Nas últimas semanas, sem ter planejado nada, a cantora Karina Buhr liderou um movimento de mulheres (e homens solidários, também) pelo direito de pagar peitinho no Facebook, a rede social que se comporta como censora todas as vezes que o assunto inclui os “polêmicos” mamilos. A capa do novo disco de Karina,Selvática, mostra uma foto dela sem blusa, como uma guerreira paleolítica. Os pequeninos seios da cantora foram o suficiente para a rede social de Mark Zuckerberg bloquear Karina e todo mundo que a seguiu no protesto – inclusive sua mãe, Ingrid, que resolveu aderir e posou com o peito para fora na rede social.
Na segunda-feira 21 o fotógrafo recifense Beto Figueiroa acabou colocou no ar o ensaio Selváticas, em que 14 mulheres (inclusive Karina) põem seus seios ao vento pela naturalização do ato de mostrar os peitos, num momento em que até amamentar em público sofre perseguição do fundamentalismo. A jornalista que assina o texto, Aline Feitosa (mulher de Beto), foi banida do Facebook “para sempre” após publicar uma foto de topless em apoio a Karina. Ela está acionando a rede social na Justiça.
Segundo Karina, a mulher querer tirar a blusa e não poder, na vida real ou virtual, é uma espécie de burca. “É a nossa burquinha. Eu chamo de mini-burca”, diz a artista, cuja independência não está apenas na desvinculação das grandes gravadoras. Ao contrário de muitos famosos, a pernambucana (nascida em Salvador) não se furta a dar pitacos diversos, criticar, elogiar ou declarar voto. Não tem essa de esconder como pensa politicamente. Eleitora de Dilma Rousseff, ela deixa claro nesta entrevista que não concorda com o impeachment da presidenta –mas tampouco se sente “com o fogo” necessário para ir às ruas defendê-la diante das decisões tomadas pelo governo, sobretudo na questão indígena.
Socialista Morena – Quando você fez a foto do disco sem blusa, achou que o Facebook fosse censurar?
Karina Buhr – Só pensei no Facebook depois. Mas pensei: claro, tem grandes chances de ele vetar, porque vetam um monte de desenho meu. Achava que isso podia acontecer, sim.
Você já tinha sido bloqueada antes?
Já. Com desenhos, com o Sexo Ágil (revista eletrônica que edita anualmente). Tem uns caderninhos que eu fiz para a Livraria Cultura que tentei divulgar no Facebook e não deixaram. O Sexo Ágil todo ano vetam, tanto quando a capa é desenho quanto quando é foto.
Qual foi a idéia da capa do CD?
A idéia é ser este personagem, Selvática, que conta a história do disco. Desde o começo eu imaginei ela assim, uma guerreira, uma mistura de um monte de coisas. Aquela faca que eu uso, na verdade é uma lança ianomâmi, estou com um punhal cigano… São umas referências misturadas, mas simbolizando uma guerreira. Este nome eu tirei do Gênesis, da Bíblia, que fala de uns animais selváticos, que são os bichos escrotos: ratos, serpentes, escorpiões. E depois quando entra a mulher em cena, comecei a viajar que ela também seria selvática, por tudo que rolou na história até hoje e como elas são representadas também nestes textos todos: sempre que tem mulher é relacionado à traição, à fraqueza.
O que você acha de mamilos serem tão “polêmicos”? Estamos vivendo tempos conservadores demais?
A gente sempre viveu, mas pelo menos na arte isso era uma coisa tranqüila, era um lugar onde dava para respirar. O que não dava na vida real, dava para respirar em foto, escultura, desenho… E agora está cada vez pior e não é só no Facebook. A gente ficou pensando: e loja de disco, será que vão querer botar tarja? Teve a história do disco de Juçara Marçal no Itunes, né?
Qual?
