População global cresceu duas mil vezes em 12 mil anos. Nesse período, passamos de quatro milhões de pessoas para oito bilhões
Por José Eustáquio Diniz Alves, compartilhado de Projeto Colabora
Arte Claudio Duarte
Existe uma forte relação entre economia e demografia. Todo país rico – com alto Índice de Desenvolvimento Humano – passou pela transição demográfica, o que significa a passagem de altas para baixas taxas de mortalidade e natalidade. Durante 200 mil anos, desde o surgimento do Homo sapiens, as taxas de mortalidade sempre foram altas (e a esperança de vida ao nascer era baixa, em torno de 25 anos). Para se contrapor à mortalidade precoce, as taxas de fecundidade tinham de ser altas para garantir a sobrevivência das populações. Assim, a grande maioria das mulheres começava a ter filhos ainda na adolescência e passava todo o período reprodutivo aumentando a prole.
Mas, durante o século XX, a expectativa de vida da humanidade mais que dobrou, passando de cerca de 30 anos em 1900, para mais de 60 anos no ano 2000. A vitória sobre a mortalidade precoce foi uma vitória e tanto, pois algo parecido jamais havia acontecido no passado. Crianças morriam como mariposas e adultos “abandonavam” a vida em seus momentos de maior produtividade e criatividade. Muitos sonhos foram desfeitos e muita potencialidade foi desperdiçada. Mas, com a união de todas as forças progressistas e o esforço coletivo para melhorar o bem-estar, as taxas de mortalidade foram reduzidas e continuaram a cair nas duas primeiras décadas do século XXI.
A redução da mortalidade abriu espaço para a queda da taxa de natalidade. Uma sociedade que tenha uma taxa de fecundidade acima de 4 filhos por mulher (pelo menos 4 filhos sobreviventes) teria uma progressão familiar como na figura abaixo. A formação de um casal, com idade ao casamento abaixo de 20 anos, formaria uma família com 4 filhos em torno de 30 anos. Estes 4 filhos sobreviventes formariam outras 4 famílias e tendo 4 filhos em média 60 anos depois da união do casal hipotético. Quatro famílias com 4 filhos cada uma, possibilitariam a formação de 16 famílias, que com 4 filhos sobreviventes em média, daria 64 filhos em 90 anos depois da primeira união hipotética da ilustração. Seguindo nesta lógica, os 64 filhos formariam 64 famílias que teriam 256 filhos, 120 anos depois da primeira união. E estes teriam 1.032 filhos em 150 anos depois da primeira união. Ou seja, a partir de duas pessoas com sobrevivência acima de 30 anos, uma sociedade chegaria a 1.032 descendentes em um século e meio.
Esta lógica esquematizada acima – com ritmo maior ou menor nos diversos momentos históricos – é a base do crescimento exponencial que possibilitou que a população humana passasse de 4 milhões de pessoas há 12 mil anos, para atingir 8 bilhões de habitantes em 15 de novembro de 2022 (a população global cresceu 2 mil vezes em 12 mil anos). No extremo, isto pode ser a base do círculo vicioso da pobreza, pois o alto crescimento populacional acarreta um aumento da razão de dependência e pode inviabilizar o aumento das taxas de investimento e o aumento da proporção da população ocupada em relação à população total.
Todavia, o elevado ritmo de crescimento populacional começou a mudar nos últimos 2 séculos. O demógrafo australiano John Caldwell – no livro Theory of fertility decline, 1982 – afirmou, de forma categórica, que só existem dois tipos de regimes de fecundidade: um, em que prevalecem altas taxas de nascimento e os pais não têm ganhos econômicos no controle da fecundidade; e outro, em que prevalecem baixas taxas de nascimento e não há ganhos econômicos em tal controle. Em ambas as situações o comportamento dos indivíduos é economicamente racional.
No regime de alta fecundidade (como na figura acima), o fluxo intergeracional de riquezas (moeda, bens, serviços e proteção contra riscos) vai dos filhos para os pais, ou das novas para as velhas gerações. Isto é, os filhos são fonte da riqueza dos país, os netos são fonte de riqueza dos avós, etc. Nesta situação, o crescimento das famílias e, consequentemente, da população, é uma estratégia para garantir a “fortuna” das gerações mais velhas.
