A nova encruzilhada brasileira, em seis hipóteses

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Por Antonio Martins, em Outras Palavras –  

Os autores do golpe dividiram-se. Abriu-se a possibilidade de uma saída democrática. Mas a narrativa atual da esquerda é impotente para aproveitar a brecha

“As ideias expressas neste texto foram desenvolvidas, também, em quatro vídeos criados coletivamente pela redação de Outras Palavras. Publicados originalmente na sexta-feira (19/5), eles conservam enorme atualidade e estão reproduzidos ao longo do artigo”

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I.

O Brasil foi sacudido, desde a última quinta-feira (18/5) por uma nova série de abalos políticos. O governo Temer, que se empenhava em aprovar as contra-reformas da Previdência e Trabalhista por meio de compra de votos de parlamentares, foi ferido, talvez de morte. Eclodiram, no mesmo dia, manifestações de rua, que cresceram na 6ª feira) e terão um grande teste neste domingo. Elas são a esperança de uma saída democrática. Mas trata-se de algo que ainda precisa ser construído, e exigirá grande esforço.




O protagonismo, no momento, não é das forças que resistem há um ano ao golpe, mas de alguns dos setores que mais se empenharam em consumá-lo e mais têm interesse em aprofundar a agenda de retrocessos a que o país está submetido. Desde quarta-feira à noite, a Rede Globo e a Procuradoria Geral da República afastaram-se do governo Temer e tentam claramente obrigá-lo à renúncia.

II.

Este movimento significa uma cisão grave e perigosa – ainda que calculada – na frente que sustenta o golpe. O governo Temer resiste a abandonar o posto – inculsive porque se o fizer, nas condições atuais, poderá escorregar de Brasília ao cárcere. A defesa do Palácio do Planalto é composta por linhas distintas, cujo grau de compromisso varia segundo seus respectivos interesses. À frente estão os ministros responsáveis pela articulação política: Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-geral da Presidência). Dependem, tanto quanto Temer, de foro privilegiado para conservar a liberdade.

Num ponto um pouco mais recuado postam-se o DEM (neste momento, a agremiação mais fiel ao Planalto), o PMDB (cujas divisões reemergem), o PSDB (que já recolocou-se à beira do muro) e as demais legendas da base governista. A fidelidade destes partidos é duvidosa. Já no sábado, o PSB anunciou sua defecção. Além disso, o próprio presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM), por exemplo, cedeu sua casa oficial para as articulações pró-Temer; mas já estuda as providências regimentais para uma evental eleição indireta. Numa terceira linha está a mídia extra-Globo. O Estado de S.Paulo (que viu, em editorial na 6ª feira, uma conspiração contra o presidente). A Folha (cujo proprietário, Otávio Frias Filho, escreveu no domingo, que o governo “ainda não acabou). Colunistas cuja opinião pesa no campo conservador, como Reinaldo Azevedo.

Desde 6ª feira à tarde, quando vieram à tona os vídeos da delação premiada dos irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da JBS, o Palácio do Planalto recolheu-se, certamente mergulhado em múltiplas articulações. A única aparição de Temer foi pífia: uma entrevista coletiva às 15h do sábado, em que atacou a Procuradoria Geral da República (sem ter a coragem de nomeá-la) e pediu perícia nos áudios comprometedores – sem, no entanto, criar nenhum fato novo capaz de reforçar sua posição. Mas seu poder de fogo não pode ser desprezado. Se resistir à renúncia, Temer pode transformar o esforço por seu afastamento numa operação longa e desgastante. Além disso, ele dispõe de armas ofensivas. Na 5ª feira, horas após a eclosão da crise, mandou suspender a verba de R$ 200 milhões que abasteceria uma campanha publicitária “comemorativa” de seu primeiro ano de “mandato”. A principal beneficiária era, previsivelmente, a Globo.

III.

