A Sagrada Família, obra-prima catalã de Antoni Gaudí, celebrou recentemente a conclusão da torre da Virgem Maria, quando uma estrela gigante de 12 pontas de metal e vidro texturizado foi içada até seu topo.
Por Josep-Maria Garcia Fuentes do The Conversation*, compartilhado de BBC
Após 140 anos de construção, essa é a primeira das seis torres principais da igreja a ser concluída — e sua decoração descomunal agora ilumina a paisagem noturna de Barcelona.
Nem todo mundo está satisfeito, no entanto. A instalação foi recebida com críticas em relação às obras contínuas e ao impacto que o turismo gera na área local.
A Sagrada Família tem gerado controvérsias desde muito antes de Gaudí ser contratado para construí-la, em 1883.
Como minha pesquisa mostra, a Sagrada Família se tornou um mito e uma ferramenta cooptada por diferentes movimentos políticos e campanhas ideológicas.
Raízes conservadoras
A Sagrada Família foi originalmente concebida em 1881 pelo filantropo e livreiro Josep Maria Bocabella como um templo expiatório — um lugar de expiação — dedicado ao culto da Sagrada Família (o menino Jesus, sua mãe, a Virgem Maria, e seu pai, São José).
Na compra de ingressos, os visitantes, ainda hoje, efetivamente pagam seus pecados.
O declínio do império espanhol no século 19 deu origem a poderosos debates ideológicos e políticos em toda a Espanha.
O final da década de 1870 testemunhou o surgimento de movimentos de esquerda e anarquistas, contra os quais Bocabella pretendia se posicionar com uma nova basílica.
Para isso, em 1882, ele comprou um terreno nos arredores do bairro Eixample da cidade. Criou uma fundação para administrar as obras e nomeou o arquiteto Francisco de Paula Villar y Lozano.
Eles previam uma construção no estilo neogótico.
Lozano, no entanto, só chegou até as fundações e a cripta do templo — divergências públicas sobre seu sistema de construção e finanças levaram a fundação a pedir a Gaudí para assumir as obras.
Gaudí adaptou seus projetos aos ideais de Bocabella e dos movimentos políticos e ideológicos de direita que ganhavam espaço na Catalunha na época.
Ele usou como referência a cordilheira local de Montserrat — que fica no interior a partir de Barcelona — em seus novos desenhos radicais para a massa escultural da construção e sua elevação.
Ele também propôs que a igreja fosse construída como uma sucessão de fachadas únicas, cada uma repleta de uma mescla de esculturas barrocas cuidadosamente selecionadas.
Desta forma, mesmo em construção, a basílica instruiria os visitantes com os valores católicos associados à Sagrada Família.
Nasce um mito
Até aquele momento, a Lliga Catalanista, o principal partido nacionalista de direita da Catalunha, via Gaudí como um estranho. Seus líderes haviam rotulado sua arquitetura de repugnante.
Mas à medida que ele se tornou cada vez mais popular e seu trabalho, mais poderoso, a Sagrada Família surgiu como um meio útil para divulgar sua mensagem.
A Lliga começou a apresentar Gaudí como “o gênio da Catalunha”, alegando que sua basílica era um templo clássico que pertencia a todos os catalães.
E exortou o povo a contribuir financeiramente para sua construção, ressaltando o fato de que, ao fazer isso, estariam comprando perdão.
Quando Gaudí faleceu, em 1926, Barcelona estava no centro dos movimentos anarquistas e de esquerda na Europa.
Em 1936, com a eclosão da guerra civil espanhola, o canteiro de obras foi vandalizado por grupos anarquistas.
O estúdio de Gaudí foi incendiado e todos os desenhos e maquetes que estavam ali foram destruídos.
O pós-guerra testemunhou a retomada da construção e o mito de Gaudí tomar forma.
Na ausência do planejamento e dos materiais de arquivo perdidos no incêndio, arquitetos e historiadores começaram a interpretar as ideias de Gaudí de acordo com seus próprios objetivos.
Em 1964, um grupo internacional de arquitetos e intelectuais pediu a suspensão das obras da basílica. A maioria deles lamentava a qualidade dos acréscimos pós-Gaudí.
Destino turístico
O turismo tem colocado uma pressão cada vez maior no local, com associações de moradores lamentando também a falta de licenças para obras e de pagamento de taxas de licença de construção.
Inserir a basílica no contexto urbano adjacente continua sendo um desafio primordial.
Para a construção da fachada principal do templo e da sua escadaria, está prevista a demolição de uma série de conjuntos habitacionais, conforme definido nos termos únicos de arrendamento sob os quais foram construídos na segunda metade do século 20.
Na época, a conclusão do templo parecia um futuro muito distante.
Agora, com uma data de término definida — pouco antes da eclosão da pandemia — para daqui a quatro anos, em 2026, é um problema bastante real.
Até a covid-19 paralisar o setor, o número cada vez maior de turistas garantia um fluxo de renda vasto e constante para manter a construção em andamento. Só em 2019, 4,5 milhões de pessoas visitaram o templo.
A pandemia tem sido, obviamente, um grande obstáculo. Os visitantes caíram para apenas 810 mil em 2020, e as obras na igreja foram suspensas até 2024.
No entanto, a julgar pela história do templo, a Sagrada Família vai perseverar.
Tornou-se um mito equiparado apenas ao de seu criador, Gaudí. E como qualquer mito, é imune aos fatos históricos.
Josep-Maria Garcia Fuentes é professor de arquitetura na Universidade de Newcastle, no Reino Unido.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em inglês).