Passados 27 anos do massacre de Carajás, sem-terra apontam: terror dos ruralistas se remodelou. Seguros da impunidade, eles divulgam seus crimes nas redes sociais. Organizam carreatas. E criam núcleos regionais para articular ações truculentas
Por Brasil de Fato, compartilhado de Outras Palavras
Por Gabriela Moncau, no Brasil de Fato
As ocupações do Engenho Cumbe, na cidade de Timbaúba (PE), e da sede do Incra em Maceió (AL) inauguraram o “Abril Vermelho” do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mês de mobilização em memória ao Massacre de Eldorado do Carajás, que nesta segunda-feira (17) completa 27 anos.
A “curva do S” – onde a Polícia Militar do Pará assassinou 21 trabalhadores sem-terra em 1996 – sedia, desde o último dia 9, o Acampamento Pedagógico da Juventude Oziel Alves. Homenageando, no nome, o rapaz de 17 anos executado com um tiro na testa em Eldorado do Carajás, o acampamento reuniu centenas de jovens e encerra suas atividades com um ato nesta segunda (17).
“Reforma agrária contra a fome e a escravidão: por terra, democracia e meio ambiente” é o mote da jornada de abril deste ano, em continuidade e atualização da luta dos camponeses que tiveram a marcha até Belém (PA) brutalmente interrompida 27 anos atrás. Este que é um dos mais emblemáticos episódios da disputa fundiária no Brasil fez do 17 abril o Dia Mundial de Luta pela Terra.
Reorganização de latifundiários
E o dia chega, em 2023, em um momento em que movimentos populares e indígenas afirmam ter de enfrentar a organização de novas “milícias rurais”.
“Vivemos uma reorganização da UDR”, define Lucineia Durães, da direção nacional do MST. Ela se refere à União Democrática Ruralista, entidade do patronato rural criada para reagir organizada e violentamente aos avanços dos movimentos em defesa da reforma agrária nos anos 1980 e 1990.
“O que está acontecendo é uma reorganização dos latifundiários numa perspectiva de defender a propriedade em detrimento da lei e da vida”, afirma Lucineia.
A Bahia é o estado onde essa articulação está atuando de forma mais explícita.
Na última terça-feira (11), uma comunidade de Fundo e Fecho de Pasto em Correntina (BA) foi alvejada por pistoleiros. O ataque aconteceu enquanto um grupo de fecheiros fazia um mutirão para reconstruir uma ponte que, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi destruída com um trator em janeiro, por ordem de interessados em se apropriar da terra da comunidade tradicional. Três homens foram baleados e um deles, Gelson Neves, de 58 anos, está em estado grave.
Em um vídeo circulando nas redes sociais desde 1º de abril, o fazendeiro Luiz Uaquim (MDB) se coloca como um dos organizadores do grupo “Invasão zero” que, junto com outros latifundiários, pretende impedir ações do MST no estado. “Os produtores irão mudar sua forma de agir”, afirma Uaquim: “É um marco na história do produtor contra a invasão de terra. Vamos fazer o ‘Abril Amarelo’”, diz.
Três dias depois, em 4 de abril, fazendeiros foram em um comboio de 35 caminhonetes até o Acampamento Osmar Azevedo, do MST, que estava sofrendo uma reintegração de posse em Itabela (BA). “Os fazendeiros, que organizam uma milícia rural na região, cercaram o acampamento”, descreveu nota do movimento. Segundo os acampados, “os milicianos” tentaram entrar na área “para ameaçar e coagir as famílias, mas a polícia interceptou”. O comboio, então, fechou a BR 101 durante 15 minutos.
A ação seguiu um padrão similar ao que aconteceu em Jacobina (BA), em 3 de março. Camponeses que haviam ocupado uma fazenda saíram da área sob tensão, diante de uma carreata de fazendeiros que, ao som do hino nacional, desmancharam barracos e incendiaram colchões.
“Eles não se incomodam se são áreas improdutivas, não se incomodam com a fome, não se incomodam com nada que não seja a defesa da propriedade e, principalmente, quando esta é ilegal. Porque a ocupação é justamente para denunciar a ilegalidade: o não cumprimento constitucional da função social”, declara Durães.
De acordo com planilha divulgada pela CNN, 800 fazendeiros distribuídos em 130 cidades baianas integram o grupo “Invasão zero”. Eles se organizariam em sete células principais, centralizadas nos municípios de Itabuna, Ipaú, Itapetinga, Eunápolis, Santo Antônio de Jesus e Vale do Jiquiriçá.
A articulação de fazendeiros tem o apoio público de sindicatos rurais, entidades como a Federação da Agricultura e Pecuária da Bahia (FAEB) e de políticos como o prefeito de Andaraí, Wilson Paes Cardoso (PSB). Em nota, Cardoso, que é também pecuarista e presidente do Consórcio Chapada Forte, diz que “discorda veementemente de qualquer ato de invasão ou ocupação” por ferir “o direito de propriedade” e gerar “insegurança jurídica”.
“Quem são eles? São aqueles bolsonaristas radicais que, ao serem obrigados a sair da frente dos quartéis, sair do meio das BRs, estão procurando alvo. E eles entendem que o alvo somos nós, pelo que nós representamos: camponeses, comunidades de fundo e fecho de pasto, ribeirinhos, indígenas”, elenca Durães.
No fim de março, entidades indígenas enviaram um relatório à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alertando que, com as “investidas dos fazendeiros e milicianos”, doze mil Pataxó estão vivendo sob uma “guerra de baixa intensidade” no sul baiano. Em 17 de janeiro, os jovens Pataxó Samuel Braz e Inauí Brito foram assassinados às margens da BR-101.
