A amiga do Bem Blogado, Lúcia Capanema, professora, pesquisadora no Politécnico de Milão, esteve no Salão do Livro de Turim e fez reportagem sobre o evento. Vamos apresentá-la em quatro edições.
Esta é a terceira, na qual são abordados depoimentos de Marcia Tiburi, Brasil, Djaili Amadou Amal, Camarões, e Claudia Bianchi, Itália
Por Lúcia Capanema, professora, pesquisadora no Politécnico de Milão
Reconhecimento: a pauta feminista que vem do terceiro-mundo (e é vigorosamente abraçada pelo primeiro).
Em uma tarde tão concorrida, surpreende a fila que se renovou por três ou quatro vezes para ouvir Marcia Tiburi, única apresentação em língua estrangeira, concomitante a outras 38 na língua local.
Já na apresentação a mediadora e também autora, Vera Gheno, nos faz saber que “Marcia é causadora de problemas: falando em derrotar o patriarcado juntas e juntos, causa ódio a ponto de ser ameaçada de morte reiteradamente. No entanto, Marcia apresentará um livro sobre o amor interseccional”.
Diante de uma plateia plena e jovial, a autora explica:
“Meu feminismo, como o chamo, é dialógico. O livro não procura construir uma unidade, mas uma dialogicidade, pois não existe um feminismo melhor que outro. Em todos eles se dá uma luta fundamental para todas as pessoas. O feminismo é algo que não pode ser tornar proprietário de nada, porque é anti-patriarcapitalista – termo que cunhei depois de escrever o livro que apresento hoje, “Il Contrario della solitudine” (O oposto da solidão).
Nós somos de uma geração em que o feminismo não estava dado – aulas, só tínhamos com homens, a universidade era masculina; estudar feminismo se dava na contramão dos estudos acadêmicos. Eu ser feminista em 2005 (vejam bem, no século XXI!) e me apresentar como tal na TV foi uma novidade total. O primeiro congresso de filósofas mulheres foi há apenas 21 anos.
Alguns anos atrás convidei mulheres feministas conhecidas há muito para fundarmos um partido feminista. Ninguém quis, e eu avisei: os homens fascistas estão chegando e vão tomar nosso lugar. Anos depois, eles criaram o primeiro partido de mulheres do Brasil”.
Incrédula, Vera pergunta: “Eles quem? Quem criou o partido de mulheres?” Márcia, sobressaltada, gesticula: “Os homens fascistas!!!” Fosse mineira e não gaúcha, teria lhe saído um sonoro ‘uai’ para completar a indignação.
Vera então especula como foram as reações às suas posturas na TV. “Me colocar como feminista não foi muito importante para a maioria, pois o feminismo já era odiado e para me odiarem foi apenas mais um motivo. Mas as jovens compreenderam minha mensagem. Desde então e até hoje eu pergunto: Porque nós, que nos colocamos como feministas somente (e só por isso), somos tão odiadas?”
Tiro de fuzil na testa (novamente).
A mediadora se endereça outras vezes à autora para saber um pouco mais sobre o país de 3º mundo chamado Brasil: “Essa origem do ódio parece também entreter a ideia de que o feminismo é misântropo, ou seja, encerra também um ódio pelos homens…” Alguém na plateia não se contém: “E as feministas odeiam os homens?” Márcia medita por um segundo: “Se tivéssemos ódio seria com bons motivos, mas não temos”. Aplausos.
Tiburi continua: “A expressão ‘feminicídio’ é muito problemática na Itália; como é no Brasil?”
“Grande questão. Semana passada, como vem acontecendo há muito tempo, recebi uma ameaça: ‘Você tem que ser morta com um tiro de fuzil na cara, sua vagabunda’, por meio do perfil de um casal que, na foto postada, se abraça. Duas pessoas que se ‘amam’, pregando o ódio contra mim, a quem não conhecem.
O presidente Bolsonaro, um nazifascista, prega que as pessoas não devem comprar comida, mas fuzis. A palavra fuzil passou a ser importante na difusão do discurso de ódio. Toda a construção de sua campanha se deu sobre a ameaça de morte contra tudo e contra todos.
A ameaça contra todos, o machismo como tecnologia, a violência política, tornaram o país ainda mais perigoso para as mulheres.
Viver no Brasil hoje, ser trabalhadora, indígena, negra, mulher, é risco de vida.
Todas as não-brancas e não-fascistas estão em perigo de morte.
Dois anos depois do assassinato de Marielle, muitas candidatas foram ameaçadas de morte durante as campanhas eleitorais de 2020.
