Desfile das grandes escolas de samba do Rio em 2024 dobra aposta na cultura, mantém o engajamento e se empenha nas melhores causas sociais brasileiras
Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora
O espetáculo atravessa um par de madrugadas, com elenco que ultrapassa 36 mil pessoas; a maioria não se conhece; inexiste ensaio geral, tampouco prova de roupa; o cenário todo só fica pronto na hora; a apresentação se dá em cortejo de 800 metros e obriga a conduzir equipamentos gigantescos, de formatos diferentes entre si; ocorre em tempo determinado; acontece sob chuva ou céu estrelado, calorão ou ventania; por fim, um júri avalia o desempenho, sob parâmetros únicos (e algo peculiares).
A mágica coletiva terá, daqui a pouco mais de duas semanas, sua 92ª edição. Transcorre (quase sempre) sem maiores sobressaltos anualmente, desde 1932, e, ao longo dessa odisseia, consolidou-se como emblema de paixão, beleza, drama, superação, arte – a melhor cara do Brasil. Obra, resistência e conquista do povo preto do Rio.
Fosse na Alemanha, no Japão ou em outra terra de colonizador, o desfile das grandes escolas de samba cariocas seria exaltado mundo afora, como aferição da excelência de uma sociedade. Encontrariam até jeito de endereçar o Nobel a algum artista criador. Mas tais privilégios não alcançam a periferia. Tudo certo – a gente se diverte por aqui sem precisar de aval alienígena.
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Para 2024, as grifes da folia oferecem cardápio de enredos com agudo sentido cultural, inspirados em livros, personagens essenciais de presente e passado, histórias mágicas e misteriosas – sempre com muita macumba. Novamente, a maratona estará pautada por muito engajamento político, de inegociável viés progressista. Viagem virtuosa e, até onde a vista alcança, sem volta.
Quase todos os temas flertam com os ODS, mas alguns tocaram em especial o coração do #Colabora – e nenhum mais do que o criado pelo carnavalesco Edson Pereira para o Salgueiro. “Hutukara” será uma celebração-defesa do povo Yanomami, denunciando o genocídio contra a etnia no governo Bolsonaro. A palavra-título é pura poesia: “O céu original a partir do qual se formou a terra”.

O vizinho Oscar #RioéRua Valporto abriu o coração salgueirense e detalhou a proposta, que produziu alguns dos versos mais bonitos do ano: “Pelo povo da floresta/ Pois a chance que nos resta/ É um Brasil cocar!” Será lindo e forte, como convém.
Outro enredo totalmente #Colabora conduzirá a Portela. A maior campeã e mais tradicional das escolas vai apresentar “Um defeito de cor”, inspirado no livro espetacular (e homônimo) de Ana Maria Gonçalves. André Rodrigues e Antonio Gonzaga, os carnavalescos, conceberam uma resposta de Luis Gama, o abolicionista, à mãe, Luiza Mahin, líder de seu povo em Salvador. “Saravá Kehinde! Teu nome vive!/ Teu povo é livre! Teu filho venceu, mulher!/ Em cada um de nós, derrame seu axé!”, celebra o samba. Lindo!
O índice #Colabora de Carnaval passeia por outras escolas. Como o Paraíso do Tuiuti, que também falará da luta pela liberdade, em “Glória ao Almirante Negro”, reverência a João Cândido, o líder da Revolta da Chibata. Eternizado em “Mestre-sala dos mares”, a canção icônica de Aldir Blanc e João Bosco, o personagem entra para a coleção de temas progressistas da escola de São Cristóvão nos últimos anos.
Personagem negro menos conhecido, Ras Gonguila, mito da folia de Maceió, protagoniza o desfile da Beija-Flor. A gigante nilopolitana desfilará com enredo delirante (criação do carnavalesco João Vítor Araújo) para festejar o folião descendente de escravizados que se intitulava herdeiro da realeza etíope.
Na exaltação à cultura popular, difícil será bater a Mangueira e seu “A negra voz do amanhã”, enredo-homenagem a Alcione concebido pelos carnavalescos Annik Salmon e Guy Estevão. Ícone da própria escola, a cantora maranhense terá sua história conjugada à aposta que fez no futuro, ao fundar a Mangueira do Amanhã. Garantia de emoção.
Assim como “Gbalá – Viagem ao templo da criação”, da Vila Isabel, que repete enredo de Oswaldo Jardim (1960-2003), apresentado originalmente em 1993 com a mensagem de um mundo melhor a partir da valorização das crianças. “Quando acaba a criação/ Desaparece o criador/ Pra salvar a geração/ Só esperança e muito amor”, reza o samba magistral de Martinho da Vila, gênio brasileiro que vai comemorar seu 86º aniversário no desfile da escola.
Flertam com os parâmetros #Colabora também os enredos de Grande Rio, “Nosso destino é ser onça”, baseado no livro de Alberto Mussa e em mitos tupinambá; de Mocidade e a irreverência do “Pede caju que dou… Pé de caju que dá”, sobre a fruta “com a cara do Brasil”, como reivindica o samba; e da Viradouro, no seu “Arroboboi, Dangbé”, sobre a energia do culto ao vodum serpente, influência decisiva para as guerreiras do Daomé.
Certa mesmo só a vitória da cultura mais popular, preta e brasileira, que move as escolas de samba cariocas. Tem de ser muito ruim da cabeça ou doente do pé para não ser apaixonado pela magia incrível dos bambas da Sapucaí.
