Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero” do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, Cícero César fala de uma professora, inesquecível, e uma abordagem no supermercado, igualmente inesquecível.
Por Cícero César
Bagunceiros
Supermercado Beija-Flor. De repente, na alameda de biscoitos, fomos abordados por um homem de seus trinta anos. Além do carrinho cheio, o que era em si algo surpreendente naqueles tempos difíceis, havia um menino, de seus cincos anos, sentado na cadeirinha. Bem, “sentado” era modo de dizer, uma vez que ele se debatia no carrinho, a exigir que o pai comprasse os biscoitos de super-heróis que ele amava. O pai, com sinais de evidente irritação, fingia não dar ouvidos, às súplicas do pimpolho, que chacoalhava o carrinho inteiro com uma força desproporcional para a sua idade.
O homem pôs a mão no carrinho e iniciou a conversa:
“Professora, você aqui? Fazendo compras, né?”
A professora olhou fixamente para o sujeito. Eu já tinha visto aquele filme anteriormente. Corrigiu a postura, deu um pigarrinho quase imperceptível. Se possível fosse entrar naquele instante na cabeça dela, veríamos as diversas engrenagens entrando em movimento.
Em uma velocidade estonteante, ela revirava mentalmente os arquivos do magistério, com o objetivo de associar o rosto daquele homem aos inúmeros alunos a quem deu aulas, sem descanso, ao longo de sua carreira que já ia ficando comprida – carreira que ela gostaria tanto que estivesse “cumprida”, de todo.
Alguém ainda irá escrever sobre como funciona o cérebro do professor, em um estudo, exaustivo mas não definitivo, que combinaria elementos da semiologia, da medicina forense e da robótica. Mas se estava no momento muito longe disso. Tínhamos que nos contentar com o velho e bom método de tentativa e acerto.
“Michael?”, perguntou a professora, à maneira exploratória.
“Não, fessora! Você não está lembrada de mim? Como pode esquecer de um aluno que lhe dava tanto trabalho? Era eu, o Volpone, o Pau no Cristo, a Edicleia, o Periquito, o Cartola, o Desce-daí-garoto. Você nos chamava assim, por apelidos, não se lembra, não? 1604, professora!”
O rosto da professora se iluminou. Agora, se lembrava de tudo, de tudo. Talvez, por isso, tenha me sugerido ir para a fila da carne, me chamando delicadamente pelo apelido:
– Vai, Tico-Tico, compra dois quilos de alcatra pra bife. Aproveita que a fila tá pequena.
Cheio de coragem, recusei a sugestão. Queria ouvir o fim da história, ou melhor da disputa, da revanche digna de MMA, entre a professora durona e um dos membros do Bonde da 604. Sairia faísca.
O menino que estava no carrinho, presumivelmente devido ao suspense da situação, sossegou. Tinha intuído, na sua cabecinha de criança, que poderia haver algo mais saboroso que biscoito de flocos de milho.
A professora já sabia o nome do terrível aluno, do bagunceiro, do Barrabás, do “lost boy”, de um daqueles que tinha contrariado o destino de ir de detenção em detenção até o juízo final, quando tudo volta a ser cinzas e pó, como se a vida, em um quadro negro, fosse apagada com apagador e, depois, mais do que riscada do mapa, fosse eliminada com pano molhado? Ninguém sabia, só ela.
Começou um bate-bola daqueles, para todos os efeitos, aleatório. A professora deu a saída:
“Raiz quadrada de 64?”
“Oito”.
“Capital do Chile?”
“Santiago.”
“Nome do Estado do Rio de Janeiro antes da Fusão?”
“Guanabara.”
“Valor do número π?”
“3,14, para efeitos didáticos. Mas o número é infinito.”
“ Zip, zip, zá…”
“Minha boca vou fechar!”
“Diferença entre substantivo concreto e substantivo abstrato?”
“Passo.”
“Faça um quadra usando rimas esdrúxulas:”
“Professora, você é o máximo! / Salário, vem de sal, é mínimo! / Mais vale na mão um pássaro / Do que dois voando, lógico!”
“Fórmula da água?”
“H20”.
“Contribuição de Aristóteles?”
“Era um sistematizador. É dele um estudo sobre a arte retórica e a arte dramática.”
“Morcego é ave ou mamífero?”
“A… Mamífero!”
“ Exemplo de polissílabo?”
“Paralelepípedo.”
“Nome completo do herói nacional Tiradentes?”
“Joaquim José da Silva Xavier.”
A esta altura o supermercado tinha parado. Clientes, expositores, caixas, fiscais, repositores de estoque, o homem do microfone, além da criança e de mim, este pobre narrador – todos estavam estupefatos com a destreza e a valentia do aluno. Foi quando ele, virando a mesa do jogo, proferiu a terrível pergunta, cheia dos efeitos:
“E o meu nome, professora, você se lembra?”
SUSPENSE TOTAL. Os olhos do menino ficaram do tamanho de uma personagem de desenho japonês. Eu suei frio.
“Jonathan Samuel da Costa Pimenta, o Samuca. Como poderia ter esquecido de alguém da 604?”
Foi um tal da gente se abraçar que só vendo. Perfilados, cantamos o Hino Nacional a plenos pulmões. O homem do microfone fez, ao vivo, uma transmissão do ocorrido melhor do que a do RJTV.
Jonathan, em lágrimas, agradeceu por tudo que a professora tinha feito por eles, seus amigos. Se não fosse por ela, ele não teria tomado rumo na vida. Era agora sargento do Exército Brasileiro, concursado, com uma carreira pela frente. Aquele menininho era seu filho e se chamava Leoney da Costa Pimenta.
“Aí dele se o papai aqui tiver que ir à escola por causa de reclamações de professor”, disse o Sargento Pimenta durão.
A professora lhe lançou um olhar penetrante que disse muito, muito mais do que um relatório de desempenho do ano letivo inteiro.
“Tenha paciência com o garoto”, disse ela com voz suave.
“Vamos, Tico-Tico”.
Despedimo-nos, cada qual com seu carrinho, pensando numa cerveja ou numa caixa de sabão em pó. Ainda tínhamos a compras do bimestre para fazer.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.