Um desenho do Kiko Dinucci de uma mulher com o peito de fora que foi censurado. Então tem essa história sobrevoando, é horrível. Quando comecei a fazer o Sexo Ágil, o primeiro era falando basicamente disso, da vontade de poder tirar a blusa na rua, onde estiver, porque é a nossa burquinha. Eu chamo de mini-burca e a burca de blusão. Me lembro de quando era pequena, do momento em que tive de botar o sutiã na praia, do momento em que passei a andar de camisa. De como isso foi ruim pra mim, na época, que é também a idade em que as meninas no mundo árabe têm que botar véu, começar a se cobrir… É como se de repente chegasse numa idade em que a gente ficasse muito perigosa e os homens não vão poder resistir e só vai acontecer coisa ruim. Eu ligo isso, essa coisa de não poder ficar com o peito de fora em qualquer lugar, ao momento em que começou essa confusão toda, de você usar uma roupa curta e ser culpada de qualquer coisa ruim que lhe aconteça. Começou ali. Eu lembro muito dessa sensação de estar na praia, com 11 anos…
Quando o peitinho da gente começa a apontar, né?
E o meu demorou, então fiquei lá muito relax. Minha avó, mãe do meu pai, ficava reclamando: ‘parece um menino, parece um menino’. Eu ficava sem nada, só com 11 anos que eu fui botar na praia a parte de cima do biquíni. E aí quando começa isso, começa a agonia na vida da gente, que nem uma blusa transparente pode usar. Tá no frio acende o farol, pronto: bota a bolsa na frente. É insuportável.
Parece uma coisa importada da direita americana.
Isso vai tomando uma força muito louca. Essa coisa do Facebook mesmo, parece uma besteira, dizem: ‘ah, é só sair’. Não, é uma ferramenta muito poderosa de comunicação. Muita gente usa para trabalho, é uma comunicação muito forte. E ela começa a decidir quais vão ser os assuntos, quais vão ser as imagens que a gente vai poder usar. Então cada vez menos aparece peito e cada vez mais fica como natural censurar peito. O maior problema é esse: que quem faz as coisas comece a se censurar antes que venha a censura de fora.
E desde a arte clássica, peitos de fora nunca foram um grande drama…
Pois é. Teve uma charge que recebi de um bando de homem olhando revistas de mulher nua numa banca e do lado deles uma mulher com o símbolo feminista, com o peito de fora, e a polícia levando. É bem isso. Se for uma nudez de mulher dentro daquele universo que é para mostrar para os homens, isso pode. Mas se é em outro contexto, se é uma mulher tirando porque quer tirar, aí não pode, fica proibido. Aí é que é louco.
Vira atentado ao pudor.
É. E engraçado, essa coisa de ficar muito relax de ficar com o peito de fora de novo, depois da infância, eu tive no teatro Oficina. Maravilhoso ver isso lá dentro, como a gente é completamente livre de fazer isso lá dentro. Mesmo. E é uma sensação muito boa, passar duas, três, seis horas de peça sem roupa. E isso ser uma coisa completamente natural. Tem muita gente que vai lá e se choca e são pessoas que não se chocam de estar numa boate de strip. Acham natural este outro tipo de nudez.
Você sempre foi uma pessoa muito engajada. Como está vendo a situação política que a gente está vivendo?
Eu fico me sentindo sabotada o tempo todo, dá vontade de nem ler mais nada do que está rolando, esperar pra ver o que vai acontecer e depois respirar de novo. Porque é uma sensação de impotência muito grande, é uma força muito grande da mídia inteira querendo defender as suas causas. É um cenário fake que se criou e que a gente começa a viver como se fosse realidade e de repente essa realidade é a maior de todas. Essa coisa do impeachment, poucos meses depois de a mulher ser eleita pela maioria das pessoas, começar este boicote e virar o que virou! É uma coisa muito surreal, apesar de ser repetição de histórias que a gente vê no mundo desde sempre. Só que estar presente dentro de uma, quando está acontecendo, é diferente de analisar de longe o que ocorre em outro país. É uma coisa muito esquizofrênica, na verdade, porque a maioria das pessoas que votou em Dilma, eu incluída, acreditou nas coisas que ela sempre defendeu, e de repente ela não só não representa mais muito disso como também não assume que representa o outro lado. A questão indígena, por exemplo, é muito absurdo como é tratada. É um partido que está junto dos latifundiários e os latifundiários odeiam este partido.