O consórcio Globo-Procuradoria Geral da República (PGR) conta, porém, com alguns trunfos inigualados. Como a PGR maneja a Lava Jato, e como a opinião pública encontra-se obcecada por fatos ligados à corrupção, há um enorme arsenal de “novidades” a produzir. Elas podem chegar a todo o país instantaneamente, graças ao poder quase-monopólico da Globo e a sua capacidade comunicativa. Desde a época do impeachment, sucedem-se, com êxito repetido, as edições (às vezes quilométricas) em que o Jornal Nacional pinça, da montanha de denúncias produzidas pela Lava Jato, aquelas que deseja repercutir. Destaca, em letras ampliadas por zoom, as frases que constroem sua interpretação dos fatos. Eletriza audiências, convoca mobilizações e neutraliza versões contrárias.

A aliança Globo-PGR é responsável direta pela deflagração da crise que ameaça Temer. Os acordos de delação premiada dos irmãos-JBS foram fechados em março. Mas as gravações de seus depoimentos foram feitas apenas no início de maio. A emissora colocou-as no ar no exato momento em que Temer pareceia crescer junto aos setores empresariais. O jornalista Lauro Jardim teve acesso privilegiado ao material. Seu primeiro texto, publicado na quarta-feira, fantasiava o áudio da conversa entre Joesley Batista e Michel Temer. Na quinta-feira, Michel Temer aceitou o desafio (“Não renunciarei! Repito: não renunciarei!”). Mas o estrago estava feito: as bolsas haviam despencado, o dólar disparara, a confiança no governo estava no chão. E no dia seguinte, a constatação de que Jardim mentira foi rapidamente sepultada pelos vídeos da delação premiada da JBS, que têm potencial para devastar todo o sistema político.

IV.

Que quer a aliança Globo-PGR? Sua aposta é alta. Está em xeque um governo que era visto, até há muito pouco, como o sonho de consumo dos conservadores brasileiros: por não ter aspirações políticas futuras, podia dar-se a todas as impopularidades. Em algum momento, este governo precisaria ser descartado: sua popularidade, já antes dos episódios mais recentes, reduzia-se a 4%; em 2018, nenhum candidato poderá apresentar-se como seu herdeiro. Mas por que livrar-se dele agora?

Por enquanto, há apenas pistas. Elas conduzem, em primeiro lugar, a uma disputa entre o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot e Gilmar Mendes, o ministro mais influente do STF. Janoté condutor principal da Lava Jato. Gilmar tem feito críticas seguidas à operação. Tornou-se, provavelmente, o pivô de um acordo para salvar a classe política – agora que todos os partidos graúdos estão implicados. Foi decisivo na votação em que o STF libertou José Dirceu e parece participar do movimento, até agora frustrado, para livrar também Antonio Palocci.

Ao lado de Janot, parece colocar-se outro ministro-chave do STF: Edson Fachin, o relator da Lava Jato. Na libertação de Dirceu, decidida pela 2ª Turma do Supremo, Fachin foiderrotado por Gilmar. Mas deu o troco em seguida: como relator, jogou o caso de Palocci para a reunião plena do tribunal, onde votam todos os ministros e a influência de Gilmar é um pouco mais matizada. E na última quinta-feira, atendeu prontamente a um pedido do Procurador Geral, quebrou o sigilo sobre as delações da JBS e voltou a escancarar um sistema político no bolso do grande poder econômico.

Mas sem a Globo, o poder da PGR, mesmo em aliança com Fachin, é pequeno. Por que o império dos Marinho assumiu o risco de desafiar o governo que encanta as elites? Possivelmente, aposta em construir o “governo livre de políticos” – uma tendência global, em tempos de neoliberalismo extremo. E quer colher o prêmio por ser o promotor deste “passo adiante”.

V.

