A propósito de 2019

Compartilhe:

Por Ulisses Capozzoli, jornalista, Facebook 


O Sol, ainda incandescente, se põe por trás de um eucalipto imenso, do lado oposto da rua, e projeta galhos e folhas na parede branca do meu local de trabalho. Um pouco mais, ficará rubro, como se estivesse se apagando. A temperatura baixou e isso devolve um ânimo de trabalho.                             Sou uma criatura do frio. O calor me derruba como um uppercut: um golpe de baixo para cima, quase sempre na ponta do queixo. No meu caso, nocaute imediato. Estou lendo dois autores do século 19 para, acreditem, reciclar, atualizar e tentar me proteger do que vem por aí com um pensamento mais generoso que os que dominam a cena.                 Na travessia que temos pela frente só poderemos contar com nós mesmo. Com cada um de nós que não abriu mão de uma elaboração indispensável à vida. Isso não significa que estamos isolados e esses dois autores são prova disso. Benjamin Tucker (1854-1939) e Lysander Spooner (1808-1887) são integrantes do que ficou conhecido como anarquismo individualista, que abre espaço para o indivíduo em meio à coletividade. Não estou falando de alienação, mesquinharia e individualismo egoísta.        A ideia por trás disso é que cada um, dos mais de 7 bilhões de humanos que respiram sobre a Terra, é diferente entre si. E a impressão digital da carteira de identidade que carregamos no bolso é só uma das evidências disso. Se somos diferentes, enxergamos o mundo de maneira distinta, numa pluralidade inevitável e fascinante.                  Devemos trocar experiências sobre a vida como forma de tecer os fios de uma ordem social mais promissora, caso contrário estaremos submetidos ao que dizem os outros.            Os que assumem, por exemplo, um poder político e, nessa condição, acreditam que devem ditar a maneira como se deve viver. Em seu adorável “Vícios não são crime”, um livrinho de 60 páginas, Spooner se pergunta: ─ Quem tem direito de falar assim [como se deve viver]? ─ e ele mesmo responde: ─ Ninguém, sem sombra de dúvida. Por isso os homens que falam assim são impostores sem vergonha e tiranos, que gostariam de deter o progresso do conhecimento e usurpar o controle absoluto das mentes e dos corpos de seus semelhantes, pelo que devemos resistir-lhes imediatamente e com todas as forças. Ou homens ignorantes das suas próprias fraquezas, e de suas verdadeiras relações com outros homens, e assim merecem apenas piedade ou desprezo. Spooner, advogado, empreendedor social e político radical (no sentido original da expressão, não na mutilação para ser lida de forma depreciativa) escreveu isso em 1875.          A impostura e o mandonismo não são exatamente uma novidade na história humana. No cenário que temos pela frente, creio que não se trata apenas de “impostores sem vergonha e tiranos”, mas também de “homens ignorantes das suas próprias fraquezas, ou de suas relações com outros homens”. O que significa dizer que o mar não está para peixe.              Benjamin Tucker, criador e editor do jornal “Liberty”, considerada a mais refinada publicação sobre anarquismo na língua inglesa, e o segundo dos meus autores escreveu “ Instead of a book – by a man too busy to write one. A fragmentary exposition of philosophical anarchism”. Numa tradução livre, algo como “Em lugar de um livro – Por um homem ocupado demais para escrever um deles. Exposição fragmentária do anarquismo filosófico”.      O que é anarquismo filosófico? Quem desconhece essa definição certamente ficará encantado em saber de que se trata e sou o primeiro a me deixar levar por essa interpretação: uma escola de pensamento anarquista que nega legitimidade moral ao governo, mas, ao contrário do anarquismo revolucionário, que defende ações violentas para eliminá-lo, defende uma ação pacífica para superá-lo. Alguém pode dizer que se trata de puro otimismo.                                Eu diria que é uma forma de ampliação de uma consciência política que abre espaço num momento de restrição.                  Assim, anarquistas filosóficos não se veem na obrigação ou dever de obedecer a um governo o que, em outras palavras, significa que não pensam que um governo tenha direito legítimo de comandar o que quer que seja.                                        Um impasse em relação ao que está aí que, até agora, não foi além de bravatas. Decifrar e resolver o enigma é outra história. Quanto ao anarquismo individualista, ou anarcoindividualismo, é uma visão anarquista com ênfase no indivíduo sob o argumento de que cada um é seu próprio mestre e interage com os demais em uma associação voluntária. Neste caso, o indivíduo é um fim em si mesmo e não um meio para uma causa, seja ela a que for. O livro de Tucker é um catatau de mais de 500 páginas, na verdade uma edição fac-similar, da que saiu em 1897. Uma coleção de ensaios com abrangência que não perdeu significado e, em muitos casos, ampliou-se ao longo do tempo.                                Para quem estiver interessado em anarquismo para além do simplorismo que tem dominado essa discussão, aqui vai uma sugestão: o ótimo “Grandes escritos anarquistas”, de Georg Woodcock, com um desfile de talentos. Entre eles Tolstoi numa crítica dura à alienação produzida pelo relógio, algo que escapa completamente ao senso comum. Ou William Godwin, pai de Mary Shelley e um dos primeiros utilitaristas. Utilitarismo é uma postura defendida, entre outros, pelo filósofo inglês John Stuart Mill: as boas ações são as que tendem a promover felicidade. As más, vão na direção contrária, e isso dá conta do momento que vivemos. Enquanto escrevo, o principal telejornal noturno refere-se ao novo governo com a genuflexão de quem não quer perder as verbas publicitárias. Nem se indispor com multidão dos que abdicaram de pensar. O nível de ignorância, prepotência e o puro despreparo, indícios do provincianismo que nos exclui de um mundo civilizado não é pouco. Inclui de trajes e modos a uma alienação surpreendente. O que significa dizer, por exemplo, que vai se abrir mão do “politicamente correto? ” Vai se adotar, em lugar disso, o politicamente incorreto .                            Em 1912 se dizia, na orgulhosa Inglaterra, que o Titanic era “inafundável”. Uma das formas da água, a sólida, flutuando na líquida, mostrou que não era o caso. De qualquer maneira, o melhor e mais luminoso 2019 que posso desejar.




Imagem: Obra de Vladimir Kush, pintor surrealista russo –

O Bem Blogado precisa de você para melhor informar você

Há sete anos, diariamente, levamos até você as mais importantes notícias e análises sobre os principais acontecimentos.

Recentemente, reestruturamos nosso layout a fim de facilitar a leitura e o entendimento dos textos apresentados.
Para dar continuidade e manter o site no ar, com qualidade e independência, dependemos do suporte financeiro de você, leitor, uma vez que os anúncios automáticos não cobrem nossos custos.
Para colaborar faça um PIX no valor que julgar justo.

Chave do Pix: bemblogado@gmail.com

Tags

Compartilhe:

Categorias