A justiça que tarda: por que o Brasil demora tanto para julgar?

Compartilhe:

No Brasil, a justiça custa caro. Não raro, é mais dura com as minorias e sempre suscita a ideia de privilégios, burocracia, lentidão e favorecimentos

Por Marcelo Menna Barreto, compartilhado de Extra Classe




foto: Audiência pública sobre “Aprimoramento da Atuação do Poder Judiciário em Demandas Envolvendo Direitos de Pessoas e Comunidades Quilombolas”, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Foto: Marcelo Camargo/ Arquivo/ Agência Brasil

Cerca de 80 milhões de processos tramitam atualmente nas diversas esferas do Judiciário brasileiro – Justiça Estadual, Federal, Trabalhista, Eleitoral, Militar e tribunais superiores – e abrangendo ações em todas as fases, da distribuição inicial até a execução final. Parte desses processos é de casos que se arrastam por anos, às vezes décadas, enterrando sonhos, prolongando sofrimentos e, muitas vezes, tornando vitórias judiciais em conquistas vazias. A morosidade processual não é apenas uma questão técnica ou estatística. Para o juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Antonio Aurélio Abi-Ramia Duarte, o problema é crônico, porém, a lentidão da Justiça não é exclusividade do Brasil

“É uma realidade do mundo que vive um contexto de absoluto descompasso de litígio, de uma produção de litígio em massa”, afirma Duarte, que tem doutorado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolve pesquisas justamente sobre questões pertinentes ao que chama de “abusos de direito processual”.

O primeiro presidente da Comissão de Celeridade Processual da OAB Nacional, o advogado civil Paulo Grossi, concorda com Duarte e acrescenta que a morosidade processual se deve também a uma estrutura insuficiente do judiciário e à carência de práticas modernas de gestão.

Formado em Administração, Grossi critica o predomínio da cultura de judicialização acima de alternativas como mediação e defende a aplicação de mecanismos para uniformizar decisões em massa, a exemplo da arbitragem.

A justiça que tarda: por que o Brasil demora tanto para julgar?

No STJ, cada ministro recebe 60 pedidos de liminar por dia: “Seria necessário ter 330 ministros e 10 turmas criminais para dar conta”, ironiza o advogado criminalista KakayFoto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

A estrutura como gargalo: pouca gente para julgar

O problema começa na própria estrutura do sistema. O Brasil possui atualmente, em média, 8,5 magistrados por 100 mil habitantes. Isso é menos da metade da média europeia, que dispõe de 21 juízes para esse mesmo contingente. Curiosamente, no Brasil, cada magistrado conta com cerca de 15 servidores para auxiliá-lo, enquanto seu colega europeu não pode contar com mais de sete servidores na sua equipe. Esse desequilíbrio estrutural, em tese, deveria criar um paradoxo: muita gente para movimentar processos, poucos para decidir.

Acontece que, no caso brasileiro, não é raro – muito pelo contrário – as sentenças serem, de fato, fruto da elaboração de parte desses servidores. Em especial, os que têm cargo de assessoramento direto, via cargos em comissão, aos magistrados.

Sobre magistrados, habituado a transitar em altas cortes, Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, um dos mais renomados criminalistas do Brasil, afirma que a situação “beira o absurdo” no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

“Cada ministro na área criminal recebe 60 pedidos de liminar por dia”, aponta ele. “Já falei que, em vez de 33, devia ter 330 ministros para que pudesse ter 10 turmas criminais”, ironiza Kakay.

Litigiosidade excessive e a síndrome da toga

A justiça que tarda: por que o Brasil demora tanto para julgar?

Para o advogado Paulo Grossi, estrutura insuficiente, práticas ultrapassadas e a cultura da judicialização explicam em parte a morosidade do JudiciárioFoto: Acervo Pessoal

Mas estrutura é apenas parte do problema. Para Duarte, o Brasil desenvolveu ao longo de sua história uma cultura peculiar de judicialização excessiva.

“Na minha pesquisa, cheguei a uma conclusão: quanto menos educado um povo, maior o número de litígio esse povo tem. E o Brasil tem os maiores estoques mundiais de processos”, registra o juiz.

