O surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, constitui um dos bons exemplos de ruptura nessa configuração elitista do acesso à saúde
Por Elisabeth Lopes, compartilhado de Brasil 247
A dialética nos ensina que a luta dos contrários, ao mesmo tempo que constante, é provocadora do desenvolvimento de vários aspectos da materialidade da vida. Neste sentido, oprofessor Leandro Konder refere que a dialética significa o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação.
No meu artigo anterior explorei os movimentos dos eleitores, a partir de suas oscilações e da necessidade de serem reeducados para o desenvolvimento de uma consciência crítica afinada com a realidade, a fim de não se deixarem sucumbir pelos mecanismos de dominação.
Quando na luta dos contrários, em meio à materialidade da sociedade civil e da sociedade política, há um esgotamento das forças reacionárias, surgem mudanças expressivas e revigorantes em favor de políticas públicas que proporcionem à população o acesso a bens que antes eram destinados apenas destinados a uma pequena fatia da população mais favorecida social e economicamente.
O surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, constitui um dos bons exemplos de ruptura nessa configuração elitista do acesso à saúde.
Ao perquirirmos a história da sociedade brasileira observamos que, a partir dos anos setenta, a sociedade mobilizada por uma conjuntura de repressão política e enorme crise econômica inicia um processo de luta pela redemocratização do país e pela garantia de direitos sociais básicos à vida. O empobrecimento cada vez maior de enorme contingente da população desvela a verdadeira face da imagem, habilmente construída pela burguesia, do milagre econômico. Essa realidade produz nos trabalhadores a indignação pelas precárias condições de vida, de saúde e de trabalho, mobilizando-os na busca de seus direitos sociais.
A propósito, o professor Francisco de Oliveira em uma exposição e debate, realizados em 1998 na Universidade Federal Fluminense, ao responder afirmativamente que sim à pergunta: “A contra hegemonia não se constrói mais a partir do próprio movimento dos trabalhadores?” lembrou o que Marx disse uma vez: “é preciso que os dominados já não suportem a situação de dominação”.
Nesse horizonte, na bagagem dos movimentos sociais estava presente a luta por políticas públicas que pudessem atender, entre outras, as necessidades de trabalho, de educação e saúde da população, numa perspectiva analítica de seus determinantes sociais.
No plano internacional, começam a se intensificar as políticas de saúde. Em 1972, é aprovado pelos ministros da saúde dos Estados Latino-Americanos, em Santiago do Chile, o 2º Plano Decenal de Saúde das Américas, que tinha como principal princípio ‘a saúde como um direito da pessoa e das comunidades’. Nessa mesma direção, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, reunida em Alma-Ata, em 12/09/1978, expressava a necessidade de ação urgente de todos os governos no sentido da promoção da saúde. Nesta conferência foi formulada a chamada Declaração de ALMA-ATA, contendo os princípios que deveriam orientar mundialmente as ações no âmbito da saúde.
Em meio a esse panorama nacional e internacional, a atenção primária passa a figurar como uma das estratégias para a concretização da Saúde para todos no ano 2000, meta lançada pela Assembleia Mundial da Saúde.
Nesse contexto é concebida a Reforma Sanitária Brasileira (RSB) que vivificada por uma materialidade política, econômica e social em crise, empreende sua luta para além do setor da saúde, compondo sua proposta numa direção de ampla reforma social no país que desse conta do atendimento dos diversos direitos sociais de todos os brasileiros. Dessa forma, não era suficiente superar os modelos discriminatórios que limitavam o gozo dos direitos de cidadania referentes à saúde dos indivíduos, tais como o direito à assistência à saúde prestada pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que deixava fora de sua abrangência o atendimento a maior parte da população, uma vez que tinha como competência assistir apenas os trabalhadores com carteira assinada.
A Reforma trazia em seu conjunto de propostas de mudança, o combate à lógica da cidadania regulada que diferenciava os brasileiros em os com direitos e os sem. Entre suas reivindicações a universalização da saúde e da educação eram imprescindíveis. Propôs um novo entendimento sobre os conceitos de saúde e de educação em saúde sustentado por uma base teórico-ideológica marxista em oposição à base teórica ideológica positivista.
No entendimento do Professor Jairnilson Silva Paim exposto no livro “A crise da saúde pública e a utopia da saúde coletiva” (2000), a RSB pode ser analisada em quatro momentos, o da ideia, o da proposta, o do projeto e o do movimento, no entanto, ele adverte que para se expandir nos diversos segmentos da sociedade, a reforma uniu-se às questões da defesa da democracia e dos direitos sociais, propondo nessa luta um novo projeto para a sociedade brasileira. Para o autor, o momento da ideia foi marcado por três acontecimentos: A publicação da tese “O Dilema Preventivista” do médico Sergio Arouca em 1975, uma das principais lideranças no movimento da RSB, a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) em 1976 e, em 1979, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Acrescento, também, como acontecimento importante nesse momento a publicação de “Medicina e Sociedade” de Cecília Donnangelo.
