Por Adriana Barsotti, com imagens de Yuri Fernandes, publicado em Projeto Colabora –
Jovem, que fazia faxinas para reforçar a renda familiar, luta para recuperar a criança, de 2 anos, em processo de adoção por decisão do Conselho Tutelar
MACAPÁ – A defensora pública Lívia Azevedo nos leva de carro até a casa de Jéssica Gabrieli Silva dos Santos, de 23 anos, uma das vítimas da falta de creches em Macapá, a capital do Brasil com a mais baixa taxa de crianças escolarizadas na faixa dos 0 a 3 anos, com um índice de apenas 7,9%. Lívia está há pouco tempo na cidade e usa o GPS no smartphone para se orientar até a casa de Jéssica, localizada no km 9 da rodovia AP-020, no bairro São José.
Explica-se a falta de intimidade da defensora com os caminhos da cidade: natural de Fortaleza, ela tomou posse em março de 2019, no primeiro concurso público realizado para a Defensoria Pública do Estado, após 41 anos de existência da instituição. Os cargos, até então, pasmem, eram ocupados por indicação política, revelando mais um descaminho do estado.
No caminho até lá, vemos uma cidade com algumas peculiaridades: além de haver dentro de seu perímetro urbano os Hemisférios Norte e Sul, sinalizados pelo Marco Zero, por onde passa a Linha do Equador, a desigualdade está escancarada nas ruas de quaisquer bairros: ao lado de uma casa luxuosa, o visitante pode se deparar com um barraco de madeira. Em Macapá, apenas 8,8% dos domicílios urbanos estão em vias servidas por bueiros, calçadas, pavimentação e meio-fio, segundo dados do IBGE.
A casa de Jéssica não está entre elas. Sua rua é de barro batido, mas a casa, ainda em fase de melhorias, é de alvenaria. Mãe de três filhos – Jorran, de 5 anos, Felipe, de 6 anos, e Júlia Gabrieli, de 2 anos – ela só vive com os dois mais velhos e com o marido. A pequena Júlia foi levada para um abrigo pelo Conselho Tutelar no dia 19 de setembro de 2018, foi apadrinhada por uma família com quem vive e está em processo de adoção. Paralelamente a este processo, corre outro, em que Jéssica pede, representada pela defensora, a reintegração familiar da filha.
A menina foi levada junto com os outros dois irmãos e mais três tios, de 7, 14 e 15 anos, filhos da sua mãe, Kátia Cilene dos Santos, de 46 anos, que costumava cuidar dos seis em sua própria casa, devido à falta crônica de creches na cidade. Jéssica caminhava diariamente 15 minutos a pé para deixar os filhos lá e depois ia fazer faxinas, que lhe rendiam R$ 100 por semana. Em Macapá, onde só se chega de barco ou avião, apenas 24,5% das pessoas têm emprego formal, Jéssica nunca esteve entre elas. Enquanto mostra fotos de Júlia pelo celular, a mãe, deixando correr as lágrimas, desabafa: “Aquele, com certeza, foi o pior dia da minha vida”. No mesmo dia, tentou, sem sucesso, visitar os três filhos no abrigo Ciã Katuá, para onde tinham sido levados depois de o Ministério Público ter recebido uma denúncia e ter enviado o Conselho Tutelar à casa de sua mãe. “Me disseram que não era dia de visita”, lembra ela. Apenas dez dias depois conseguiu vê-los.
Por decisão judicial da Vara da Infância da cidade, ela conseguiu que Jorran e Felipe voltassem para casa no dia 20 de março de 2019, seis meses depois. A defensora, que faz parte do Núcleo de Atendimento Especializado à Criança e ao Adolescente, ainda não tinha tomado posse à ocasião. No dia seguinte, entretanto, resgata, pelo computador, a sentença que afirma que as crianças e adolescentes levados da casa da mãe de Jéssica já teriam saído da situação de vulnerabilidade e, portanto, poderiam ser devolvidos às suas mães. A decisão, entretanto, não menciona a situação da pequena Júlia, ressalta a defensora, durante a entrevista.