O feminismo é um esforço filosófico, ético, político e estético contra o patriarcapitalismo. Ou seja, é a desconstrução da estrutura da violência que é do mundo dos homens, que se encontra no capitalismo, na patriarcalismo, no racismo.
Nada do que é do patriarcado deve ser mantido. O feminismo é um trabalho alquímico de retirar o patriarcado desse lugar e nos levar até uma construção outra. No livro, “O oposto da solidão”, mostro que os homens têm o monopólio da violência e as mulheres são objeto da violência.
Na estrutura do sistema patriarcal as mulheres e todos os outros seres deslocados do poder são postos numa posição submissa e humilhada, são objetos porque não são sujeitos nunca. Os homens usam com violência o poder para excluir as mulheres do poder. É a violência que nos transforma em objetos, que nos joga num lugar ‘de onde nunca deveríamos ter saído’, de acordo com esta lógica”.
Quando Tiburi lembra que os textos femininos da idade média foram tratados como de autoria masculina porque os tradutores mais contemporâneos não concebiam ou admitiam que houvesse autoras femininas (como escreveu Peter Haidu em “The subject mediaval/moderno” (O sujeito medieval/moderno), me remete a Camille Claudel, encarcerada durante quase toda a vida para que seus colegas homens conseguissem esconder seu talento. Atos de não reconhecimento das mulheres através da história.
“O que está abaixo é objeto, e quem define o que está abaixo é o sujeito. A regra é masculina. Nós mulheres estamos sempre abaixo; precisamos romper isto. Precisamos inverter essa equação.
O que se poder fazer? Na véspera do Natal do pandêmico 2020 houve muitas mortes de mulheres no Brasil, incluindo uma juíza assassinada pelo marido em frente às três filhas.
Ali criamos um “levante feminino contra o feminicídio”, junto com Vilma Reis, na Bahia, e tantas outras. Hoje o Levante conta com mais de 500 movimentos feministas, trans, negr@s, todas, todos, todos. Não é só uma campanha contra a violência; mais ainda, é contra o sistema que constrói essa violência.
Em 2022 lutaremos para derrubar Bolsonaro e depois lutaremos para tomar o poder, não teremos paz se não tomarmos o poder.
Quando coloco a necessidade de vencer o fascismo com o feminismo não é um sonho, um exagero, porque o feminismo é puramente anti-violência”. Sem saber, Marcia converge ao mesmo ponto – dos sonhos realizáveis – que Chimamanda chegara na véspera.
Djaili Amadou Amal – “A voz dos que não têm voz”, como a definiu um jornal de seu país, Camarões, é recebida na imponente Arena Piemonte, sempre registrada pela TV estatal italiana RAI. “Femmes du Sahel”, a associação que fundou em sua região natal para a educação das mulheres, faz sensibilização nas escolas sobre direitos das meninas contra os casamentos forçados e precoces e denuncia casos a autoridades locais; lidera atividades de geração de renda e oferece cursos sobre meio ambiente e segurança alimentar, crise sanitária, violência sexual na escola (e a caminho dela).
Para a ativista “esses assuntos estão em sinergia e ligados à precariedade da vida, às necessidades de produção e reprodução e, portanto, às condições de vida; e assim aos casamentos precoces, que aumentam em períodos mais difíceis, como foi durante a pandemia, na crença dos pais de que estariam ‘protegendo’ suas filhas.
Sobre seu premiado romance, “esse livro trata das coisas tal e qual são; não é uma biografia, mas fala de muitas experiências que aconteceram comigo, minhas irmãs e mulheres que conheço.
O termo que tenho sublinhado é a paciência, esperada das mulheres em situações de violência. A violência que eu narro existe na África sub-sahariana de forma mais contundente, mas também na Europa e em todo lugar; a violência contra as mulheres é universal e eu tento denunciar.
‘As impacientes’ deve ser contextualizado na sua cultura, num país hoje ocidentalizado, mas que tem ainda valores arcaicos.
A paciência, o dar-se pelo bem da família, por exemplo, são esperados das mulheres, são as regras. As mulheres vivem entre elas e os homens entre eles, mesmo em casa, a partir dos 10 anos. É um estilo de vida. E não há solidariedade entre as mulheres, são elas mesmas que perpetram a violência contra outras mulheres em primeiro lugar.
As mães, que amam suas filhas como em todo o mundo, mutilam suas filhas em suas genitais, as obrigam a se casar muito cedo, com violência e sempre chamando-as à paciência e ao autocontrole. Elas acreditam estar fazendo bem às filhas.