Violência, carreatas, lobby e redes sociais
Eliane Oliveira, da direção estadual do MST na Bahia, conta que, dias antes deste 17 de abril, circulou nas redes sociais um card com a foto dos caixões dos mortos no Massacre de Eldorado do Carajás. Em cima, frases em tom de ameaça: para que a cena não se repita, ocupações não poderiam mais ocorrer.
“O que eles têm feito também é colocar esse terror”, descreve. “Mas o que a gente sempre soube fazer é ocupação de terra e a gente vai continuar”, assinala Oliveira.
“Não iremos aceitar reintegração de posse por fazendeiros. Colocamos o governo da Bahia a par da situação e queremos saber como que vão tratar disso”, cobra.
O uso das redes sociais, com cards, vídeos da própria carreata e da convocatória de ruralistas para ações, é destacado pelas dirigentes sem-terra como uma característica do que Eliane chama de “nova roupagem” da ação organizada de grandes proprietários de terra.
Para Lucinéia, a “agitação e propaganda para se manter em cima de um palanque” é um dos três componentes de atuação desta articulação ruralista. “Vão fazer essas ações e vão filmando. Vão se aparecendo, convocando”, descreve.
Os outros dois, segundo ela, são a “violência e o extermínio” e o lobby institucional por meio da Frente Parlamentar Agropecuária. A bancada de parlamentares bolsonaristas defende, atualmente, a criação da chamada “Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST”, que busca criminalizar o movimento.
“Nós derrotamos o Bolsonaro. Mas a sociedade brasileira precisa, ainda, derrotar o bolsonarismo”, avalia Durães. “Esse bolsonarismo é que tenta construir uma naturalização da morte, que faz uma parte da população ignorar que continuamos com centenas de milhões de pessoas passando fome”, expõe.
“Enquanto isso”, continua Lucinéia, “os latifundiários invadem a Amazônia para criar gado nas terras públicas. Enquanto invadem terras indígenas dizimando populações como estavam fazendo com os Yanomami”.
“Não é à toa”, diz ela, “que a gente vê tanto resgate de pessoas em condições análogas à escravidão. Que a gente vê uma mulher branca bater de chicote num trabalhador preto uberizado. Que a gente vê fazendeiros de arma em punho gravando para despejar sem-terra”.
A memória de Carajás como projeção de futuro
Para Eliane Oliveira, a omissão do Estado – seja na falta de justiça em relação ao Massacre de Eldorado do Carajás, seja na liberdade com que “milícias rurais” têm agido – conecta o cenário de 27 anos atrás e o de hoje.
“Os fazendeiros estão dando a cara, dizendo quem são, como estão se organizando. E o que o Estado tem feito em relação a isso?”, questiona. “Enquanto isso, eles continuam agindo e, como coloca a foto que circularam [com os caixões], podem fazer igual. Porque não houve justiça aos trabalhadores de Carajás. Não houve até o dia de hoje”, diz Eliane.
Dos 155 policiais que atuaram no massacre, apenas os dois comandantes da operação foram condenados por homicídio doloso. Os coronéis Mário Pantoja e José Maria Pereira Oliveira foram presos em 2012, 16 anos depois do acontecido. Quatro anos depois, passaram a cumprir a pena em liberdade. Pantoja morreu em Belém, em 2020.
Em diferentes ações judiciais dos anos 1990 para cá, o poder judiciário determinou que o Estado indenize e forneça tratamento médico para 50 dos sobreviventes, além de pensão para alguns familiares dos trabalhadores assassinados. Outros 20 estão pleiteando indenização e aguardam uma resposta da Procuradoria Geral do Estado do Pará.
O advogado Wlamir Brelaz defende sobreviventes do massacre desde 1998. Em entrevista ao Brasil de Fato para o programa Bem Viver, ele opina que a maior injustiça relacionada a eles, até hoje, é a falta de acesso à saúde, a despeito de uma decisão judicial que obriga o Estado a fornecê-la.
“Tem uma pessoa que até hoje tem uma bala alojada na cabeça. Escorre um líquido sobre os olhos dele. Ele perdeu a vista. Muitas pessoas morreram, inclusive, em decorrência do massacre. Sem falar da questão psicológica, que praticamente não existiu”, relata Brelaz.
Os sobreviventes do Massacre de Eldorado do Carajás, no entanto, são muito mais numerosos do que os que ingressaram numa batalha jurídica com o Estado: 1500 camponeses participavam daquela marcha. Ao menos 79 ficaram gravemente feridos.
Para Brelaz, a falta de responsabilização do Estado pelo episódio “é uma consequência e, ao mesmo tempo, causa e estímulo das novas violências”. “Pelos mártires de Eldorado”, salienta Durães, no entanto, “a nossa militância está com disposição de enfrentar esse novo tempo”.
“Os 21 sem-terra foram assassinados fazendo a luta pela terra. E a gente percebe que, 27 anos depois, a gente continua ocupando terra e enfrentando latifúndio para a reforma agrária poder acontecer”, destaca Eliane Oliveira.
Segundo ela, a expectativa de que as pautas do movimento avancem sob o novo governo Lula (PT) “continua sendo muito grande”. Porém, depois de pouco mais de 100 dias de governo, avalia que o resultado não chegou: “A gente espera que esse abril consiga fazer com que o governo coloque essa pauta na mesa”.
“Sem silêncio enquanto não houver justiça”, resume Lucinéia. “E justiça para nós”, finaliza, “é que se faça reforma agrária. Faremos nosso abril. E faremos o nosso ano inteiro de luta por justiça”.