A mídia, as manifestações e o presidente incomível, por Eliara Santana

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Compartilhado de Jornal GGN – 

A beleza de manifestações cujo mote é a vida não foi dimensionada pela mídia corporativa brasileira. Imperou o silenciamento como linha editorial. Intencional e bem decidido.

Foto Rede Brasil Atual

A mídia, as manifestações e o presidente incomível, por Eliara Santana

No dia 29 de maio, um sábado bonito de outono, o Brasil da esperança, da alegria e dos afetos foi às ruas gritar “Fora, Bolsonaro”. Houve manifestações em todos os estados e no Distrito Federal, em várias e várias cidades, grandes e pequenas. Houve carreatas também. A indignação com o genocídio do governo federal foi maior que o medo do vírus. Nas ruas, todos de máscaras, sem beijos e abraços, sem tomar cerveja, tentando manter o distanciamento. Foi bonita a festa.
Mas, sem patos de verde e amarelo na porta da Fiesp e dancinhas esquisitas, a mídia não deu muita bola para os protestos.




No JN, Bonner não se levantou para, de pé, fazer uma expressiva fala e chamar a reportagem sobre as manifestações – como fez algumas vezes quando o assunto era manifestação contra racismo nos EUA. Bem, ontem, Bonner nem estava na bancada, e a cobertura foi a mais burocrática e sem graça possível, ressaltando, a todo momento, que “em alguns locais houve aglomeração”. As pessoas saíram de casa, mesmo com medo, usaram as máscaras, houve distribuição de máscaras em várias cidades, houve batuque alegre, os deslocamentos estavam procurando respeitar o distanciamento, havia muitos jovens e muitas crianças… mas nada disso mereceu estar na pauta. Os critérios de notícia que orientam as decisões da grande mídia corporativa brasileira são de fato bem únicos.

Na cobertura das manifestações nos EUA, o repórter ia correndo ao lado da multidão, naquele movimento elétrico, dando a dimensão da energia da multidão e o tamanho do deslocamento. Ontem, as imagens eram todas do alto, imagens de helicóptero. Nenhum repórter na pista, nenhuma entrevista, nenhuma tomada mais de perto. Nas manifestações com os patos amarelos, a cobertura começava na saída da família de casa… ontem havia muitas famílias, muitas crianças com cartazes. Mas nada disso foi mostrado, foi destacado. Nenhuma criança com cartaz mereceu atenção dos repórteres. Alias, não havia repórteres nas ruas.

A caminhada em várias cidades – Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, Porto Alegre, por exemplo – foram muito grandes, distâncias grandes foram percorridas sem confusão, sem aglomeração, com organização e alegria. Por que não havia repórteres caminhando junto, mostrando a festa cívica, a alegria, o compromisso com a civilidade? Só é legal correr em manifestação nos EUA?

A passeata em São Paulo foi gigantesca – passeata numa pandemia, com tanta gente já combalida, com medo, deveria merecer destaque. Mas isso não foi dimensionado pela TV Globo. Mereceu segundos protocolares, com imagens do alto, no JN.

Com as outras TVs abertas, a cobertura protocolar foi ainda pior. A Band deu algum destaque, mas muito pouco tempo. O SBT mostrou os protestos também destacando que houve aglomeração. A Record dispensa comentários. Na TV do bispo, o presidente genocida sequer foi mencionado.

A beleza de manifestações cujo mote é a vida não foi dimensionada pela mídia corporativa brasileira. Imperou o silenciamento como linha editorial. Intencional e bem decidido.

Hoje, domingo, a exceção fica por conta da Folha de S. Paulo. Na capa, foto maravilhosa da Avenida Paulista lotada, e a manchete: “Milhares saem às ruas contra Bolsonaro pelo país”. Uma manchete que destacou a força do evento e não se rendeu a sectarismos.

Mas foi apenas a Folha. Nos outros jornalões – O Globo, O Estado de São Paulo – nada de destaque na capa. O Estadão disse numa chamada quase escondida que as manifestações provocaram aglomeração, e O Globo fez uma manchete ilusionista pra salvar o neoliberalismo predatório de Paulo Guedes – segundo o jornal, o PIB está reaquecendo, e as empresas desengavetam projetos. Os jornais de Minas mantiveram a mesma ojeriza de sempre a tudo o que é genuinamente popular e não deram bola para a manifestação em BH. O Tempo ainda teve a desfaçatez de destacar como manchete o Ministério da Saúde, no dia seguinte à enorme manifestação pela vacina, que encheu as ruas da capital mineira.

A mídia estrangeira deu destaque, e o jornal inglês The Guardian trouxe uma bela reportagem sobre as manifestações no Brasil.

No final do dia, para deixar sua marca, o atual ocupante do Planalto divulgou uma foto, nas redes sociais, com um cartaz em que ele se autodeclara “imorrível, imexível e incomível”.

E a imprensa brasileira, como novamente prova a cobertura pífia das manifestações populares, tem parcela gigantesca na conta da eleição e da manutenção de um presidente com tais atributos.

Eliara Santana é uma jornalista brasileira e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com especialização em Análise do Discurso. Ela atualmente desenvolve pesquisa sobre a desinfodemia no Brasil em interlocução com diferentes grupos de pesquisa.

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