Na sequência o professor Paim aponta em seu livro “Reforma Sanitária: contribuição para a compreensão e crítica, publicado pela Fiocruz em 2008” que o momento “proposta” constituiu um “conjunto articulado de princípios e proposições políticas” divulgadas no I Simpósio de Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados em que foi levantada, pela primeira vez, a criação do SUS num documento intitulado “A questão democrática na área da saúde”. Paim caracterizou o terceiro momento “projeto” como o da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) em 1986 e, por fim, o quarto momento seria o que denominou de “movimento” que destaca como sendo o momento valorizador de “um conjunto de práticas ideológicas, políticas e culturais” em defesa da democratização da saúde.
Nessa conjuntura de movimentos ético-políticos, sociais, culturais e de consequentes rupturas conceituais sobre a saúde e educação em saúde propiciada pelas contradições do sistema capitalista, é proposta uma nova Carta Constitucional em 1988 para o país, que expressa em seu texto, mesmo que formalmente, direitos sociais e garantias fundamentais.
Mundialmente, as relações sociais capitalistas vão desfigurando as políticas econômicas e sociais orientadas pelo keynesianismo, corrente que guiou a política econômica desde o fim da II Guerra Mundial. Defendia a intervenção do estado para manter equilíbrio na economia (Estado de Bem-Estar Social).
As mudanças sócio-econômicas, a reestruturação produtiva e a mundialização do capital vão sedimentando uma nova ordem do capitalismo cujos valores, habilmente veiculados pelos monopólios dos meios de comunicação vão produzindo, rapidamente, mudanças culturais.
Em meio a realidade inspirada pela cartilha neoliberal, a satisfação dos direitos à saúde, à educação, ao trabalho, ao transporte, entre outros, saem do prisma da responsabilidade social do Estado para a responsabilidade e escolha individuais.
Em direção oposta à concepção neoliberal, os articuladores do movimento pela RSB, inspirados pela teoria marxista, reforçam suas proposições em direção à compreensão da saúde como o resultado das relações sociais que os homens estabelecem com a natureza e em sociedade na produção de sua existência.
Em conformidade com esse entendimento, em 2002, em entrevista à Revista Radis da Fundação Osvaldo Cruz, publicada um ano após na Revista Trabalho Educação e Saúde, Sergio Arouca, um dos principais ativistas nos movimentos pela reforma da saúde no país, diz que “a sua luta naquele momento, em 2002, era pela retomada dos princípios da reforma sanitária, pois na sua avaliação ‘a reforma acabou se resumindo à criação do Sistema Único de Saúde’ – SUS”.
A busca pela perspectiva ampliada do conceito de saúde produziu, ao longo das últimas décadas, a necessidade de uma ressignificação do processo de trabalho e da produção da assistência em saúde. As resistências ao forte segmento médico-industrial, amplamente patrocinado pelo Ministério da Previdência e Assistência Social, a oposição ao modelo de formação biologicista, com ênfase na especialização e no conhecimento fragmentado do processo saúde-doença, foram ativando novas ideias e propostas que passaram a ser sintetizadas pelos movimentos sociais, pelos sindicatos e pelas forças progressistas da universidade.
Nesse contexto, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, constituiu um dos espaços mais expressivos de ativações de mudanças no modo de pensar a saúde no Brasil. Neste evento mais de cinco mil representantes de todos os segmentos da sociedade civil problematizaram acerca de um novo entendimento de saúde para o país, garantindo na Carta Constitucional Brasileira de 1988, por meio de emenda popular, a saúde como direito do cidadão e dever do Estado. O conteúdo textual produzido na 8ª Conferência resulta no nascimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
A RSB, portanto, significou o reverso dos reformismos setoriais empreendidos pelos organismos internacionais, entre esses, a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Banco Mundial (BM) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) que se orientaram, como já referi acima, por um ideário propiciador do projeto neoliberal para a América Latina.
Com origem, portanto, nos movimentos sociais, pleno de princípios e diretrizes que o credenciam como um sistema público de saúde exemplar para o mundo inteiro, o SUS tem enfrentado inúmeras dificuldades para cumprir tudo que lhe compete.
Garantido na Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis 8.080/90 e 8.142/90 que determinam os princípios legais para o funcionamento de sua rede assistencial, o SUS é orientado pelo atendimento integral, pela priorização das ações preventivas, entre essas, as ações de vigilância sanitária, vigilância epidemiológica, saúde do trabalhador, sem o descuido das ações assistenciais, pelo controle da população sobre os serviços oferecidos e pela descentralização, mas com direção única em cada esfera de governo.
Contudo, o SUS sofreu décadas de críticas diárias pela mídia corporativa, defensora dos interesses neoliberais de mercantilização da saúde. A população inundada pelas críticas ao sistema e mal informada foi quase convencida sobre a sua inoperância. Foi necessário o enfrentamento de uma pandemia no mundo para que as forças reacionárias a favor da privatização absoluta da saúde fossem brecadas. É importante salientar que durante o governo de extrema direita do inominável e inelegível foram feitas várias tentativas para desmantelar o sistema, como a publicação de um decreto que previa a concessão das Unidades Básicas de Saúde à iniciativa privada, posteriormente extinto pela reação da sociedade civil e política.
Durante a pandemia o SUS foi o grande protagonista no enfrentamento do vírus letal Covid-19. Reconhecido mundialmente, como uma política pública plenamente eficaz orientada pelos princípios da universalidade, da equidade, da integralidade, da descentralização e da participação popular, o sistema foi reacreditado como um poderoso instrumento no combate à desigualdade social. Saúde sempre ao nosso imprescindível e único SUS!