Para ele, a lógica remonta às origens do país. “Vimos de uma tradição portuguesa de recorrer à Coroa para resolver nossos problemas. Não criamos outras formas de descomposição de litígio”, esclarece.

Essa herança explica, em parte, por que o brasileiro judicializa desde grandes disputas até conflitos banais, como brigas de vizinhos ou pequenos desacordos comerciais, o que contribui para que processos verdadeiramente importantes se arrastem por anos sem solução.

É um cenário contraditório que tem um alto custo para o Estado. Um processo, por exemplo, sobre desentendimentos por um cachorro que insiste em fazer sujeira na área de um vizinho custa ao erário nos chamados Juizados Especiais em torno de R$ 900,00 a R$ 1 mil.

Grossi dá nome a esse fenômeno. “Temos a síndrome da toga: as pessoas querem que o juiz decida, mesmo quando poderiam resolver conflitos extrajudicialmente”, constata.

O Estado contra si mesmo e a estratégia da morosidade

A justiça que tarda: por que o Brasil demora tanto para julgar?

Mais de 70 mil processos físicos
foram digitalizados e descartados pelo
Tribunal de Justiça da Paraíba em
2021. Ao todo, o Judiciário movimenta
80 milhões de casos por anoFoto: TJPB/ Divulgação

Segundo dados oficiais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Estado brasileiro – incluindo União, estados, municípios, suas autarquias e empresas públicas – é o maior litigante da justiça nacional.

São cerca de metade dos processos judiciais em tramitação no país. As chamadas “demandas de massa” provocadas por órgãos públicos, especialmente nas áreas fiscal, previdenciária e de serviços públicos, são uma das principais causas do congestionamento do Judiciário.

Se, de um lado, União, estados e municípios movem milhões de processos para cobrar dívidas de impostos, há, de outro, uma ironia perversa, conforme Ricardo Cunha Martins, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RS e professor aposentado de Direito Processual Penal.

“O maior devedor do país é o próprio poder público – municípios, estados, União e entes públicos”, afirma Martins.

Para o advogado, o Estado não apenas contribui para a sobrecarga do sistema como também se beneficia da morosidade. “No Rio Grande do Sul, há precatórios que levam 25 anos para serem pagos, anulando na prática o direito reconhecido”, ilustra.

“O Estado, de fato, é quem mais procura o Judiciário. Não faz acordo, não tem Câmara de Compensação, não tem Câmara para fazer um acordo mais rápido”, complementa Kakay.

A estratégia estatal de postergar pagamentos através da lentidão judicial, segundo especialistas, representa um calote institucionalizado contra cidadãos que venceram suas causas.

O mesmo comportamento é observado em grandes corporações que utilizam o sistema recursal exaustivamente. Duarte vai além, apontando que muitas empresas calculam os benefícios da demora. “Às vezes, é mais barato para a empresa suportar processos judiciais do que corrigir falhas técnicas ou operacionais”, declara.

Tecnologia, burocracia e as “varas mortas”

A digitalização dos processos promete revolucionar a Justiça, porém trouxe resultados contraditórios, por enquanto, na opinião de Martins. “Na migração do sistema físico para o eletrônico, houve uma alteração na contagem dos prazos processuais, criando uma diferença de até 25 dias no andamento”, detalha.

A situação se agrava com a regra do Código de Processo Civil, o qual considera apenas dias úteis para contagem de prazos. Esse conjunto de fatores técnicos, somado à complexidade do sistema recursal brasileiro formam um labirinto burocrático que, frequentemente, estende processos por anos.

Um fenômeno preocupante são as chamadas “varas mortas” – cartórios judiciais onde a inércia é tão grande que o andamento dos processos praticamente para. “Nelas, os processos simplesmente não andam”, lamenta Martins.

Grossi louva o fato de a Constituição de 1988 ter democratizado o acesso ao Judiciário, mas entende que o Estado não acompanhou o aumento na demanda com investimentos proporcionais em infraestrutura e pessoal.

A opinião, no entanto, contrasta, em parte, com uma recente revelação. O Brasil lidera o ranking mundial de gastos com o Poder Judiciário em relação ao PIB. Estudos do Tesouro Nacional indicam que o país dedica mais de 1,3% do seu produto interno ao sistema de Justiça. O índice é muito acima do observado em nações como França, Alemanha, Itália e Estados Unidos.

