A morte de Laércio de Freitas, um gênio da música

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Deixa filhos musicais e amigos por toda parte. Ontem, o Facebook coalhou de mensagens de músicos brasileiros saudando o grande gênio que nos deixou

Por Luis Nassif, compartilhado de seu Blog




A primeira vez aque ouvi falar de Laércio de Freitas foi no longínquo ano de 1980. Estava recém contratado como chefe de reportagem de Economia do Jornal da Tarde e, de vez em quando, dava uns pitacos sobre música. Aí, fui procurado por Armando Aflado, produtor do selo Eldorao, com uma proposta de escrever a contracapa de um LP de Laércio.

Até então, só conhecia Laércio pelo deu hit “Capim Gordura”.

Esmê era Esmeraldino Salles, um fantástico compositor paulistano que eu havia conhecido no Festival do Choro da Rede Bandeirantes, alguns anos antes.

Fui com Aflalo acompanhar as gravações, no estúdio Eldorado. O que ouvi foi um baque, uma harmonia fantástica e imprevisível que deixava louco o Xixo, cavaquinho conhecido em São Paulo, mas era dominada com maestria por Heraldo do Monte, o grande violonista nordestino.

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Escrevi a capa falando dos gênios anônimos, como Casé. Depois, fiquei preocupado. Será que meu entusiasmo não poderia ter sido afetado pelo fato de ser minha primeira contracapa? Com o tempo, o LP tornou-se um dos mais importantes da história do choro.

Muitos anos antes, perguntei a Rafael Rabello quem Radamés Gnatalli tratava como gênio. A resposta me acalmou:
– Radamés dizia que, entre os vivos, gênio é Laércio de Freitas.

Com o tempo foi ampliando nossa amizade e as informações que me chegavam dele. Conversando com os maiores músicos de São Paulo – como Proveta -, todos eles em algum momento mudaram depois de receber conselhos do “tio” – como Laércio era chamado.

Era o próprio preto velho da umbanda, com seu modo vagaroso de falar, os conselhos que dava, as frases para cada ocasião. Tornou-se frequentador dos nossos saraus, com sua querida Piki.

Agora, o amigo Itamar Assieri me conta que Laércio foi o um dos dois pianista que tocaram a quatro mãos com Radamés – o outro foi sua irmã Aida Gnatalli.

Deixa filhos musicais e amigos por toda parte. Ontem, o Facebook coalhou de mensagens dos maiores músicos brasileiros saudando o grande gênio que nos deixou.

Aqui, a contracapa que escrevi

Ao nosso amigo Esmê (Luís Nassif)

Publicado em Texto de contracapa do disco “Ao nosso amigo Esmê” de Laércio de Freitas (LP, Eldorado, 1980)

Existem alguns músicos, poucos deles, que possuem a rara capacidade de construir um universo de som particular. Suas emoções não se expressam através dos caminhos tradicionais. Em sua música, há sempre os acordes improváveis, ousadias, soluções aparentemente ásperas, que tornam as primeiras audições praticamente intransitáveis para os ouvidos convencionais.

À medida que se aprende a entender esse mundo, que se penetra em suas emoções particularíssimas, revelam-se belezas insuspeitadas, formas absolutamente singulares de expressar na música a velha e eterna gama de sentimentos humanos. A seu modo, são líricos, são trágicos, nostálgicos, moleques, apaixonados, satíricos.

São os verdadeiros criadores e, como tal, formam um grupo seleto, pouco numeroso e pouco acessível a seus contemporâneos. São homens da estirpe de um Garoto, Johnny Alf, Hermeto, Casé, Esmeraldino.

Laércio de Freitas é um desses criadores; e esse disco a primeira oportunidade de se penetrar em seu universo musical. São dez composições — nove dele, uma de Esmeraldino Salles — que, à primeira audição impressionam pelo inusitado, pela capacidade de mudar o andamento no meio da fase melódica, de incluir notas a mais na frase, voltas a mais na melodia. Num segundo momento, percebe-se que essas liberalidades, mais do que meros preciosismos, formam um todo lógico, denso, homogêneo, um mundo musical extremamente criativo e original.

É este o mundo musical de Laércio de Freitas, o Tio, um campineiro tranquilo, nascido em 1941, morador da Vila Mariana, em São Paulo, pai de duas “camondongas” (título da música dedicada às filhas), que se divide profissionalmente entre apresentações na noite e produção de jingles.

Como tudo o que é novo, o som de Laércio não é facilmente identificável. Em sua usina de som misturam-se influências diversas, os onze anos de Conservatório Musical Carlos Gomes, de Campinas, o boogie woogie, o piano de Nat King Cole…

Porém, acima de toda e qualquer influência, sobrepaira uma ligação poderosa com a música de Esmeraldino Salles, “o nosso amigo Esmê”, músico de fôlego, dono de uma harmonia personalíssima, falecido no ano passado praticamente desconhecido das novas gerações. Sua última apresentação em público, o Arabiando, apresentado no Festival do Choro da Bandeirantes em 1978, teve o efeito de um soco no queixo da platéia, por sua estrutura absolutamente anticonvencional.

As lembranças musicais e pessoais desses anos de convivência com músicos e músicas geraram esse acervo de novo composições, onde convivem o clássico, o moderno e o nostálgico. É um disco para se ouvir várias vezes, para se identificar a variedade de soluções originais que Laércio descobre para o choro. E, acima de tudo, para se entender que ser anticonvencional na música exige um profundo aprendizado e conhecimento musical.

Às vezes uma letra aparentemente ousada de uma composição dita de vanguarda é envolta em uma música onde os acordes são dispostos disciplinarmente, um na sequência do outro, forrando uma passarela por onde a melodia caminha sem sobressaltos e sem grandes vôos.

Em Laércio, ao contrário, as harmonias são pinguelas, labirintos, curvas de alta velocidade, que obrigam as notas sairem pulando, agarrando-se de acorde para não se despregarem da melodia.

Inegavelmente é um disco importante. Talvez o maior sopro de renovação que varreu o choro nos últimos tempos.

LUÍS NASSIF

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