Após elogios a governos autoritários na Argentina e no Chile, duas mães de desaparecidos políticos fizeram escritor mudar de opinião
Compartilhado de Jornal GGN
Na foto: Jorge Luis Borges, escritor argentino. Foto: Reprodução/turismo.buenosaires.gob.ar
Fio publicado no Twitter por Federico Guzmán Rubio, professor do Instituto Tecnológico Autônomo do México (ITAM) e autor de livros publicados no México, Espanha e Argentina.
Texto original pode ser lido clicando aqui
Muito se tem falado sobre a relação de (Jorge Luis) Borges com as ditaduras argentina e chilena. No entanto, acho que não é uma história totalmente conhecida. Abro um tópico que começa num almoço na Casa Rosada e termina num túmulo em Genebra.
Após o golpe, a ditadura precisava se legitimar e o que poderia ser melhor do que tomar chá com os dois escritores argentinos mais prestigiados da época: Borges e (Ernesto) Sabato. Videla (Jorge Rafael Videla, ex-ditador argentino) os convidou para almoçar na Casa Rosada e os dois foram felizes. Borges declarou que Videla era “um cavalheiro”
Pouco depois, Pinochet (Augusto Pinochet, ex-ditador chileno) o convidou para ir ao Chile para receber o reconhecimento. Mais uma vez, Borges aceitou alegremente e foi cheio de elogios ao ditador. A isso devem ser adicionadas várias declarações de apoio de Borges às ditaduras, nas quais ele via uma salvação contra a ameaça do comunismo.
Por que o fez? Por seu ódio ao comunismo, mas também por sua admiração pelos militares. Neles, Borges sempre viu algo heroico e honroso, tão distante de sua vida livresca. Além disso, Borges se orgulhava de seus ancestrais militares distantes, como neste poema.
No entanto, depois desses almoços vergonhosos, as declarações de Borges foram cada vez mais esporádicas; ele até recusou discretamente um novo convite de Pinochet. E um dia, ainda em plena ditadura, este “requerido” apareceu com as assinaturas inesperadas de Borges & Bioy (Adolfo Bioy Casares, escritor argentino).https://8614b60f991997bfd6a1dd26caa655c7.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-40/html/container.html
O gesto hoje parece insubstancial, mas foi corajoso. É verdade que o prestígio de Borges o tornou imune à repressão, mas a ditadura não hesitou em fazer desaparecer escritores famosos, como Walsh (Rodolfo J. Walsh, jornalista argentino) ou Conti (Haroldo Conti, escritor). Mas o que mais me impressiona é por que a mudança em Borges.
No dia anterior, duas mães de desaparecidos haviam visitado Borges. Borges ouviu-os e acreditou neles. Simples assim: ele os ouviu, acreditou neles e mudou de ideia. O contraste com Vargas Llosa, por exemplo, é marcante, como explica (Juan José) Saer aqui.
Em uma de suas caminhadas por Buenos Aires, um soldado o reconheceu e o insultou, o que poderia ser uma sentença de morte. Borges, cego, doente e na casa dos oitenta anos, ergueu a bengala e ameaçou: “Vá embora, porque eu não respondo por mim”. O soldado começou a recuar.
Este episódio me leva de volta a “El sur”, minha história favorita de Borges. Nele, o protagonista, após uma vida cinzenta, morre em um duelo, embora não se saiba se é um delírio. Borges também, um velho, derrotou um soldado em duelo, “a céu aberto e atacando”.
Já na democracia, meses antes de morrer, Borges participou de uma das sessões do Julgamento das Juntas Militares, em que foram julgados os genocídios. No banco dos réus estava o tenente-general Videla, e a principal testemunha era Víctor Basterra, um verdadeiro herói.
Basterra foi sequestrado pela ditadura, torturado junto com sua esposa e filha recém-nascida, e escravizado por anos. Como ele era gráfico, os militares o obrigaram a falsificar documentos para os soldados que, como civis, eram responsáveis pelo desaparecimento de pessoas.
Basterra fingiu cumplicidade e conseguiu guardar uma foto das que tirou dos torturadores para falsificar documentos. Além disso, tinha uma memória privilegiada, podendo reconstruir cenas inteiras quando depôs, apoiado no arquivo que criou clandestinamente.
A memória argentina confunde-se com a memória de Basterra. Com suas fotos, ele deu um rosto aos torturadores da ESMA, onde 5.000 pessoas desapareceram e dezenas de repressores, incluindo Videla, foram julgados após centenas de horas de declarações e ameaças.
Assim, nessa sessão de Julgamento coincidiram Videla, Borges e Basterra: o tirano, o escritor e o herói. O tirano mais sangrento da história argentina, o melhor escritor da história argentina e o herói mais corajoso da história argentina, juntos em um julgamento.
A cena é única e borgesiana: Videla é Asterion, o minotauro sanguinário e imbecil, no fundo fraco; Basterra é Funes, o homem que lembra de tudo, com a diferença de que não reproduz o mundo, mas o transforma, e Borges é Dahlmann, o protagonista de “El sur”.
Após assistir ao julgamento, Borges publicou este texto fundamental. Nele, sintetiza-se a importância da justiça e da memória: “não julgar e não condenar o crime seria promover a impunidade e tornar-se, de alguma forma, seu cúmplice”. Lembre-se.
Em alguma passagem de Borges, de Bioy, Borges diz que é impossível não estar errado, mas que o importante é corrigir. Ele o fez e, na minha opinião, com honra e coragem. No entanto, essa retificação e sua defesa determinada da justiça e da memória não são conhecidas. Por quê?
Na minha opinião, porque isso não combina com a esquerda nem com a direita e a caricatura do estudioso trancado em sua torre de vidro lhes convém melhor. À esquerda, porque tira o monopólio da rejeição dos crimes da ditadura; para a direita, porque lembra o que é
Essa história, aliás, é contada com mais detalhes e paixão (mas sem links) em “El miembro fantasma”.