A Roma da infância de Chico Buarque

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Aos 80 anos, escritor e compositor lança livro de memórias “Bambino a Roma”, em que revisita os dois anos em que morou na capital italiana, ainda garoto, entre 1953 e 1955.

Por André Bernardo, compartilhado de Sossego da Flora




Francisco Buarque de Hollanda pulou de alegria ao descobrir que estava prestes a se mudar para um castelo, em Roma. Foi essa a conclusão a que o garoto chegou, do alto de seus oito anos, ao ler uma das cartas do pai, Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982).

Convidado para dar aula de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma, o historiador e sociólogo estava na capital italiana havia alguns meses à procura de um lugar para morar. Quando encontrou um palazzo, contou a boa nova à família. Não demorou muito para Chico e os irmãos descobrirem que palazzo em italiano quer dizer “edifício antigo”. O castelo sonhado era, para desapontamento das crianças, “um prédio amarelo de quatro andares”, o número 12 da Via San Marino. Não bastasse, o apartamento era “sombrio” e “gelado”. “Tinham se esquecido de ligar a calefação”, queixa-se o escritor em sua mais recente obra.

Bambino a Roma chegou às livrarias esta semana e é o oitavo livro de Chico Buarque. Os sete anteriores foram: Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite Derramado (2009), O Irmão Alemão (2014), Essa Gente (2019) e nos de Chumbo e Outros Contos (2021). No mais recente, mistura ficção e realidade ao revisitar histórias da infância, vividas entre 1953 e 1955, na capital da Itália.

Estão lá, entre outros episódios, as visitas do diplomata Vinicius de Moraes (1913-1980) à casa do amigo Sérgio, o dia em que a família Buarque de Hollanda conheceu o papa Pio 12 (“Fiquei com medo daquele velho”, confidenciou ao jornalista Humberto Werneck em Tantas Palavras, de 2017) e a “incrível” bicicleta que ganhou de presente e fez questão de trazer para o Brasil. É ela, diga-se de passagem, que enfeita a capa do novo livro, o mais autobiográfico da carreira. Uma curiosidade: Vinicius começou a ensinar os primeiros acordes no violão para Miúcha (1937-2018) que, por sua vez, repassava o que aprendia para o irmão.

Em Roma, Chico Buarque foi matriculado na Notre Dame International School, uma escola americana de formação católica. Logo, o único aluno latino da classe tornou-se trilíngue: falava português em casa, aprendia inglês no colégio e arriscava italiano na rua. As primeiras palavras que aprendeu no idioma local, a propósito, eram todas relacionadas a futebol: pallone (bola), rovesciata (rebatida), fuorigioco (impedimento). Alguns palavrões também, como và a fancullo (vá para o inferno).

Para fazer sucesso com a garotada do bairro, pregou a primeira de muitas peças: disse que sua bola de couro tinha sido um presente de Alcides Ghiggia (1926-2015), o craque uruguaio que, três anos antes, havia marcado o gol da vitória contra o Brasil na final da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã. Naquele ano, Ghiggia tinha acabado de assinar contrato com o Roma, clube italiano que defendeu até 1961.

Bilhete profético

Se na rua o futuro torcedor do Fluminense arriscava chutes e dribles, no colégio aprendia a manejar um taco de beisebol – esporte que, em discurso de 31 de março de 2000, chamou de “bizarro”.

Se na rua o futuro torcedor do Fluminense arriscava chutes e dribles, no colégio aprendia a manejar um taco de beisebol – esporte que, em discurso de 31 de março de 2000, chamou de “bizarro”.

“Meus colegas eram Sam, Jim, Joe, Jack, Dave, Bob e outros de que não me lembro agora”, recorda em outro trecho do livro. “Tentei fazer que me chamassem de Frank, mas o apelido não pegou. Para a maioria deles, eu era Francesco”.

Dos professores da Notre Dame, Chico não disfarça a saudade de Miss Tuttle, a quem Bambino a Roma é dedicado. Em 1954, num bilhete de despedida, a professora de literatura escreveu: “Quando o tempo passar e você estiver crescido, vou procurar contos e romances escritos por F. B. de Hollanda”. Mal podia imaginar que, 70 anos depois, aquele aluno teria conquistado, entre outros prêmios literários, o Jabuti, por três vezes, e o Camões, pelo conjunto da obra.