É aí que Grossi alerta para a necessidade de aprimoramento da gestão de toda essa enormidade de recursos. “Juízes e desembargadores são excelentes juristas, mas muitos não têm formação mínima para administração”, compara.

A justiça que tarda: por que o Brasil demora tanto para julgar?

Os desembargadores Sebastião Moraes e João Ferreira Filho, que já estavam fora das suas funções
por determinação do CNJ foram afastados do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT) em novembro de 2024, acusados de participação em um esquema de venda de sentençasFoto: Reproduções

O caminho para uma Justiça mais eficiente

Não há solução única para a morosidade e o alto custo do Judiciário brasileiro, porque o problema é multifatorial, de acordo com esses especialistas, que defendem um maior incentivo à conciliação.

Grossi aposta no uso sistemático de precedentes judiciais obrigatórios. “Se tribunais superiores decidem um caso emblemático, milhares de ações semelhantes poderiam ser resolvidas de forma mais ágil”, raciocina ele, ao diferenciar a medida das jurisprudências.

“Precedente é uma decisão de tribunal superior adotada de forma obrigatória pelos demais juízes em casos semelhantes, conferindo uniformidade e segurança jurídica”, ensina.

Grossi também sugere que decisões administrativas poderiam ter caráter definitivo em certos casos, utilizando como exemplo o INSS. “Isso traria uma redução substancial do número de processos”, sinaliza.

Para Duarte, entretanto, a verdadeira solução é mais profunda e de longo prazo. Ele aponta a necessidade de repensar socialmente a forma como resolvemos nossos conflitos. “A gente cresceu ouvindo que a educação libertaria o Brasil, e isso é verdade. Tudo desemboca na educação”, sublinha.

Influência política, corrupção e o tratamento desigual

A justiça que tarda: por que o Brasil demora tanto para julgar?

Sérgio Fernandes Martins, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), e o conselheiro do TCE-MS Osmar Jeronymo; os desembargadores Marcos José de Brito Rodrigues e Alexandre Aguiar Bastos; o vice-presidente do TJMS, Vladimir Abreu da Silva, e Sideni Soncini Pimentel, eleito presidente do TJMS para o biênio 2025-2026, foram afastados dos cargos em outubro de 2024 por suspeita de venda de sentençasFoto: Reproduções

Uma particularidade do mundo jurídico brasileiro que raramente é discutida de forma aberta é o tratamento privilegiado dos chamados “capas do processo”. São casos que avançam com velocidade incomum, por envolverem pessoas influentes, enquanto outros processos idênticos que têm cidadãos comuns como parte andam lentamente ou permanecem paralisados.

Embora corriqueiro nos tribunais, esse tipo de irregularidade constrange quando trazido à tona.

“É óbvio que acontece. Você tem processos que avançam sobre centenas de outros. Há casos emblemáticos em que desembargadores teriam apenas segundos para ler cada página, o que é humanamente impossível”, revela um experiente advogado de São Paulo ao mencionar o processo que culminou na condenação do então ex-presidente Lula no TRF-4, em 2019. Esse é possivelmente o mais escandaloso exemplo de tramitação processual acelerada por motivações políticas.

Não há pesquisas empíricas que possam atestar as razões pelas quais alguns processos tramitam mais rapidamente, opina o jurista e professor de Direito Constitucional da Unisinos, Lênio Streck.

“Talvez o caso mais emblemático tenha sido mesmo o de Lula. Sérgio Moro fez um esforço hercúleo para que o processo terminasse em tempo recorde. Fez uma série de atropelos. Nesse caso, a política e o ‘espírito daquele momento’ talvez tenham sido definidores. Aos demais, a tramitação de processos caminha entre sístoles e diástoles. Mas sem uma linha definidora”, analisa.

Os processos do 8 de janeiro de 2023 – por serem de competência de foro único no STF – estão mais rápidos do que a média histórica, compara ele.

