Por Roberto Salim, compartilhado de Ultrajano –
…Dentro desse mundo paralelo em que vivia, dizia que seria ainda treinador da sua Ferroviária. E nos anos 90, quando aumentou mais a vontade de ser técnico, garantia que traria Marcelinho Carioca para bater faltas e defender a equipe. Coisa de torcedor símbolo e jogadores símbolo
Sempre que morre um torcedor símbolo de um time de futebol aqui em nosso país, eu creio que o clube morra um pouquinho também. Sua história se vai com essa gente apaixonada, muitas vezes sem posses, que se mistura às cores das camisas que tanto amam. Nesta terça-feira se foi Oswaldo Salvador, o Lua, torcedor da Ferroviária de Araraquara.
Quem me informou na manhã desta terça foi o Gustavo Ferreira Luiz, jornalista e pesquisador do Museu da Ferroviária. Ainda jovem, guarda histórias herdadas de seu pai, que o levava ao campo para sofrer com a equipe afeana.
Na reportagem que me enviou está escrito que Lua morreu de câncer, aos 82 anos.
Mais: que nos anos 60 fazia propaganda para uma padaria da cidade, correndo em volta do campo com um pão de 3 metros.
Na cidade, Lua também se destacava porque dava cartões vermelhos a quem abusava no trânsito.
Como todos os torcedores símbolos, era pacífico.
O Palmeiras teve João Gaveta, que estava em todos os jogos.
De basquete ao futebol da Academia de Ademir da Guia.
Uma vez foi com a equipe de basquete a Franca e no ginásio do grande adversário só escapou de uma coça porque o time todo foi protegê-lo.
Meu amigo Oswaldo Colibri conta sempre uma história do João Gaveta. João ia a alguns jantares da diretoria. E em uma dessas ocasiões disse aos gritos que o diretor “tal” era ladrão, sem se dar conta de que o tal dirigente era o patrocinador do jantar.
Mas João Gaveta podia.
Ele era símbolo.
E o que dizer então de Elisa, a maior corintiana de todos os tempos? Até governador a recebia. Ia com sua bandeira ao Pacaembu e ocupava a curva dos portões de entrada. Muitas vezes eu ia a campo só para ficar observando sua agitação. Ela amava seus meninos, os jogadores alvinegros.
Superfiel torcedora.
Elisa.
Uma vez, quando trabalhava na Folha de S.Paulo, fui a sua casa antes de um jogo importante. Era no Jardim Brasil em uma rua de terra, que virava barro com as chuvas. O governador da época a recebeu dias depois para tratar do calçamento.
Até em filme do Mazzaropi ela trabalhou.
Eta, saudade!
“O Lua era filho de feirantes aqui de Araraquara”, me conta outro apaixonado jornalista araraquarense, Alessandro Bocchi. “Ele trabalhava na feira em um bairro chamado São Geraldo, que era onde ficava a concentração da Ferroviária. Lua tinha um atraso em relação à idade, então seu pai, que já conhecia os jogadores, pediu que quando morresse o pessoal do time cuidasse do filho. E Lua foi mesmo adotado pelos jogadores. Engraxava os sapatos dos craques, fazia pequenas compras. Passou a morar na concentração.”
Dentro desse mundo paralelo em que vivia, dizia que seria ainda treinador da sua Ferroviária.
E nos anos 90, quando aumentou mais a vontade de ser técnico, garantia que traria Marcelinho Carioca para bater faltas e defender a equipe.
Coisa de torcedor símbolo e jogadores símbolo.
“O Bazzani, que era o grande ídolo do time na década de 60, conviveu com ele e o ajudou sempre. Lua vivia dentro da realidade, mas também tinha um mundo paralelo. Ele morava na concentração. Ia aos jogos com a Ferroviária. Na semifinal do Campeonato Paulista de 1975, contra a Portuguesa, quando o time estava chegando ao estádio, os jogadores desciam do ônibus e os jornalistas viam aquele integrante da comissão técnica com direito a jaleco e tudo. Era o Lua. Ele entrava no vestiário com os jogadores”, recorda Bocchi.
“Antes disso, em 1973, tem uma história curiosíssima: a Ferroviária ia pegar Botafogo numa situação muito difícil. E Lua foi junto. E ele era boêmio, chegou lá de terno branco. E o repórter de Ribeirão Preto comentou no ar: ‘A Ferroviária está mesmo desesperada, tanto que trouxe até Pai de Santo junto com a delegação’. E o Botafogo, por superstição, não permitiu que o Lua entrasse no vestiário. A revolta foi grande, tanto que o presidente da Ferroviária, Wellington Pinto, se recusou a se sentar nas tribunas, ficou vendo o jogo das arquibancadas, para ficar com o Lua.”
Quando, em 2003, o alojamento da Ferroviária deixou de existir, Lua foi morar embaixo das arquibancadas da Ferroviária, perto do gol de entrada. Alessandro Bocchi lembra que era curioso chegar ao estádio com o time entrando em campo e Lua deixando seu alojamento e entrando também.
“Ele pegou um período em que a Ferroviária caiu para a Série A-3, para a Série B-1, e os jogos aconteciam de manhã. Então, muitas vezes Lua acordava e já estava vendo o jogo.”
Com a reforma da Fonte Luminosa em 2008 então, ele teve que sair de baixo da arquibancada no portão de entrada e ir morar ao lado das piscinas, onde fizeram um cômodo para ele.
“Lua ganhava camisas de jogadores que chegavam, que iam para outros clubes e também da diretoria. Era uma figura.”
“Por tudo isso aqui, está uma comoção na cidade. Antigos jogadores da velha guarda e mesmo os que estão hoje aqui todos estão postando fotos em que estão ao lado do Lua em várias situações. E ele viveu no clube até esta madrugada, quando faleceu, aos 82 anos. Nasceu em outubro de 1938. E sempre almoçava e jantava na pensão do clube”, completou Alessandro Bocchi.
Mas, como as histórias não terminam, agora quem vai falar de novo é Gustavo.
“Luciano Lamoglia, que jogou na Ferroviária na década de 90, gostava muito do Lua. Um dia, já com a carreira encerrada, Luciano passou em Araraquara para visitar os amigos e levou o Lua para passear no Rio de Janeiro, para conhecer o mar. Lua sonhava com isso. E o Luciano realizou esse sonho: levou para o Rio e trouxe o Lua de volta.”
Nesta terça-feira Lua se foi.
Tinha até carteirinha de auxiliar-técnico e observador do time máster da equipe grená.
Partiu sem ter sido o técnico oficial do time querido. Mas sempre será a pessoa mais querida de seu time.