Cindida em dois blocos, a frente golpistatorna-se vulnerável. A divisão não pode prolongar-se por muito tempo – do contrário, a agenda de retrocessos, que interessa a todo o arco de forças no poder, desandará. O derretimento da Bovespa e a disparada do dólar, na quinta-feira, foram um primeiro sinal de alarme. As mobilizações sociais são algo ainda mais grave, do ponto de vista das elites. E se as maiorias, há um ano caladas, despertarem? Como superar as divergências entre os de cima sem correr risco de por tudo a perder?

Duas opções sintetizam a resposta. Primeiro: eleições indiretas. Só por meio delas será possível superar Temer e aprofundar a agenda de contra-reformas. Os conservadores não resistiriam, por exemplo, a um debate nacional sobre o desmonte das aposentadorias e da CLT – rejeitadas pela grande maioria dos brasileiros. A transição precisa ser a seco, sem democracia, rápida.

Mas isso não basta. Por que a sociedade, que aceitou Temer há um ano, mas rapidamente compreendeu o que ele significava, acolherá outro político conservador? Seria trocar seis por meia dúzia. Por isso, a opção preferencial das elites, em eventuais eleições indiretas, é alguém com aparência “técnica”. São possíveis candidatos, por isso, a presidente do STF, Carmem Lúcia; o ex-ministro (de Fernando Henrique e Lula) Nelson Jobim; e, acima destes, o ex-banqueiro Henrique Meirelles, atual ministro da Fazenda.

Os conservadores pensam em pintar Meirelles como uma versão brasileira do novo presidente francês Emmanuel Macron,uma resposta capitalista ao desencanto das sociedades com a política. Exatamente como Macron, Meirelles não aparece, para o público, como “velha raposa”. Nunca disputou eleições nacionais; é provável que não figure nas listasde agraciados por propina dos grandes grupos econômicos.

Ao mesmo tempo, à diferença de um Donald Trump, não é nem um novato, nem um outsider. Tem amplo trânsito num vasto espectro da política institucional. Eleito deputado federal peloPSDB (em 2002), renunciou para ser presidente do Banco Central com Lula, por oito anos (2003-11). Manteve, neste período, amplo diálogo com a oposição de direita. Sob Temer, tornou-se ainda mais poderoso, como ministro da Fazenda.

Sua fidelidade ao programa neoliberal é extrema. Nos mandatos de Lula, à frente do BC, agiu permanentemente para que o governo mantivesse política monetária ortodoxa e destinasse parte gorda do Orçamento para alimentar, via pagamento de juros, a aristocracia financeira. Sob Temer, é o ministro que pressiona de modo mais brutal pelas contra-reformas da Previdência e Trabalhista. Chega a ponto de sabotar as tentativas do Planalto para amenizar pontos das PEC-287, e torná-la menos indigiesta ao Congresso.

VI.

Dezenas de cidades brasileiras terão, neste domingo, manifetações pela saída de Temer e eleições diretas. São convocadas pela Frente Povo Sem Medo e Frente Brasil Popular. Expressam uma alternativa ao atual governo e também ao arranjo cosmético que levaria à escolha, pelo Congresso, de um presidente encarregado de manter ou aprofundar a agenda de retrocessos. A importância e o peso do movimento podem crescer nos próximos dias e semanas – em especial, se o campo conservador continuar dividido e incapaz de resolver a crise aberta em 18/5.

Por isso mesmo, talvez valha a pena refletir sobre uma debilidade essencial da resistência ao golpe de 2016 e, de maneira mais ampla, da própria ação da esquerda brasileira, nos últimos anos. Ela parece incapaz de considerar, ou mesmo de enxergar o sentimento global de desconforto com a velha política, e de busca de alternativas.

