Por Guilherme Scalzilli, publicado em Jornal GGN –
Há semanas preparo uma análise sobre a atuação de Ciro Gomes na campanha presidencial. Outros autores se anteciparam à minha obsessão corretiva, publicando textos com viés muito semelhante. As redundâncias são inevitáveis. Tanto melhor, se fortalecerem o argumento de que o pedetista não representa uma alternativa de esquerda para as eventuais futuras eleições.
Apesar da indulgência de seus militantes, a postura de Ciro no segundo turno foi indefensável. Numa disputa “normal” já soaria imatura e incoerente, no mínimo porque ele defendeu a inocência de Lula. Entre os apoiadores tardios de Fernando Haddad, poucos se atreveram a tanto, o que não deixa de ilustrar o alcance de suas leituras sobre a ascensão fascista.
Mas contra Jair Bolsonaro não há calo pisado ou ego ferido que justifique passar a batalha decisiva fazendo turismo na Europa e chegar na véspera do pleito bancando o isentão rancoroso. Ciro literalmente fugiu da luta, satisfeito em afirmar que seu (não) voto fora declarado por frases alusivas salpicadas em dois vídeos amadores perdidos nas redes sociais.
É inútil especular o peso dessa traição no resultado, as chances improváveis de Ciro ganhar a disputa sozinho, a conveniência da estratégia petista ou a moralidade do jogo de alianças que o próprio pedetista legitimou quando acreditava poder vencê-lo. Pouco importam seus motivos pessoais e os segredos de bastidores que ele menciona, mas estranhamente oculta.
O problema reside na imagem que Ciro fez de si mesmo dando de ombros ao destino do país para vingar-se da cúpula de um partido. Não é possível aceitar que um político veterano, com ares de estadista ponderado, tome decisão dessa gravidade por ressentimento. E há algo de ofensivo na trivialidade bonachona de suas atuais manifestações sobre o tema.
Ciro parece mesmo repetir os equívocos de Marina Silva. Basta observar a facilidade com que ele incorporou os cacoetes do marinismo, particularmente a mania de vitimização e o uso do PT como pretexto coringa para amenizar suas incoerências. Também a agressividade desse discurso negativo, de incômoda semelhança com a apologia punitivista da Lava Jato.
O erro de Marina foi imaginar que, embora suas ideias não sejam “de esquerda”, talvez sequer progressistas, criticando Bolsonaro ela se garantia automaticamente no centro. Na verdade, porém, o repúdio ao PT a afastou desse objetivo. Rejeitando Haddad, um moderado clássico, a candidata reduziu-se a uma versão amena do polo vencedor. Igual a seus ex-aliados tucanos.
Ciro inoculou-se dessa esquizofrenia. Alojado num antipetismo vazio e autocomplacente, julgou pragmático abandonar o PT na certeza da derrota. Mas não percebe que a adesão tática ao eixo ideológico do Regime de Exceção inviabiliza seus planos centristas futuros. Afinal, quem faz “oposição construtiva” ao fascismo é a direita. Ou vamos agora evitar o rótulo de fascista para Bolsonaro porque Ciro precisa do figurino apaziguador?
Sem cargo de destaque, marcado pela demonstração de inconfiabilidade (algo fatal no meio político) e longe da maior bancada legislativa, o pedetista flerta com o isolamento. Quando se omitir diante dos arbítrios ou fizer discursos inábeis sobre as reformas antipopulares, ganhará imediata resistência dos movimentos sociais. E passará a atacá-los, como de praxe.
A esquerda ganharia muito se tirasse o bode eleitoral da sala, observando o cenário limpo das agendas pessoais e da intemperança autodestrutiva de Ciro. Talvez assim percebesse a falta que fazem espíritos agregadores nas articulações do campo progressista. Especialmente em circunstâncias adversas, que determinam o caráter e a legitimidade das verdadeiras lideranças.
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