“Mas veja-se: o inquérito tratando dos mandantes demorou dois anos. Portanto, falta uma análise estatística para afirmarmos seletividades. Isso também se aplica aos processos das pessoas pobres, com as variáveis de que, nesses casos, se pode mais facilmente dizer que casos mais simples andam mais rapidamente”, cogita Streck.

A justiça que tarda: por que o Brasil demora tanto para julgar?

Em 2017, o TRF4 desrespeitou a ordem de distribuição dos processos para antecipar o julgamento de Lula, em um caso escandaloso de “capa de processo”. O então ex-presidente foi julgado e condenado pelos desembargadores João Pedro Gebran Neto, relator das apelações da Operação Lava Jato na 8ª Turma do TRF4, Victor Luiz dos Santos Laus e Leandro Paulsen. “O revisor do processo do Lula leu 250 mil páginas em 6 dias ou 2 mil páginas por hora, sem dormir, durante 6 dias”, criticou o cientista político Emir Sader à épocaFoto: Sylvio Sirangelo/TRF4

No seu entendimento, advogados importantes tendem a alongar os processos, porque usam dentro da lei todos os prazos e recursos disponíveis. “Disto se poderia dizer, com reservas, que processos de pobres são mais rápidos. Porque ainda vale no Brasil a frase La ley es como la serpiente; solo pica al descalzos”, acrescenta, citando Jesus De La Torre Rangel.

Justiça tardia e muito cara

No Brasil, o custo médio por magistrado é significativamente maior do que por servidor. Enquanto os juízes – que não são tratados como servidores do Judiciário e têm fonte pagadora única – representam cerca de 7% dos quadros da Justiça brasileira, os titulares da magistratura consomem de 20% a 25% dos recursos do orçamento do Judiciário para a rubrica Despesas com pessoal.

Para se ter ideia desse custo, basta considerar que o Brasil possui em torno de 18 mil magistrados atuando em todas as esferas do Poder Judiciário e aproximadamente 272 mil servidores.

Recentemente, o Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União (Sintrajufe) fez uma paralisação nacional motivada por ameaças ao auxílio-saúde dos servidores da Justiça.

Antes, em 2024, o CNJ aprovou, por unanimidade, que, a partir de 1º de janeiro de 2025, juízes e juízas federais e estaduais terão o direito de receber um novo benefício que irá render mais de R$ 7,2 mil mensais a vários deles.

A dor da espera

Há quatro anos, Guilherme de Almeida Amorim viu sua vida mudar drasticamente quando uma divisória acústica de sete metros desabou sobre ele durante uma viagem profissional. “O acidente foi em Campos do Jordão (SP), naquele centro de eventos do Grupo Dória”, relata. O impacto quase o deixou tetraplégico e, segundo ele, houve recusa de assistência adequada no local.

Desde então, além das dores físicas constantes, Guilherme enfrenta uma batalha judicial aparentemente interminável. “O que está pegando é que nada com relação a esse processo anda, misteriosamente”, explica ele sobre as ações contra o INSS e contra o Grupo Dória. O conglomerado pertence a João Dória, que à época do acidente era governador de SP pelo PSDB.

Seu advogado, Alexandre Augusto Rocha Soares, confirma: “O processo fica parado de seis a sete meses a cada movimentação e já dura quatro anos”. Para Soares, que é especialista em causas previdenciárias, “há uma demora incompatível com o caráter essencial do benefício”.

Enquanto os processos se arrastam, Guilherme vê sua saúde deteriorar. “Sinto dor de um jeito que tenho que tomar remédio quase toda noite para conseguir dormir. Enquanto isso, todos esses caras seguem sorrindo e a minha saúde está indo embora”, desabafa.

O Bem Blogado precisa de você para melhor informar você

Há sete anos, diariamente, levamos até você as mais importantes notícias e análises sobre os principais acontecimentos.

Recentemente, reestruturamos nosso layout a fim de facilitar a leitura e o entendimento dos textos apresentados.
Para dar continuidade e manter o site no ar, com qualidade e independência, dependemos do suporte financeiro de você, leitor, uma vez que os anúncios automáticos não cobrem nossos custos.
Para colaborar faça um PIX no valor que julgar justo.

Chave do Pix: bemblogado@gmail.com

Categorias