Mas há dois problemas nesta perspectiva. A riqueza que vai das novas para as velhas gerações é uma riqueza muito determinada em termos de proteção de riscos e não de aumento da renda e do patrimônio. Este tipo de família tem uma baixa taxa de poupança, pois o investimento é feito na quantidade e não na qualidade das crianças. Neste contexto, as mulheres são “forçadas” a passar toda a vida em atividades reprodutivas e ficam praticamente fora das atividades produtivas (com baixíssima inserção no mercado de trabalho). Assim, tende a prevalecer a família patriarcal, com alta desigualdade de gênero, pois o homem/pai/marido se torna o único “ganha pão” da família, reforçando o poder masculino nas famílias.
O outro efeito da alta fecundidade é fazer a pirâmide etária ter uma base muito larga, isto é, com alta dependência de jovens e baixa proporção de pessoas em idade ativa, como mostrado no gráfico abaixo referente à Coreia do Sul, em 1950. Ou seja, um regime de alta fecundidade dificulta o investimento nas crianças (futuras gerações), impede o aumento da taxa de poupança e de investimento, como mostrou Rostow (1961), inviabilizando o aumento da produção agregada e o aumento da renda per capita.
O regime de alta fecundidade e baixa esperança de vida prevaleceu na maior parte dos 200 mil anos da história do Homo sapiens. O fluxo intergeracional da riqueza ia das novas para as velhas gerações. Porém, algo aconteceu que possibilitou a reversão do fluxo. E, a despeito de todas as resistências, a fecundidade caiu na maior parte dos países do mundo, inclusive no Brasil. Independentemente das ideologias nacionalistas e religiosas, as mulheres e os casais passaram a ter menos filhos, o que representou uma mudança de comportamento de massas sem precedente. Agora, em 2022, as maiores economias possuem taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição, como mostrei no artigo, Fecundidade abaixo do nível de reposição em 20 das 22 maiores economias do mundo, aqui no # Colabora (Alves, 17/10/2022).
Os estudos do demógrafo Caldwell mostram que a queda das taxas de fecundidade está ligada à reversão do fluxo intergeracional de riqueza, que deixa de fluir dos filhos para os país, ou das novas para as velhas gerações e passa a fluir dos pais para os filhos. As famílias passam a investir na qualidade e não na quantidade de filhos. A questão chave para se entender a transição da fecundidade envolve a compreensão da direção e magnitude do fluxo intergeracional de riqueza e as novas configurações familiares em termos de maior equidade de geração e gênero.
Na verdade, caindo as taxas de mortalidade, já não fazia mais sentido manter altas taxas de natalidade. Contudo, houve resistência nas sociedades que haviam se preparado durante séculos para manter altas taxas de fecundidade (número de filhos por mulher) e criado uma cultura pronatalista. Romper com as tradições e os fatalismos é sempre uma ação social que encontra muitas barreiras. A ordem patriarcal foi consolidada valorizando as mulheres enquanto donas de casa, esposas e mães dedicadas, o que restringia uma mudança nas relações de gênero.
Para Caldwell, a reversão do fluxo intergeracional não é mecanicamente determinada pelas condições econômicas, mas sim, por um fenômeno social que decorre da mudança da família extensa para a família nuclear. O processo de ocidentalização significa a erosão das estruturas tradicionais da família e a promoção de um processo de nuclearização que tem como consequência o declínio da fecundidade. As forças que sustentam uma fecundidade elevada podem ser mantidas pelo processo de modernização se não forem acompanhadas por mudanças sociais específicas, como aconteceu no Brasil antes de 1960.
De fato, enquanto o Brasil era uma sociedade agrária e rural, o custo dos filhos era baixo e os seus benefícios eram altos. Os filhos criados nas fazendas geralmente não iam para a escola, não possuíam brinquedos e bens industrializados, não demandavam muitos recursos monetários dos pais e ajudavam na produção de subsistência, nas tarefas de cuidado da casa, dos parentes e das gerações idosas. A alta mortalidade infantil era compensada pela alta fecundidade e o custo da mortalidade era baixo. Homens que tinham filhos fora do casamento não se responsabilizavam pelos “filhos ilegítimos” (não existia exames de DNA e a legislação não garantia os direitos dos filhos fora do casamento). Quando se separavam das mulheres raramente tinham de pagar pensão alimentícia. Nesta situação, ter muitos filhos era uma atitude racional, pois os pais (as gerações mais velhas) gastavam pouco com os filhos e recebiam deles muitos benefícios monetários ou de outros tipos. Desta forma, existia uma alta fecundidade no Brasil porque o fluxo intergeracional de riquezas fluia das novas para as velhas gerações.
