Wadih Damous, Brasil 247 –
Vítima de insuficiência respiratória, Inês Etienne Romeu, ex-presa política que participou da resistência à ditadura, faleceu em 27 de abril de 2015, aos 72 anos. Mas no último 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Inês morreu mais uma vez. Nessa data foi publicada a sentença do juiz Alcir Luiz Lopes Neto, da Justiça Federal de Petrópolis, absolvendo o militar Antonio Waneir Pinheiro de Lima, vulgo “Camarão”, acusado por Inês de tê-la estuprado duas vezes na Casa da Morte, em Petrópolis.
Nessa masmorra da ditadura, os opositores do regime de terror implantado no Brasil eram torturados e executados clandestinamente. Mesmo depois de viver um inferno que durou longos três meses, de 8 de maio a 12 de agosto de 1971, período em que foi supliciada barbaramente e submetida ao tratamento mais cruel e desumano que se possa imaginar, Inês foi a única militante a sair com vida desse centro de extermínio.
A decisão do juiz, além de uma agressão à memória de Inês, está eivada de argumentos que afrontam uma conquista civilizatória pétrea que é o respeito aos direitos humanos. O magistrado se valeu inclusive de textos da lavra de um notório adversário das causas humanistas e democráticas, o pretenso filósofo Olavo de Carvalho, um dos ideólogos da extrema-direita brasileira: “Ninguém é contra os direitos humanos, desde que sejam direitos de verdade, compartilhado por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas.”
Em outro trecho da fundamentação de sua decisão, o juiz Alcir Neto segue exibindo uma visão de justiça turvada pela ideologia de direita, utilizando expressões que sinalizam sua simpatia pela ditadura civil-militar que infelicitou o nosso país por 21 anos. Para ele, Inês “exercia atividades perigosas à segurança nacional.” Cabe assinalar que a defesa da segurança nacional serviu de pretexto para toda sorte de violação de direitos humanos e de preceitos do estado democrático de direito, tais como prisões ilegais, sequestros, censura, tortura, assassinatos e banimentos.
Um dos autores da denúncia contra o militar estuprador, o procurador da República Sérgio Suiama, criticou duramente a decisão da Justiça Federal de Petrópolis, na qual não só são ignoradas todas as provas obtidas, mas também é desqualificado o valor da palavra da vítima do estupro, sob o argumento de que o fato só foi relatado oito anos depois. “Como se fosse possível à vítima ir a uma delegacia de polícia em 1971 registrar queixa contra os militares que a violentaram e torturaram”, rebate o procurador.
Na condição de ex-presidente da Comissão da Verdade do estado do Rio de Janeiro, presenciei os depoimentos de um grande número de brasileiros e brasileiras que padeceram nos porões da ditadura militar. Não custa repetir que tortura é crime de lesa-humanidade, imprescritível e inafiançável. Por isso, seja como advogado, deputado federal, militante dos direitos humanos ou cidadão, quero expressar o meu veemente repúdio à absolvição desse monstro da Casa da Morte. Igualmente me causa repugnância os termos da fundamentação da sentença.
Aproveito para prestar minha homenagem post-mortem à combatente pela liberdade Inês Etienne Romeu, que derramou seu sangue generoso em nome da causa democrática. Em depoimento prestado à Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, em 1979, Inês, que foi a última presa política a ganhar a liberdade, narra com riqueza de detalhes todo o seu calvário, massacrada que foi pelos verdugos do regime. Desesperada, chegou a tentar o suicídio quatro vezes para se livrar das dores da tortura física e psicológica. No entanto, tem lugar assegurado no panteão dos mártires da democracia, enquanto os covardes que a degradaram chafurdarão na latrina da história