Algumas das histórias contadas em Bambino a Roma estão em Para Seguir Minha Jornada – Chico Buarque 80 anos, da jornalista Regina Zappa. O livro-almanaque de 528 páginas começou a ganhar vida em 1999, quando a então editora do Jornal do Brasil recebeu um convite da extinta Relume Dumará para escrever um volume da coleção Perfis do Rio. Apesar de avesso a entrevistas, o biografado topou. Durante seis meses, Regina frequentou os bastidores de seus shows, assistiu às peladas de seu time, o Politheama, e caminhou ao seu lado na subida do Dois Irmãos, no Rio.

“Sempre ficou à vontade nas entrevistas”, garante. A primeira versão do livro, Para Todos, foi lançada em 2000 e a segunda, rebatizada de Para Seguir Minha Jornada, onze anos depois. À nova edição, Regina acrescentou 22 capítulos, de 2011 a 2024. Em um deles, Sílvia Buarque, uma das três filhas de Chico, relata o encontro do pai com a sobrinha alemã, Kerstin, filha de seu meio-irmão, Sérgio Günther (1930-1981), e com a filha dela, Josepha. “A viagem a Berlim foi o momento mais bonito da minha vida com meu pai”, declara a atriz.

Exílio voluntário

Chico Buarque voltou a Roma em janeiro de 1969. Dessa vez com a então esposa, a atriz Marieta Severo, grávida da primeira filha do casal. Era a época da ditadura militar no Brasil. 

“Arrisco dizer que a Itália é a segunda pátria do Chico”, afirma o jornalista Márcio Pinheiro, autor de O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar (L&PM), “mais até do que a França, onde há anos ele tem casa e se refugia em longas temporadas”.

Durante seu autoexílio, Chico estreitou laços com o jogador Mané Garrincha (1933-1983), dividiu feijoada com o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) e, ao lado de Toquinho, abriu shows para a cantora e dançarina francesa Josephine Baker (1906-1975). “De início, Chico acreditou que poderia se manter fazendo shows em Florença, Mônaco e San Remo, mas, como não era um músico tão conhecido na Europa, logo percebeu que os convites seriam raros”, observa Pinheiro.

A amizade com “o anjo das pernas tortas”, apelido dado a Garrincha por Nelson Rodrigues (1912-1980), é retratada no capítulo dedicado ao Futebol do livro Trocando em Miúdos – Seis Vezes Chico (Record), do jornalista Tom Cardoso. À época, o craque do Botafogo e da seleção brasileira morava em Roma com a mulher, a cantora Elza Soares (1930-2022). A bordo de um Fiat azul batizado de Clotilde, Chico levava Garrincha para passear. Nessas ocasiões, o cantor falava de futebol e o ex-jogador, de música. Até onde se sabe, os dois nunca jogaram juntos. Isso não impediu Chico de pregar mais uma de suas peças: conta que, numa noite inspirada, ele e Garrincha marcaram vinte gols, dez cada um, só no primeiro tempo de um amistoso qualquer. “Quase um gol a cada dois minutos”, Cardoso faz as contas. Além dos carros, Chico também gosta de dar apelido aos violões: Catupiry, Nélson, Joaquim… Mas foi com Julieta que ele compôs um de seus primeiros sucessos, A Banda, de 1966. 

Em sua segunda passagem por Roma, Chico também compôs músicas e gravou disco. A maior parte das canções dos álbuns Chico Buarque na Itália, de 1969, e Per Un Pugno di Samba, de 1970, foi traduzida para o italiano pelo letrista Sérgio Bardotti (1939-2007). Em 1977, Chico traduziu para o português o musical I Musicanti, composto por Bardotti em parceria com o pianista argentino Luis Enríquez Bacalov (1933-2017). No Brasil, o musical infantil ganhou o título de Os Saltimbancos. “Curiosamente, o álbum se tornou um clássico no Brasil, mas passou em brancas nuvens na Itália”, relata o pesquisador André Simões, de Chico Buarque em 80 Canções (Editora 34). 

A segunda temporada italiana de Chico Buarque durou um ano e dois meses. Em março de 1970, ele e Marieta desembarcaram no Rio, com Silvia no colo e Helena, a segunda filha do casal, na barriga. A primogênita nasceu em 28 de março de 1969 e teve como padrinho o poeta Vinicius de Moraes. Juntos, os compadres compuseram cinco músicas: Gente Humilde (1969), DesalentoSamba de Orly Valsinha (1970) e Olha Maria, de 1971. Samba de Orly, a propósito, era para se chamar Samba de Fiumicino, mas, por razões puramente musicais, Chico Buarque trocou o nome do aeroporto de Roma pelo de Paris.

“Retornei a Roma inúmeras vezes e, ontem como hoje, amo falar e ouvir a língua italiana quase como se fosse a minha”, derrete-se o cantor e compositor em um dos capítulos de Bambino a Roma.

DW.com.br

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