A morte de Vinicius, meu tipo inesquecível, por Luís Nassif

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Seu mundo era muito simples, só de afetos, sem complicações. E acompanhei sua construção. Cada pessoa que entrava em sua vida não saía mais

Por Luis Nassif, compartilhado de seu Blog




Tenho por hábito chamar as pessoas de “bichão”. Um dia, o Vinão veio tirar satisfações. Não queria ser tratado como “bichão”. Negociamos por alguns minutos e ele aceitou o novo tratamento: “filhotão”.

De fato, era meu filhotão, enteado querido, filho de minha esposa Eugênia Gonzaga e, desde o primeiro momento que o conheci, menino ainda, meu tipo inesquecível.

Vinão, o VInicius Gonzaga Fávero, morreu dias atrás, vítima de dengue e de uma infecção hospitalar.

Mas nasceu iluminado. Quando nasceu, ainda no hospital, a mãe recebeu a visita de outras mães de crianças com down e conheceu o movimento. Lá, pela professora Mantoan, ouviu falar da relevância da educação inclusiva – isto é, das crianças com deficiência poderem frequentar escolas normais, em vez dos cercadinhos terríveis das APAEs.

Procuradora, resolveu consultar a Constituição. Lá estava explícito que toda criança tinha direito à educação. Criança com deficiência era criança. Por isso tinha o direito indisponível – isto é, um direito que nem os pais poderiam ser contrários. Se a escola não se sentisse preparada, que se preparasse.

Lançou a campanha, enfrentou mais de 3 mil ações das APAES e, principalmente, a pressão de federações, do inominável senador Flávio Arns.

Constatou que a única maneira de conseguir avançar seria convencer o Ministro da Educação. Começou por Paulo Renato. Ele se convenceu da importância da educação inclusiva, demitiu a secretária do setor, lobista das APAES, mas já estava em final de gestão.

Procurou, então, seu sucessor, Cristovam Buarque. Foi o mesmo que falar com uma pedra. Aguardou o Ministro seguinte, Tarso Genro. E foi ouvida pelo jovem Secretário Executivo, Fernando Haddad. Tornando-se Ministro, Haddad deu início ao mais relevante projeto de sua gestão, incluir 900 mil crianças com deficiência na rede federal, com todo apoio do Ministério.

Um dia, em um dos saraus em casa, eu mal começando o relacionamento com Eugenia, Haddad a apontou e me disse:

– O programa de educação inclusiva saiu por causa dela, que não largava do meu pé.

Era a presença de Vinicius, empurrando a mãe para a grande batalha.

Quando conheci Eugenia, convidei-a para um sarau em meu apartamento. Morava no 19o andar. Ela chegou com Vini, com pouco mais de dez anos, que correu para a varanda e voltou com os olhos estatelados:

– Eu vi a morte!

Ganhou minhas filhas na época.

Quando a mãe se separou, sua grande preocupação é que ela não ficasse sozinha. Criou até um personagem para a mãe, um jogador de futebol.

Mas quando saiu do sarau em casa, nem havíamos iniciado uma relação, ele perguntou à mãe:

– Ele é seu melhor amigo?

Passei a entrar no maravilhoso mundo de Vini no curto período em que ele e Eugenia foram morar em meu apartamento, enquanto terminava a reforma na sua casa. Montamos seu computador no meu quarto de trabalho, em frente ao meu.

Eu chegava à noite, ia trabalhar. Invariavelmente Vini estava escutando músicas, dos mais variados estilos e com um bom gosto inacreditável para uma criança. Ia da sertaneja à ópera, adorava Vicentina, que é como se referia a Dalva de Oliveira. Tratava todas suas ídolas pelo nome de batismo. Não era Nana Caymmi, era Dinahir. E sabia o nome de todos os irmãos de Carmen Miranda.

Seu mundo era muito simples, só de afetos, sem complicações. E acompanhei sua construção. Cada pessoa que entrava em sua vida não saía mais, graças a uma memória excepcional. E tinha uma sensibilidade única para identificar pessoas vulneráveis.

Nas nossas reuniões, se via alguma pessoa deslocada, tratava de se aproximar e prosear. Certa vez, na casa de um amigo, a filha – pianista talentosa – ficou nervosa, errou a música e correu para o quarto, para chorar. Vinão foi atrás, e a trouxe de volta.

Por onde passou, deixou sua marca. Com pouco mais de 10 anos, foi acampar. Fomos buscá-lo na volta. Todos os monitores fizeram questão de nos dizer o que tinham aprendido com Vinícius. No seu funeral, estavam todos lá. Esse tempo todo mantiveram um grupo de Wjatsapp chamada de “Pizza com Vini”.

O mesmo aconteceu com alunos e professores que conviveram com ele no Colégio Dante Alighieri. Na festa de formatura, foi eleito a “melhor pessoa” e “o melhor fotógrafo”.

Um pouco antes, houve uma exposição de fotos dele, reproduzindo fotos históricas do Dante. Para a cerimônia, convidou todos os funcionários que o ajudaram e fez questão de apresentar um a um ao público.