Com o processo de modernização e o crescimento da sociedade urbana e industrial as condições mudaram muito. Os filhos passaram a ir para a escola (por lei e por exigência do mercado de trabalho) e o consumo de alimentos e de produtos industrializados exigiu a obtenção de recursos monetários. Se o casal se torna “grávido”, fazer pré-natal, pagar pelos diversos custos do parto, cuidar da criança nos seus primeiros meses, etc. fazem da mortalidade infantil um custo elevado, em termos financeiros e psicológicos. Garantir uma boa escola e condições de estudo adequadas para os filhos é sempre uma fonte de pressão financeira nas famílias. Paralelamente ao aumento do custo das crianças, existe a redução dos seus benefícios, pois passam a existir leis contra o trabalho infantil, os filhos fora do casamento são identificados pelo teste de DNA e as separações não eliminam os compromissos dos pais com os seus descendentes. Por outro lado, o sistema previdenciário faz com que os pais, em geral, não dependam financeiramente dos filhos na velhice. Por conta de todas estas transformações, na modernidade urbano-industrial, o custo dos filhos é alto e os seus benefícios são baixos.
Invertendo a relação custo/benefício dos filhos inverte-se também o fluxo intergeracional de riquezas e quando isto acontece a fecundidade cai, de acordo com a análise de Caldwell. Mas não só as mudanças econômicas estruturais possibilitaram a transição da fecundidade. Como mostrou Faria (1989) as políticas públicas promovidas pelo Governo Federal, depois de 1964, foram estratégicas para o aumento da demanda por regulação fecundidade e a consequente redução da natalidade no Brasil: 1) política de crédito ao consumidor; 2) política de telecomunicações; 3) política de previdência social; 4) política de atenção à saúde. Usando um arcabouço próprio dos enfoques culturais, o autor considera que as políticas públicas influenciaram na queda da fecundidade agindo como vetores institucionais (difusão) portadores de novos conteúdos de consciência (inovação). A transição da mortalidade induz a transição da fecundidade e as mudanças estruturais e institucionais do país sancionam a transição demográfica. Geração e gênero são fundamentais neste processo (Alves, 1994).
Quando a fecundidade cai e as famílias passam a investir mais na qualidade do que na quantidade dos filhos a dinâmica das famílias muda como na figura abaixo, onde cada arranjo adota o filho único. É claro que o exemplo abaixo é hipotético, mas é um modelo assim que serviu de base para a política de filho único da China.
Numa sociedade com alta fecundidade as famílias se multiplicam e com baixa fecundidade é o contrário. Partindo de um total de 8 famílias, a figura abaixo mostra o efeito da adoção de uma taxa de fecundidade igual a 1 filho sobrevivente por mulher. De uma situação de 8 famílias, o filho único gera 4 famílias, depois 2 famílias e finalmente 1 família (situação de decrescimento populacional).
Ou seja, ao invés de um casal gerar 1.032 descendentes em 150 anos, o modelo de filho único gera uma redução de 8 famílias para 1 família em menos de um século. O filho único da figura acima não tem irmãos e primos, mas tem 16 trisavós, 8 bisavós, 4 avós, além dos dois pais. Se cada adulto deixa uma herança/patrimônio para a geração mais nova, o filho da 4ª geração poderá contar com um patrimônio considerável. Isto quer dizer que as famílias pequenas avançam no capital humano e quando mais educação tiverem maior será a renda familiar. Em termos agregados, a fecundidade abaixo do nível de reposição e o decrescimento demográfico podem garantir a prosperidade humana e ambiental, como mostrou Skirbekk no livro “Decline and prosper. Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children” (2022).
Há dois elementos fundamentais nos modelos paradigmáticos acima: em primeiro lugar, as famílias tendem a ter maior igualdade de gênero e serem mais ricas, pois o casal de filho único (ou baixa fecundidade) gasta pouco tempo com atividades reprodutivas e, em geral, possuem recursos para investir na própria educação, possuem maior inserção no mercado de trabalho, são mais produtivos e investem mais no filho. São famílias que entram no círculo virtuoso da riqueza.
