A Páscoa do Professor Afredo

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero César fala da Páscoa de um velho professor.

Alfredo não deixou de notar o quanto o preço do bacalhau estava salgado. Como ele não era de esbanjar, comprou um pedaço pequeno mas do melhor, porque, no fim das contas, nas quatro festas do ano, Alfredo se dava ao luxo de tais mimos. Comprou também duas botelhas de vinho tinto daqueles que não podem faltar.




Páscoa, Páscoa. Lembrou-se de um episódio que ocorrera com ele e com o filho, que à época não passava de sete anos.

Era uma cena da Paixão de Cristo em uma igreja de subúrbio. O Cristo, preso pelos Romanos, ainda levava umas bordoadas dos soldados. O filho não suportou ver tal sofrimento. Ainda que os cassetetes fossem de fato apenas buchas, como Alfredo tentou em vão explicar, havia ali em cena algo muito doloroso para quem fosse sensível a ponto de entendê-la. E a criança entendera o sentido da coisa.

Alfredo o consolou com o mais afetuoso abraço de que dispunha. Na volta para casa depois da missa, foram os dois de mãos dadas, com Alfredo apertando a mão do menino como se a quisesse espremer por entre os dedos finos e calosos. O filho de Alfredo não se calaria diante de violência e de injustiça, se fosse fiel a si mesmo.

Falando em filho, será que ele apareceria mais a família para o almoço? Foi o que pensou Alfredo depois de dar um capricho no Fusquinha azul. Quem sabe. O filho morava longe. Mas os filhos dos filhos moravam em seu coração e deles sentia enorme falta.

No fundo, Alfredo sempre foi um sentimental e se orgulhava disso. Por isso Alfredo comprara em segredo os ovos de chocolate com a marca que os dois meninos queriam.

Alfredo se lembrou do pai também nos torvelinhos do pensamento. Seu pai que de vez em quando deixava escapar uma frase supostamente de Cristo, segundo a qual o que envenena o homem é aquilo que lhe sai da boca, não o que entra. Com isto, presumia Alfredo, não haveria problema em comer carne em Sexta-Feira Santa.

Como era estranho se lembrar dessas frases, pequenos trechos sentenciosos, que ninguém mais usa nem sabe de onde vem. Alfredo supunha que eles já tiveram um começo e um fim, que já fizeram parte de uma história mais comprida, mas que, com o passar do tempo restaram apenas as frases lapidares, para serem usadas mais ou menos como cartas na manga a depender da ocasião.

O filho ligou dizendo-lhe que talvez se atrasasse. Alfredo conteve o queixume latente na voz. Apenas respondeu que seria ótimo se o filho pudesse vir mais as crianças sem depender de hora. Depois pigarreou como se fumante tivesse sido e alisou os bigodes de gato, invenção do neto mais velho, que era bom de expressar imaginação fértil.

Como seria bom explicar para os meninos a origem da malhação de Judas. A lição sobre Judas receber a pecha de traidor ficaria para mais tarde, para quando os meninos estivessem crescidos.

Alfredo não pulava etapas: gostava de explicar as coisas, de por caraminholas nas cabeças de seus alunos, com essas provocações, mas tudo tinha seu tempo, tanto na escola quanto na vida lá fora.

Quando as crianças chegaram, Alfredo já tinha quase ressuscitado com a segunda garrafa de vinho. A primeira lhe deu sono. Vinho e conhaque, por suposto, em geral o deixavam comovido feito o diabo. O neto mais velho se surpreendeu com o tom um tanto rubro do bigode do avô.

Procurou alguma coisa para dizer, alguma sacada, como era de seu feitio. Não disse que o hálito do vovô exalava um aroma rascante porque ainda não sabia nem o que era aroma direito, o que dirá rascante. O mais novo perguntou onde é era o banheiro, que ele estava apertado.

Após o almoço, chocolates foram desembrulhados com sofreguidão. E depois dos chocolates, de certa decepção dos brindes, uma delícia de quintal, com árvores frutíferas. Quem é que tem um quintal grande para si nesses tempos de condomínios fechados? Quem? Quem? O vô Fredo.

E o grande tesouro azul, azul como é aquele fusquinha por debaixo da capa cinza que o protege das intempéries. As crianças queriam brincar de dirigir carro de marcha. Alfredo, ainda que a contragosto, cedeu.

O filho do Alfredo sorriu e perguntou se ainda tinha mais vinho. Tinha.

Não quis convidar as crianças para fazer um passeio de automóvel pelo bairro. Se o carrinho andava? Ora, que isso, é claro que sim! Ronrona feito gato de madame. E o motor fica atrás, quer ver?

O que será que Alfredo quis e teve medo de ouvir um não das crianças? Eu não sei ao certo, nem ele nem ninguém.

Nem sempre se entende a cabeça dele, com tantas idas e vindas.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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