Por Miguel Martins e Rodrigo Martins, Carta Capital –
Em 68,9% das cidades, os benefícios pagos superam os repasses do FPM. Em um terço, são superiores às receitas das prefeituras
A insatisfação contra a reforma da Previdência, que levou dezenas de milhares de brasileiros às ruas em 15 de março, evidencia o distanciamento entre a classe política, aferrada a catastróficas projeções de déficit no setor, com os trabalhadores, cada vez mais cientes de que chegarão à velhice sem a devida proteção. Outra dimensão ignorada pelos gestores públicos é o impacto das mudanças nas regras das aposentadorias para as economias locais.
Embora os atos em resistência à reforma tenham se concentrado nas capitais, o impacto das mudanças propostas pelo governo promete ser ainda maior para os pequenos municípios. Segundo dados levantados pelo site Compara Brasil a pedido de CartaCapital, em quase um terço das cidades brasileiras, o pagamento de aposentadorias, pensões e outros amparos assistenciais, como o Benefício de Prestação Continuada, superam a receita corrente das prefeituras.
Município de 12,4 mil habitantes, Santa Mariana, no Paraná, surge no topo da lista das cidades onde os repasses previdenciários têm maior peso que a arrecadação local. Em 2015, os pagamentos da Previdência superaram em mais de oito vezes a receita corrente do município paranaense. Na lista das 10 cidades onde a dependência à previdência se mostra mais radical, apenas uma delas possui mais de 50 mil habitantes.
Em relação aos repasses do Fundo de Participação dos Municípios, a relevância dos pagamentos previdenciários é ainda maior: em 68,9% das cidades, eles superam as transferências do governo federal. Embora seja parte importante das economias de pequenos municípios, a parcela do fundo também costuma ser inferior àquela dos repasses previdenciários. No conjunto das cidades brasileiras com até 20 mil habitantes, o total dos repasses de aposentadorias, pensões e outros benefícios foi de 53,2 bilhões de reais em 2015, ante 32,4 bilhões do FPM.
Os recente dados coletados pelo Compara Brasil não destoam muito de um estudo feito anteriormente pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais (Anfip), com base no cenário de 2010. Àquela época, dos 5.566 municípios pesquisados, 3.875, ou 69,6%, possuíam valor de benefícios previdenciários pagos superiores ao FPM.
A partir de uma base menor, de 4.569 munícipios que apresentaram suas receitas ao Tesouro Nacional, constatou-se que os repasses previdenciários eram superiores à arrecadação municipal em impressionantes 82,4% dos casos.
“A Previdência Social é responsável pelo sustento de milhões de famílias brasileiras – sobretudo nas pequenas cidades e nas áreas rurais. Ou seja, mesmo não sendo considerado um programa de ‘combate à pobreza’, os recursos da Previdência têm cumprido um papel importante na composição da renda familiar”, escreveu Álvaro Sólon França, coordenador do estudo da Anfip e ex-secretário executivo do Ministério da Previdência.
Evidentemente, esses recursos influenciam no consumo e contribuem para movimentar o comércio. “Ousamos afirmar que se não fossem os benefícios pagos mensalmente a aposentados e a pensionistas, principalmente no meio rural dos pequenos municípios, já teria se instalado situação de calamidade na maioria das cidades brasileiras”.
O debate sobre o peso da previdência na economia dos municípios reforça a distância entre as planilhas e os interesses da população. Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional dos Municípios, diz apoiar “incondicionalmente” a reforma de Temer pelo impacto positivo que ela gerará para o caixa das prefeituras. “Como cidadão, pode-se até ter outra opinião, mas para os gestores a reforma é muito importante”.
Segundo Ziulkoski, ex-prefeito da cidade gaúcha de Mariana Pimentel, o beneficiário gasta em consumo, mas as prefeituras não recolhem Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. “Esse consumo não tem qualquer impacto sobre o Erário do município”, diz. “Quase um terço do caixa das cidades é destinado ao pagamento da Previdência. Se reduzirmos para 25%, haverá mais recursos para investimentos para estimular a retomada da atividade econômica”.
Para diferentes especialistas consultados por CartaCapital, não faz sentido falar em retomada do crescimento com retração do poder de compra da população. “O maior patrimônio do País são os 205 milhões de brasileiros. É um mercado interno poderoso, principalmente em um momento de crise como o de agora, no qual há uma retração da economia mundial”, observa Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social de Dilma. “Achatar o salário mínimo, cortar aposentadorias e benefícios do BPC significa destruir o mercado doméstico”.
Um estudo liderado pelo economista Marcelo Neri, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, e divulgado em 2013, por ocasião do aniversário de 10 anos do Bolsa Família, revelou os efeitos macroeconômicos das transferências da Previdência e Assistência Social. O artigo revela que os repasses do Regime Geral da Previdência Social representavam 6,1% do PIB em 2009, ao passo que o BPC, também exposto à navalha de Temer, tinha um peso de 0,6%.
Não é tudo. Para cada real investido na Previdência, 65 centavos retornavam à economia pelo consumo das famílias e pouco mais de 50 centavos era incorporado ao PIB. No caso do BPC, que contempla sobretudo os idosos mais pobres, o efeito multiplicador era maior. Para cada real transferido, agregava-se 1,19 real ao PIB nacional.
Uma nota técnica do Ipea, publicada em maio de 2016, destaca o efeito redistributivo da Previdência no campo. “Mais de dois terços do valor total dos benefícios rurais foram destinados a municípios de até 50 mil habitantes, o significou uma injeção de 5,6 bilhões de reais na economia dessas pequenas cidades em janeiro de 2016”, alertam os autores, Alexandre Arbex Valadares e Marcelo Galiza.
Nada disso parece sensibilizar os gestores das três esferas de poder, mais preocupados com os caixas que administram. As previsões do governo federal são, porém, alvo de fortes contestações. O livro A Previdência Social em 2060: as inconsistências do modelo de projeção atuarial do governo brasileiro, recém-lançado pela Anfip, em parceria com o Dieese e a Plataforma Política Social, expõe uma série de imprecisões nos cálculos feitos nos últimos 15 anos, além de revelar as falsas premissas utilizadas pela gestão Temer ao estimar os resultados do setor. Para entender como funciona a engrenagem que subestima as receitas e superestima os déficits da Previdência, clique aqui.