Tenho a impressão que ela, no atual momento, não está agradando a ninguém.
Ela não agrada nem quem votou nela nem quem não votou. Fica uma situação desesperadora. O Mato Grosso do Sul está em guerra e não se faz nada. Quando teve aquele movimento dos Guarani-Kaiowá ela nem recebeu eles! Uma coisa muito estranha.
Você iria para a rua defender o governo se houver impeachment?
Eu não quero de jeito nenhum que role impeachment, não pode acontecer, é surreal. Mas, ao mesmo tempo, me falta essa força de ir para a rua defender o governo porque o governo também não está fazendo as coisas que eu acredito. Esse é um problema muito grande. Vejo isso como um problema geral, vejo muita gente nessa situação: não quer que o impeachment aconteça de jeito nenhum, mas falta esse fogo pra ir para a rua porque está vendo um monte de merda que está rolando no governo.
Quem votou na Dilma apostou em uma guinada à esquerda e o que está acontecendo parece uma tentativa de agradar quem não votou nela…
…E não está agradando. Não está agradando e nem vai agradar. Então por mais que eu não queira que aconteça não tenho esse fogo para botar mais uma camiseta.
Acho que muita gente iria para a rua defender a democracia, defender o voto que deu, não exatamente para defender o governo.
Pois é, eu também teria que ir nesse carro de som aí (risos). Ia ter que ir não no “defender o governo”, mas no “defender a democracia”. Isso aí total. Mas essa que é a grande armadilha: você quer defender, mas não isso que está aí rolando. Ao mesmo tempo sou contra o impeachment com unhas e dentes.
Seu disco pode ser baixado ou é vendido também?
Dá para baixar grátis e vendo também. Trabalhamos de todas as formas. Vendo disco, livro, caderno, desenho, copo… Mas eu não sou uma empresária, não sei negociar. Faço e tento colocar junto do meu trabalho, não é uma coisa de ‘tino para negócios’.
Acho que a palavra deste século é independência, né? Artistas estão nessa, jornalistas estão nessa…
Eu gasto uma grana nestes catarses, nestes kickantes da galera… Compro livros, discos de todo mundo. Acho que é o caminho. É muito direto, você não está sendo enganado. Sabe que aquilo ali é uma coisa que você acredita. Agora o grande problema que eu acho é que tem um descompasso entre a música que é feita hoje e o modo como a mídia trata. O jornalismo de música continua agindo como era no passado. Tem essa necessidade do novo, do CD, tem uma necessidade de coisas que não são mais demandas reais de quem faz música. Tem uma mania, por exemplo, de chamar de ‘alternativo’. Chamam de alternativo porque ganha menos dinheiro, isso não diz nada sobre você. Ou ‘nova cena’, né? Eu fico rindo porque ao chegar em São Paulo zerou, né? Porque em Recife a vida inteira eu já ria muito disso lá – ria pra não chorar. E aqui zerou, virei de novo “nova cena”, “nova geração”. Estou com 41 anos e sou ‘nova geração’ para sempre… É muito engraçado. Você faz durante muitos e muitos anos e fica sendo ‘nova geração’, ‘alternativo’ para sempre.
O legal do independente é que a gente coloca nosso grãozinho anticapitalista no mundo também.
Sim, total! E eu falo sempre que não faço música querendo agradar, pensando em agradar aquele público. Mas depois que eu faço fico torcendo para que um número maior possível de gente goste daquilo. Lógico, querer que seu trampo faça sucesso no sentido bom do sucesso. De ficar tranqüila, viver do seu trampo, mas quando se está criando, é liberdade completa. Inclusive assumindo os riscos de saber que aquela coisa não vai agradar um monte de gente e, em vez de ganhar público, vai perder. Então tem sempre esse friozinho na espinha no meio: e aí, será que vai rolar? Puf. Joga. Vamos ver qual é. Este é um risco que escolhi. Se eu não fizer assim, era melhor ter feito outra coisa na vida.
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