A MP do Estado anarcocapitalista

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Por Maria Cristina Fernandes, publicado em Valor Econômico – 

Jair Bolsonaro prometeu a pequenos comerciantes e empreendedores tirar a trava do Estado do caminho de sua prosperidade. Com a MP da Liberdade Econômica, o presidente vai além do cumprimento de uma promessa de campanha. Em apenas quatro meses fez passar na Câmara uma iniciativa que ameaça a capacidade regulatória do Estado e mina os freios contra o abuso do poder econômico.

A Câmara que, na reforma da Previdência, funcionou como um contrapeso às medidas mais radicais do governo, desta vez, se limitou a podar as selvagerias mais gritantes contra o que restou da legislação trabalhista. Sob o escudo de uma proposta que, aparentemente, não afeta a vida da população, tornou-se sócia do anarcocapitalismo que inspira a equipe sub-30 que o Paulo Guedes colocou na secretaria de desburocratização do Ministério da Economia.




O texto aprovado tem a ambição de mudar os princípios constitucionais que regem a atividade econômica. Prevê que o Estado terá uma intervenção “subsidiária e excepcional” sobre o exercício de atividades econômicas. A Constituição já prevê que o Estado apenas explore uma atividade econômica sob o imperativo da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo. Mas estabelece que o Estado é agente regulador, devendo fiscalizar, incentivar e planejar a atividade econômica (artigo 174).

Medida ignora que relações econômicas também são de poder

Os meninos maluquinhos que gestaram o texto da MP nunca devem ter se perguntado se um Estado subsidiário comporta, por exemplo, a Embrapa, empresa pública que fomentou a salvação da lavoura na balança comercial. Ficam igualmente deslocadas, na definição de Estado prevista pela MP, as políticas de compras governamentais. A de merenda escolar, usada pelo Estado há muitos anos para incentivar a agricultura familiar, é apenas a mais inocente na bilionária lista de compras do Estado, de aviões a tecnologias sensíveis.
Não bastou entregar a Embraer. Trata-se agora de podar o Estado como parceiro do capitalismo nacional. A despeito de ser tratada como a carta libertária do empreendedorismo tupiniquim, fica difícil encaixar esta MP sob as asas do artigo 219 da Constituição: “O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos da lei federal.”

Foram princípios como este que embasaram a criação do Fundo Soberano, em 2008. Proposto ao Congresso em projeto de lei, à luz de experiências como a da Noruega, para reduzir a vulnerabilidade financeira do país e fomentar projetos estratégicos, acaba de ser extinto pela MP 881 sem que nenhuma urgência o justificasse.

Alessandro Octaviani, professor de direito econômico da USP, duvida da eficácia da MP sobre a atividade da economia e da capacidade de a sociedade comportar um impacto tão unilateral nas relações contratuais. Por isso, espera o veto dos tribunais: “A MP não alberga as grandes questões contemporâneas de uma sociedade solidária, está em desacordo com a ordem econômica constitucional e tende a gerar litígios em série.”

Para barrar a MP, o Supremo teria que fazer uma inflexão na toada liberal que vem marcando a atuação da Corte nos últimos tempos. É uma guinada mais difícil do que aquela que marca o freio no lavajatismo, exemplificado pelo 9×1 contrários à transferência do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo artigo “Tempos de Weimar”, do ministro Luiz Fachin, no Valor (12/6). Ainda está por ser gestada uma reação aos instintos primitivos do capitalismo bolsonarista para fazer mover o Supremo nessa direção, apesar de não faltarem indícios de que a Carta foi atropelada pela tenebrosas transações desta medida,

O time sub-30 de Guedes, ignora, por exemplo, o fato de que os contratos mediam não apenas relações econômicas, mas de poder. O texto estabelece que os contratos civis e empresariais são paritários e simétricos, ressalvada prova contrária. À luz desta MP dá para imaginar o que pode vir a se transformar, por exemplo, a terceirização dos benefícios do INSS. O governo pretende acabar com o monopólio estatal na gestão de benefícios como auxílio-doença, acidente de trabalho e salário maternidade. Apenas aposentadorias e pensões ficariam sob gestão pública.

Este é um mercado de R$ 130 bilhões, cobiçado por todas as seguradoras do planeta. Em muitos países, a gestão desses benefícios é privada mas o diabo mora nos detalhes dos contratos que os regulam. Estado pode contratar o seguro para repassá-lo ao cidadão ou o contrato pode ser feito diretamente com as seguradoras. Ambas as alternativas, se não forem bem reguladas, abrem uma avenida para apólices que podem minar a sobrevivência de milhões de brasileiros.

O país chegou no limiar de um mercado dominado pelas grandes resseguradoras estrangeiras em que as empresas nacionais viraram quase que meras vendedoras de seguro, sem um quadro jurídico que discipline esses contratos. É nesse deserto de garantias que chega esta medida provisória com a ideia de um mundo encantado de contratos entre iguais, contrariando, mais uma vez, a norma constitucional que protege o abuso do poder econômico com vistas à “dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

No filme, “Eu, Daniel Blake”, do cineasta britânico Ken Loach, um marceneiro de meia idade sofre um ataque cardíaco depois de perder a esposa. É proibido pelos médicos de voltar a trabalhar e, para se sustentar, vai atrás de seu seguro por invalidez. A privatização do sistema em nada desburocratizou a concessão do benefício, dificultado ao máximo. A saga do personagem para obtê-lo fez do filme quase que um prenúncio do humor que marcaria o Brexit, em 2018, e, no ano seguinte, colocaria Boris Johnson no poder.

No Brasil, a ordem foi inversa. A ascensão do populismo de Jair Bolsonaro precedeu o desmonte do Estado provedor. Este foi o contrato de casamento entre o presidente e seu ministro da Economia. Agora as mentes colonizadas e maluquinhas que ascenderam ao poder com Bolsonaro ou aquelas bem mais estabelecidas que fazem dele a carona de ocasião, podem, sim, se orgulhar de ter colocado o Brasil na vanguarda. Do atraso.

Maria Cristina Fernandes é jornalista do Valor

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