É uma enorme defasagem, porque esta procura espalha-se pelo mundo, e assume diversas formas. Em países como a Espanha, partidos-movimentos como o Podemos surgem do nada e crescem rapidamente. Nos Estados Unidos e Inglaterra, eclodem, no próprio seio dos velhos partidos, movimentos rebeldes, como os que empurraram a candidatura de Bernie Sanders e a chegada de Jeremy Corbyn à liderança trabalhista. Há dias, a França Insubmissa, de Jean-Luc Melenchon, alcançou 19,58% dos votos na eleição presidencial. Soube combinar a defesa de um programa claramente anticapitalista com a crítica aguda à democracia de fachada. Até no vizinho Chile, de tradição conservadora, surge e cresce a Frente Ampla, com características muito semalhantes.

No Brasil, ainda não – provavelmente por dois motivos. Antes do golpe, a esquerda institucional estava no governo. Suas conquistas são inegáveis; mas seus limites, também. Ao longo de treze anos, adaptou-se, como é notório, às práticas centenárias de fisiologismo da vida brasileira. Julgou desnecessário transformar o sistema político – um déficit que é parte de sua conhecida tendência à conciliação e inapetência por reformas estruturais. Após 2016, a possibilidade da candidatura Lula, e sua força eleitoral, exercem, simultaneamente, papel de alívio e de freio –de paralisia. Seria melhor ter um presidente com sensibilidade social. Mas o debate de projetos é quase invisível. Conta-se com a volta ao Planalto – e se espera que o resto possa ser resolvido depois.

A existência da Lava Jato agudiza o problema. A operação é, desde o início, partidarizada. Foi decisiva para alimentar o impeachment e levar a direita ao poder. Até há muito pouco, voltava-se exclusivamente contra os partidos de esquerda. Por isso, é vista apenas como uma conspiração das elites. Olhá-la assim impede de reconhecer seu outro viés. Foi a partir dela que, pela primeira vez, os corruptores foram punidos; e que se tornou evidente o sequestro da democracia pelo poder econômico, em conluio com uma casta política cujo caráter ficou claro na noite tenebrosa da votação do impeachment.

A visão parcial sobre a Lava Jato leva a desperdiçar oportunidades em série. As delações premiadas da Odebrecht e, mais recentemente, da JBS, desvendam a podridão a que se reduziu o Congresso Nacional. Mas a esquerda resiste a explorar os fatos, porque também parte de seus líderes está envolvida nas denúncias. Isso reduz a própria capacidade de resposta diante de crises como a atual. A bandeira das diretas já é justa e necessária – por ser o antídoto contra a transição antidemocrática. Mas é insuficiente, porque os fatos que emergiram revelam a necessidade de uma transformação muito mais profunda. É óbvio que um presidente eleito sob as regras atuais seria prisioneiro de um sistema corrupto, que sequestra a democracia e sempre favorecerá o grande poder econômico. É evidente, também, que enquanto não houver resposta efetiva à esquerda, o sentimento de revolta diante da falsidade da política será capitalizado pelos que desejam destruir a democracia: os Moro, os Bolsonaro ou… os Marinho.

Como a esquerda, que é vista (com motivos…) pela população como parte de um sistema desprezível, poderá enfrentar este sistema? A equação é de fato difícil – porém, incontornável. Uma saída possível é lembrar que a origem das práticas que a sociedade abomina não está em homens malévolos – mas num sistema que obriga a todos, independentemente de suas convicções, a se corromper. Hoje, é rigorosamente impossível governar o Brasil sem receber dinheiro dos grandes grupos empresariais e prestar favores a eles. Que desejamos: mudar o sistema ou extirpar alguns bodes expiatórios para, ao final, mantê-lo intocado?

* * *

A janela de oportunidades surgida em 18/5 permanecerá aberta por algum tempo – ainda mais se a disputa entre os dois blocos em choque se prolongar, como hoje parece mais provável. O decisivo, agora, é ir às ruas: são elas a principal escola política. Oxalá uma nova onda de mobilizações desarranje a agenda de retrocessos e bloqueie a saída elitista da crise. Oxalá ele estimule, também, a emergência, cada vez mais indispensável, de uma nova esquerda.

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