Jéssica está acompanhando o passo a passo do caso com afinco e demonstra uma familiaridade surpreendente com alguns termos jurídicos, apesar de ter abandonado a escola na oitava série, quando estava grávida do primeiro filho. Ela traz uma pasta do ursinho Pooh, com todas as decisões sobre o caso. Vai folheando os documentos e explicando o signficado de cada um. Hoje ela não trabalha mais, temendo ser novamente retaliada com a perda dos filhos. A família vive com os “3 mil e pouco” que o marido ganha como motorista de carreta.
Ela faz questão de mostrar as melhorias que já conseguiram. A casa, de dois quartos, varanda e cozinha, ainda está em processo de construção. Ela abre a porta do quarto onde o marido dorme, pois trabalha à noite, para mostrar que eles já têm até ar condicionado, um split, numa cidade em que a temperatura média é de 27 graus. A cozinha ainda está improvisada no quintal, mas ela indica quais são seus planos, onde cada eletrodoméstico vai ficar, e mostra como será o quarto das crianças. Vejo que ela tem uma horta e demonstro curiosidade. Ele me explica que plantam tomate, alface, couve e erva cidreira. Também avisto um galinheiro, sem galinhas: “Comemos ou vendemos todas”. Pergunto sobre o carro estacionado na garagem, e ela responde com tristeza: “Está parado, está faltando uma peça”.
“Se tivesse creche aqui, nada disso teria acontecido. Estaríamos todos juntos. Não é o ouro, não é a prata que importam, e sim estar ao lado da pessoa amada”, chora Jéssica, que viu a filha pela última vez em dezembro de 2018. Difícil para ela é também responder às perguntas dos dois filhos: “Mãe, por que a Júlia não vem para cá com a gente?”. Com a voz embargada, ela diz não saber o que responder. Jéssica foi vítima de outra arbitrariedade do poder público. Tentou matricular o filho mais velho na escola no início do ano e negaram-lhe a vaga sob a alegação de ele ainda não ter 6 anos completos. Como não tem filhos matriculados na escola, também é excluída do Bolsa-Família: “Não recebo nenhum benefício do governo”.
Pela lei, as crianças brasileiras devem ser matriculadas na educação básica a partir dos 4 anos de idade. Para atender a essa obrigatoriedade, as redes municipais e estaduais de ensino tinham até 2016 para se adequar e acolher alunos de 4 a 17 anos. A Lei nº 12.796/2013, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, também estabeleceu que a educação infantil, de crianças de 4 e 5 anos, seria oferecida com carga horária mínima anual de 800 horas, distribuída por 200 dias letivos.
Apesar de todas as dificuldades, Jéssica ainda sonha em voltar a estudar no período noturno, na escola estadual Gerson Trindade Pereira, a mais próxima de sua casa. “Quero fazer um supletivo, melhorar de vida, talvez no futuro abrir um negócio, uma barraca de açaí”, revela. E lamenta que, se tivesse concluído os estudos, poderia ter hoje uma profissão, “ser enfermeira”, exemplifica.
Pela lei, Jéssica teria o direito de ter a filha de volta, explica a defensora Lívia, que assumiu o caso já em andamento, depois que tomou posse na Defensoria. “Só há a justificativa de retirada da criança de seu lar quando há maus tratos, abandono material, que significa a falta de saúde e alimentação, ou abuso sexual”, discorre. “Mesmo assim, no caso de abuso, é o abusador que tem que sair de casa”. Ela também explica que existem outras medidas a serem buscadas antes do acolhimento por outra família. “Antes da solução do abrigo, também deve-se procurar outros membros da família que possam ajudar”. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que o Estado insira as famílias em situação de vulnerabilidade em programas sociais para evitar a retirada da criança por razões de pobreza. “O que se vê é uma sobrecarga em cima da família, que não vai resolver a situação sem apoio”, observa a defensora.
Jéssica doou todas as roupas e brinquedos de Júlia, não por falta de esperança, mas por saber que a menina, 11 meses depois, já não caberia nelas ou brincaria com eles. Para driblar a falta de escola para Jorran e Felipe, tenta ensiná-los sobre os números e as letras com aplicativos de celular. Enquanto os meninos se divertem com o smartphone, o pensamento de Jéssica imagina Júlia. “Penso nela 24 horas, penso como deve estar o rostinho dela agora. Só queria abraçá-la e voltar a ter nossa família completa”.