A República de Vichy e os militares brasileiros

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Por Enio Squeff, jornalista, escritor e artista plástico
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Para aplacar meus péssimos sentimentos nestes tempos de pandemia e entreguismo, tenho feito um exercício íntimo, talvez explicável: imagino-me como um francês na Segunda Guerra, humilhado pela invasão inimiga. E inconformado pela adesão de parte de seu exército às tropas de ocupação.
Vivemos, de fato, uma espécie de república de Vichy: é isso que digo para mim mesmo.
Vichy foi a mais abjeta e vergonhosa página da história francesa. Entre se submeterem às vicissitudes de prisioneiros de guerra, mas com honra, alguns generais franceses (liderados por “heróis” da primeira guerra, como Pétain) decidiram colaborar com o inimigo. E, então, acantonaram seu governo em Vichy, no sul da França, a 360 quilômetros de Paris.
Dali nasceria o massacre dos judeus franceses, um controle estrito dos sindicatos e a uma política decididamente covarde, com civis e militares a se submeterem docilmente aos soldados do Terceiro Reich. De repente a França estava ocupada por suas próprias Forças Armadas.
Concordo: não há comparação possível apesar do meu escapismo imaginativo. Mas não é uma mentira que o Brasil age sob as estritas ordens americanas, que os militares brasileiros se renderam a um neoliberalismo suicida, que as nossas riquezas estão sendo pungadas sem qualquer protesto, que o governo planeja vender “tudo”.
Não fomos à guerra, fomos ao pior: à rendição sumária, sem qualquer resistência. A pandemia seria apenas um desastre a mais, não fosse o Ministério da Saúde ser coordenado por um general incompetente, que não entende nada de medicina e que parece acompanhar de perto e muito animado, as expectativas da morte de dezenas ou centenas de milhares de brasileiros. Genocídio, sem dúvida.
Sou de uma geração que viveu duas guerras simbólicas. Na primeira, que começou em 64, os militares destruíram o princípio da soberania do voto popular. Fiéis a seus amos americanos, instauraram uma ditadura censória, violenta, mataram a seu bel prazer, expulsaram as melhores cabeças das universidades e da vida intelectual do país mas, apesar de tudo, não abdicaram do Brasil.
Por mais que se exprobe a figura de um Roberto Campos, uma espécie de ministro plenipotenciário da última fase da ditadura militar, coube a ele uma política decididamente nacionalista. Nunca cogitou de vender a Petrobrás, reforçou a Vale do Rio Doce, e criou várias estatais, como a Eletrobrás, a Embraer, assinou um tratado nuclear com a Alemanha, e reforçou quase todas as empreiteiras brasileiras que até bem pouco concorriam externamente com as maiores do mundo.
Foram fascistas até onde se pode entender: não aumentaram a renda dos brasileiros, aprofundaram o abismo social. E implantaram o terror. Mas não abdicaram da independência do Brasil.
Hoje a situação nessa nossa segunda guerra, é diferente: colados a um ex-militar expulso do exército eleito às custas de um Judiciário corrupto – à imagem e semelhança dos militares da republica de Vichy, os membros das Forças Armadas que estão no governo, aviltam o país em todos os sentidos, embora os mais prejudicados sejam eles mesmos.
Julgam que aquilo que desprezam, ou seja, a nação brasileira, lhes perdoará os mortos pelo covid-19, que conta com sua participação especial. E têm como certo que seu desprezo pelo povo e pelo país lhes será de alguma valia, quando tiverem de se deparar com o juízo inexorável da história.
Repetem Vichy sem os antecedentes que muitos militares franceses ostentavam, de terem lutado heroicamente na primeira guerra. Julgam-se fora da história do Brasil.
Não estão errados. A história que eles pensam construir, os vomitará, até que a nossa, ou melhor, a república de Vichy deles, seja derrubada. E torço para que seja por eles mesmos para que se julguem. E se autoexpurguem.
Depois da guerra, De Gaulle, um dos poucos militares que continuaram resistindo, prendeu um a um os traidores.
Que seja este o destino dos que imitaram seus colegas franceses na construção da versão vergonhosa desta aventura grosseira, à brasileira, da república de Vichy.

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