Por isso me rebelei e tratei de me libertar de um casamento violento, por isso trato de lutar para que as mulheres tenham direitos, denuncio os abusos escrevendo.
A única resposta é a educação, a instrução, a começar pelas mães, para que compreendam o que estão sofrendo e protejam suas filhas. É uma sociedade completamente patriarcal, mesmo pela religião, em que as mulheres são submissas e têm medo de denunciar e serem ridicularizadas.
Quando denunciam são desmentidas pelos homens que têm vergonha do seu próprio comportamento. Mas são as mulheres que educam esses homens que não respeitarão as mulheres e serão violentos com elas. É responsabilidade das mulheres a educação, a tomada de consciência, a solidariedade entre elas mesmas. Mas normalmente elas dizem: ‘não tenho nada com isso’.
Os livros, como os meus, são a esperança de dias melhores, tendo sido lidos até por rapazes; ‘As impacientes’ é adotado nas escolas e isso é importante. Não posso aceitar as desigualdades e a violência contra as mulheres e isso é um passo para que os rapazes entendam isso. Precisamos de um mundo que seja igual para garotas e garotos. As jovens devem também reconhecer as lutas das mulheres que as precederam, pois a justiça não nasce de um dia para o outro.
Precisamos, primeiramente, de conhecimento e reconhecimento da nossa condição para proteger as próximas gerações.”
Claudia Bianchi, professora, filósofa e autora de “Hate Speech: il latto oscuro del linguaggio” (Discurso de ódio: o lado obscuro da linguagem), vem denunciar o caráter etnocêntrico e sexista de grande parte da filosofia tradicional, assunto recente nas rodas teóricas.
“As palavras não são só uma descrição, são também formas de subjugar. Comentários sexistas, insultos racistas, ataques homofóbicos: palavras podem ser arremessadas contra os outros para zombar deles, feri-los, humilhá-los e, mais ainda, para prendê-los em papéis e posições de inferioridade.
As palavras podem ser ferramentas poderosas de opressão, pesadas como pedras.
Quem fala, sobretudo se a partir de posições de autoridade ou em contextos institucionais, tem uma responsabilidade pesada: o que dizemos altera os limites do que pode ser dito, avança um pouco mais os limites do que se considera normal, estabelecido, legítimo.
E mudar os limites do que pode ser dito, muda os limites do que pode ser feito ao mesmo tempo: nos acostumamos com a falta de atenção e vigilância sobre as palavras, o que torna mais aceitável a falta de vigilância sobre as ações.
Mas sempre existe a questão da autoridade que se dá ao outro, ao não refutar, ao deixar que o outro fale livremente utilizando linguagem tóxica.
O silêncio é uma forma de autorização. Na nossa sociedade assimétrica, a linguagem reforça as diferenças e desigualdades. As autoridades que utilizam o discurso do ódio muitas vezes criam uma linguagem agressiva e subjugadora como forma de autorizar seu uso a partir dali, legitimando-a e banalizando-a”.
Penso nesse momento como não é difícil nos colocarmos no lugar de quem sofre a agressão linguística, entre tantas e tantos mulheres, preta/os, parda/os, indígenas, (des)assalariada/os, LGBTQIA+ em um Brasil que aprendeu a praticar o discurso do ódio cotidianamente contra sua própria maioria.
Bianchi segue: “Existe também um discurso de ódio na construção pornográfica que coloca as mulheres em lugares estereotipados pouco valorosos quando são estupradas decotadas, bêbadas, drogadas, em festas etc. – do tipo ‘ela estava pedindo’ -. Torna-se uma pornografia que diverte e atrai os jovens, mas que cria também uma desvalorização, um “merecimento da agressão”, um discurso do ódio.
A estratégia hoje em dia para deter a linguagem do ódio é a resistência: em primeiro lugar o reconhecimento do problema, identificando com linguagem nova, se necessário, fenômenos ainda pouco aceitos, como com a palavra ‘feminicídio’.
As palavras servem para subjugar e para jogar a carga no outro, mas servem também para colocar em pauta o que a pessoa subjugada sente e assim podem ser instrumentos de libertação”.
O ódio denunciado por Bianchi e a violência entrelaçam o caminho de Tiburi, Amal e Tawfik (o escritor Iraquiano da reportagem anterior): Aprender é um mau começo. Pensar é um ato perigoso. Expressar-se candidamente é quase letal. “Tiros de fuzil na testa”.
Mas elas e ele escolhem a literatura como forma de diálogo, de desconstrução, de mudança. Aleluia.