Em segundo lugar, uma menor fecundidade possibilita uma mudança na estrutura etária, como visto abaixo na pirâmide populacional da Coreia do Sul, em 2020. Nota-se que a base da pirâmide reduziu muito em relação ao ano de 1950 e o topo da pirâmide não cresceu tanto. Isto quer dizer que a maior parte da população está nas idades produtivas e isto gera um bônus demográfico que é fundamental para a decolagem do desenvolvimento econômico e social. Se forem adotadas as medidas institucionais corretas, pode existir uma sinergia entre a queda da fecundidade e o aumento da taxa de poupança e da taxa de investimento, como aconteceu na Coreia do Sul nos últimos 70 anos. A pirâmide de 2022, mostrada no gráfico abaixo, tem alta proporção de pessoas em idade ativa.
O mesmo aconteceu com a China, que tinha uma renda per capita 15 vezes menor do que a renda per capita brasileira, mas já tinha taxas de poupança mais elevadas e teve uma decolagem econômica impressionante nos últimos 40 anos depois da adoção da política de filho único, que foi uma política autoritária e contra os direitos sexuais e reprodutivos, mas que foi efetiva no sentido de aproveitar o bônus demográfico chinês e reduzir para praticamente zero o número de chineses na extrema pobreza.
A China e a Coreia do Sul possuíam uma renda per capita muito menor do que a renda per capita brasileira em meados do século passado. Os autores, Cutler et al. (1990), analisando o processo de transição demográfica, não deixam dúvidas sobre as vantagens da mudança da estrutura etária: “Nossa conclusão é que a queda da fecundidade representa uma oportunidade e não um problema” (p.3). Infelizmente, a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo em 1994, não levou estas questões em consideração e nem fez referência ao bônus demográfico. Mas a realidade é que os países do leste da Ásia que passaram pela mudança do fluxo intergeracional de riqueza conseguiram avançar no bem-estar econômico, assim como nos indicadores sociais.
O gráfico abaixo, com dados do FMI, mostra que a China tem média de investimento de 41% do PIB no período 1980 a 2026, a Coreia do Sul com média de 35,3%, ambos acima da média mundial de 25,2% do PIB global no período. Já o Brasil possui taxas de investimento abaixo da média mundial, com apenas 18,6% do PIB entre 1980 e 2026. Isto quer dizer que estes dois países do leste asiático investem mais do que o Brasil, possuem maiores taxas de crescimento do PIB e já possuem renda per capita superior à brasileira, sendo que a Coreia do Sul já é considerada de alta renda e a China está a caminho de superar o estágio de renda média. Sem as mudanças demográficas seria impossível o salto do desenvolvimento que ocorreu no extremo leste asiático.
A China e a Coreia do Sul são exemplos de países que apresentaram rápida transição da fecundidade e souberam aproveitar o bônus demográfico, via aumento das taxas de poupança e investimento, resultando no aumento da renda per capita. O Brasil também apresentou redução da fecundidade, mas em ritmo mais lento e não criou as condições para aumentar as taxas de poupança, tendo como resultado a permanência na armadilha da renda média.
A interação entre a demografia e a economia é fundamental para o desenvolvimento econômico. A mudança no fluxo intergeracional de riqueza possibilita e a redução da fecundidade e o aumento da taxa de poupança nas famílias e na sociedade. Mas o bônus demográfico não é de colheita automática. Políticas públicas de emprego, educação, saúde e previdência são essenciais para colher os frutos de uma estrutura etária favorável e para possibilitar o bem-estar de toda a sociedade.
Referências:
ALVES, J. E. D. Transição da fecundidade e relações de gênero no Brasil. 1994. 152f. Tese
(Doutorado) – Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 1994
CUTLER, D. M.; POTERBA, J. M.; SHEINER, L. M.; SUMMERS, L. H.; AKERLOF, G. A. An aging society: opportunity or challenge? Brookings Papers on Economic Activity, v. 21, n. 1, 1990.
FARIA, V.E. Políticas de governo e regulação da fecundidade: consequências não antecipadas e efeitos perversos. In: CIÊNCIAS Sociais hoje. São Paulo, ANPOCS, 1989.
JOHN CALDWELL (Theory of fertility decline. London: Academic, 1982
ROSTOW, Walt Whitman. As etapas do desenvolvimento econômico. RJ: Zahar, 1961
Vegard Skirbekk. Decline and prosper. Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children, Springer, 2022
ALVES, JED. Fecundidade abaixo do nível de reposição em 20 das 22 maiores economias do mundo, # Colabora, 17/10/2022