Por Luc Matheron, publicado em Jornal GGN –
Em 1936, o golpe de Estado liderado pelo general Franco se organizou para tomar a capital, Madri, e depor o governo eleito da Segunda República, liderado pela Frente Popular, dando início à guerra civil espanhola. Taticamente, havia quatro brigadas (as colunas) convergindo rumo à capital e um dos generais disse: “Uma quinta coluna já está trabalhando para nós dentro da cidade”. Como um cavalo de Tróia, elementos infiltrados no campo republicano semeavam desinformação e desconfiança para enfraquecer a resistência ao golpe.
Desde então associada a traição, a expressão veio renascer no Brasil no bojo de uma campanha eleitoral atípica em que o “vale-tudo” se torna a estratégia mais usual.
Num contexto de total desorganização institucional, política e social em que o ódio prevalece sobre a razão, o trabalho sorrateiro de infiltrados nos grupos organizados nas redes sociais se tornou cada vez mais perceptível enquanto estratégia de luta política. Na ausência de argumentos para defender um ponto de vista ideológico, uma estratégia política ou um programa de governo, não basta produzir memes ou desabonar o oponente com fake news ou clara difamação, a novidade dessa campanha eleitoral é o quinta-colunismo, a infiltração em grupos ‘adversos’ para gerar dúvidas sobre aquele ou aquilo pelo qual o grupo milita.
Essa questão foi bastante documentada e não é do meu interesse apontar um ou outro autor dessas manipulações. O Luis Nassif já escreveu esclarecidamente sobre o assunto, bem como o Breno Altman que denunciou tais manobras já em 2017 e mais recentemente num artigo do Viomundo, e também o Miguel do Rosário do Cafezinho e até o Eugênio Aragão numa matéria publicada no DCM. O que estou tentando analisar aqui é a prática em si.
Em primeiro lugar, está o fato de que as redes sociais se tornaram um campo de batalha eleitoral bastante expressivo e influente. O TAB do UOL que dedicou uma edição ao tema apontou essa nova força: “os influencers digitais entram em campo na eleição de 2018 e levantam dúvidas sobre a eficácia dos limites impostos pela regulamentação eleitoral às campanhas online”. Mas por que tornar a política uma guerra de facções e a campanha eleitoral um embate em que os protagonistas se tornam beligerantes e os golpes baixos regra?
A meu ver, a resposta está entranhada no âmago da sociedade brasileira: o autoritarismo. E vários fatos históricos e contemporâneos apontam para essa direção.
Em primeiro lugar, vale lembrar que a sociedade brasileira é oriunda do Brasil Colônia que a ferro e fogo impôs sua lei, sua religião, sua etnia, sua estrutura social. Basta notar a representatividade do Congresso Nacional frente a uma população majoritariamente afrodescendente e a total ausência das populações indígenas do cenário político nacional.
Nem precisa se estender sobre a escravidão, o coronelismo, os diversos governos autoritários, senão ditatoriais, que se sucederam ao longo de pouco mais de um século de republicanismo, encerrando seu ciclo com os 21 anos de ditadura militar. Agora, após apenas 30 anos de redemocratização, um novo golpe veio desestabilizar a democracia incipiente e, através de um governo falsamente democrático, tenta impor autoritariamente uma agenda neocolonialista.
Cabe nesse quesito falar da violência no campo e contra indígenas, o assassinato de inúmeras lideranças comunitárias pelo Brasil afora e o assassinato de Marielle Franco, a agressão contra o Dr. Rosinha em Curitiba, contra a deputada Benedita da Silva, a facada em candidato, as pedradas e os tiros sobre o ônibus do adversário, …, mas o que acho de mais emblemático dessa violência, que é uma exacerbação do autoritarismo, é a imagem do fazendeiro açoitando com chicote um militante da caravana do Lula em Bagé no RS.
Mas qual relação do autoritarismo com o quinta-colunismo?
Buscar atingir seus objetivos pela traição, pela fraude, pelo embuste, pela velhacaria, ou seja, de forma desleal, é claramente uma forma de autoritarismo. Numa sociedade assumidamente democrática, tal “estratégia” é totalmente descabida, é antidemocrática, pois a democracia requer transparência. Portanto, essa prática do embuste é a clara expressão de uma sociedade autoritária, pelo menos em parte, e, ao se auto definir como democrática, politicamente imatura. 25% de intenção de voto num candidato de extrema-direita, o que representa cerca de 25 milhões de eleitores, é bastante ilustrativo disso.
Alimentado por um anticomunismo totalmente descabido, existe um abscesso inconcebível incutido na sociedade brasileira ao longo de décadas de subserviência ao “grande irmão” do norte. Isso se traduz hoje pelo antipetismo violento que rachou a sociedade graças a intervenção diuturna dos meios de comunicação de massa e o uso intensivo de campanhas de desinformação via redes sociais. Basta observar que o MBL, um dos maiores protagonistas dessas campanhas de difamação, teve centenas de perfis falsos excluídos pelo Facebook.
Esse antipetismo, cristalização do anticomunismo latente da “Elite do Atraso”, como Jessé Souza batizou esses saudosistas do Brasil Colônia, dividiu também a esquerda brasileira. Todos empunhando a bandeira “Lula Livre”, surgiu esse espírito de quinta-colunismo nos grupos organizados nas redes sociais pregando, seja o voto “útil” a favor de algum candidato, seja a abstenção, mas sempre desabonando e até difamando os membros mais representativos do PT, incluindo o Haddad, candidato designado pelo próprio Lula. Escrevi sobre essa disputa pela “herança” política do Lula, que representa 40% do eleitorado, numa matéria em francês publicada recentemente no portal Agoravox.
Não resta dúvida que essa conduta desleal é profundamente marcada por um ranço de autoritarismo. Que se busque dominar seu adversário pela força ou pela perfídia, ambas são formas autoritárias que ignoram os princípios fundamentais da democracia que são a busca de soluções plurais e consensuais, envolvendo o conjunto dos atores políticos e sociais.
Uma ilustração recente desse autoritarismo velado ficou por conta de uma declaração do Ciro Gomes nesta manhã (19) na rádio CBN: “O Brasil não suporta mais um presidente fraco, um presidente sem autoridade”. Ou seja, a força e a atitude autoritária, quiçá arrogante, que o caracterizam prevalecem sobre a inteligência, a coesão e a humildade que o candidato petista tem demonstrado desde o início de sua campanha.
Será mesmo que, nesse vale-tudo eleitoral, tudo vale? Ao que me parece é bem o contrário. Ao estar perdendo a sua democracia, o Brasil está se dando conta do valor que tem e é ela que o povo brasileiro quer resgatar nas próximas eleições.