Fazia questão de chegar na escola sempre uns 15 minutos antes do início das aulas, para mostrar músicas que pesquisara para os colegas. Aliás, com 13 anos seus ídolos maiores, além de Dalva de Oliveira, era o diretor Tim Burton. Que deficiência, que nada! E o dia em que ganhou uma aposta musical do Pelão – o maior produtor musical do país -, em torno do nome completo de Vinicius de Moraes. Explicou a Pelão que o nome era “Marcos Vinicius de Moraes”, e ganhou a aposta.

Na cerimonia de entrega do diploma de formatura, quando foi chamado, levantou-se todo sério, empertigado, caminhando de forma segura até o palco. Os coleguinhas ficaram de pé para aplaudi-lo, acompanhados de seus pais.

Não por coincidência, em pleno período do ódio bolsonarista, todos os discursos, de oradores e paraninfos, foram sobre a amizade, a solidariedade, a inclusão. Era a presença do Vinão.

Mas nada se equiparava à sua sabedoria de vida. Pegava no meu pé porque trabalho muito.

– Tem que curtir a vida, a família, para de trabalhar tanto.

Ficou indignado quando descobriu uma crônica antiga minha, “Ritos de Passagem”, em que eu falava o que queria no último dia de minha vida.

Aprendeu com a mãe a fiscalizar minhas refeições e reclamava quando eu comia pouco.

Gostávamos de nos provocar mutuamente. Às vezes ele exagerava e eu simulava ficar de mal. E ele:

– Você não aguenta!

E não aguentava cinco minutos de mal.

Mas como ficar de mal de um menino que toda manhã levantava, ia à cozinha, dava um abraço de urso na dona Edna e fazia massagens nela, quando estava com algum problema? Ou quando ia dormir na casa da moça que ajudou a cuidar dele desde o nascimento? Com 12 ou 13 anos ia passar fim de semana na sua casa, para orientar o marido sobre como tratar a amiga. E suas conversas com a única irmã biológica era uma cena inesquecível de ternura.

Vinicius tinha vulnerabilidades, dificuldade com a matemática, dificuldade em trabalhar com ironia. Mas tinha um talento desproporcional em muitos temas. A começar de uma memória prodigiosa. Depois, um bom gosto eclético e incomum que o fazia, desde muito cedo, apreciar das melhores músicas sertanejas às óperas de Mozart, aos Carpenters, Elvis Presley, Dalva de Oliveira.

Mas era, antes de tudo, um sábio, que sabia apreciar as menores e melhores coisas da vida e, especialmente, a família. Conhecia como ninguém a genealogia de todas as famílias.

Um dia lhe disse:

– Eita, Vinão. Com o casamento com sua mãe, você ganhou uma família, os Nassif.

E ele:

– Uma, não: quatro. Os Nassif, os Sarraf (do lado de minha mãe), os Mesquita (do lado de uma tia paterna) e os Aguirre (família de minha primeira esposa).

Todos estavam presentes no seu funeral.

Fomos criados assim, agregando famílias, da mesma maneira que a família de Eugênia. E, para Vinão, era o céu ter ganhado tantas famílias e, especialmente, ter ganhado cinco irmãs (minhas quatro meninas e minha neta).

Era capaz de uma saudação para a entrada do mês de março – do aniversário de sua mãe -, uma frase encantadora saudando o aniversário de cada conhecido, ou os conselhos que vivia me dando. Ou então, me presentear no aniversário com esse presente inesquecível.

À medida em que foi crescendo, passou a treinar para se tornar adulto. E um dos treinos consistia em me cobrar quando comia pouco, ou quando ia dormir muito tarde.

Rapazinho corajoso, foi enfrentando uma a uma as provas para se tornar adulto. Formou-se na Escola Pan-americana de Artes, tornou-se um fotógrafo de mão cheia.

Nos últimos meses foi morar com o pai para assumir sua vida de adulto. Conseguiu um emprego em uma consultoria. Fez todos os cursos exigidos, respondeu às provas, com o auxílio do pai. Mas respondeu a uma das provas sozinho e ganhou 8. Foi o que bastou para afirmar à companheira do pai que provavelmente ela não era mais down. Aliás, em uma semana ganhou a admiração de todos os companheiros de equipe.

Ao mesmo tempo, o último feito foi ter pegado sozinho o ônibus para o trabalho e deixar registrado no seu Instagram o pedido de ajuda a Deus.

Passamos os dois últimos dias relembrando os feitos do Vinão. Vieram fotos e vídeos de todas as partes, da família Nassif, dos Gonzaga, dos colegas do Dante, de amigos nossos, conquistados por ele em um encontro apenas.

Vinão deixa um mar de lembranças e de lições. Mais que nunca repito o que disse quando o conheci, ainda pequenino, em casa: é o meu tipo preferido.

Um pouco antes de entrar na coma definitiva, pediu à mãe uma coroa de flores vermelha e uma músicas dos Carpenters. No velório, foram mais de 30 coroas, de amigos e admiradores de todas as partes, dos monitores do acampamento aos colegas do Dantes, dos frequentadores do ex-bar do Alemão.

Vinão virou estrela. Jamais sairá da lembrança de todos os que tiveram o privilégio de conhecê-lo.

Merecia que seu nome pudesse marcar um dia do ano, para celebrar a grande batalha da inclusão escolar.

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