inciso II, por retardar ou deixar de praticar ato de ofício, indevidamente.
Além das questões legais, a decisão tomada, da maneira pela qual foi elaborada, é uma afronta à sociedade. Por favor, não duvidem da nossa inteligência, não nos meçam pela sua régua, senhor comandante. A instituição Exército Brasileiro deixa de existir. O teor do artigo 142 da Constituição Federal é letra morta, não há mais que se falar em instituição de Estado. Li que a sigla EB deve ser ressignificada. Não é mais Exército Brasileiro e sim, desde 3 de junho, exército bolsonarista. O presidente Bolsonaro não é mais seu comandante, mas seu dono, amo supremo.
Hoje temos que duas pessoas cometeram crimes, Pazuello e o comandante do Exército. Por que se expor tanto? Por que se submeter a tudo isso?
Não é de hoje que presenciamos o presidente da República ameaçar a sociedade e aqueles que ele imagina seus inimigos, com o emprego do “seu” Exército para fazer cumprir a lei e a Constituição – sob sua ótica, claro. O episódio envolvendo Pazuello comprova que ele possui, sim, um exército para chamar de “seu”.
A ocupação de inúmeros cargos da administração pública federal, em vários níveis, por militares é marca deste governo. Ecoa a Doutrina de Segurança Nacional que postula serem os militares os únicos capazes de dirigir e, por que não, salvar a nação. Por esse motivo, efetivos das polícias militares têm atuado, de forma absurda e violenta, como tropas bolsonaristas contra pessoas que protestam contra o governo. A militarização das polícias é fenômeno conhecido e, infelizmente, negligenciado pelas autoridades, desde a redemocratização do país.
Pavimentou-se o caminho para Bolsonaro trilhar com desenvoltura. Vejam o que aconteceu em Recife e em Goiás, onde a barbárie policial se impôs. Nada disso é por acaso. A Polícia Civil do Rio de Janeiro, ao invés de fornecer explicações para a sociedade, decretou sigilo de cinco anos nas apurações sobre o Massacre do Jacarezinho e ainda desrespeitou o Supremo Tribunal Federal. Não resta dúvida de que o bolsonarismo fincou pé nas polícias estaduais, notadamente nas militares. Agora, com a capitulação do Exército, o ciclo se completa. O presidente interfere na Polícia Federal, no Ministério Público Federal e nas universidades federais. Todos e tudo devem estar a seu dispor. Nesse cenário não há que se falar em instituições.
Há grave risco de quebra da ordem institucional. A nossa frágil democracia sangra e corre risco de morte.