A sociedade da delação

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Por José Roberto Batochio, publicado em Brasil 247 – 

 A primeira delação premiada que a História do Brasil registra foi a levada a efeito pelo coronel, fazendeiro e minerador Joaquim Silvério dos Reis contra os inconfidentes de Minas Gerais, em 1789. De sua língua viperina partiu a denúncia de que um grupo de idealistas estava a sonhar com a ruptura dos grilhões políticos da colônia com Portugal e até com proclamação da República. Um deles, o mais famoso, Tiradentes, não só pagou essa ousadia com a própria vida, como foi esquartejado e teve seus despojos publicamente expostos. Também preso, o cúmplice-traidor valeu-se da delação para se livrar de castigo e, como apregoaria dois séculos depois a propaganda de uma popular marca cigarros do mesmo nome da Vila Rica dos inconfidentes, para em tudo “levar vantagem, certo?”. Como recompensa, recebeu da Coroa lusitana pensão de 400 mil-réis, o título de fidalgo da Casa Real e o hábito da Ordem de Cristo. “Delatar um levante pode dar lucro bem alto!”, escreveu Cecília Meireles no imperecível poema Romanceiro da Independência.

Até nossos dias, Silvério dos Reis encarnou a personalidade mais abjeta e repulsiva da História. Mesmo aqueles que se regozijam e se comprazem com a traição, como disse Cervantes no Dom Quixote, sentem irreprimível aversão ao traidor. Mas os tempos são outros, conquanto nos ensine a inspirada sabedoria dos poetas que o tempo não passa, os homens é que mudam. E vemos hoje a delação premiada e criteriosamente negociada (Silvério dos Reis também pactuou a sua com o visconde de Barbacena) entronizar-se como a modernidade em matéria de investigação criminal e o inexorável futuro do processo penal. Tal e qual voga extravagante e nociva que de vez em quando empolga a sociedade, associa-se às interceptações telefônicas e telemáticas como o mais eficiente e milagroso instrumento da ciência da investigação criminal. A velha e boa pesquisa técnica de busca e análise de vestígios materiais das infrações penais e indícios seguros de sua autoria, tão demorada e afanosa, cede passo ao pragmatismo conveniente e à célere facilidade da câmera de vídeo. Desenvolveu-se uma espécie de impaciência (ou macunaímica preguiça?) com o trabalho percuciente e minucioso da busca científica da verdade criminal. Proclama-se a obsolescência da ciência de Sherlock Holmes, tão talentosamente realçada pelo imaginoso talento de Arthur Conan Doyle, e se fez a opção definitiva pela perigosa superficialidade do “basta ouvir alguém dizer”.




Indispensável consignar que ordinariamente delações não são espontâneas nem livres. Homens outrora poderosos, agora alquebrados pelo sofrimento do cárcere desumano, desesperados por penas excessivas, atormentados pela perspectiva de terminarem seus dias na prisão, são conduzidos por certos agentes da autoridade ao mercado de escambos onde lhes arrancam informações em troca de penas mais leves ou mesmo da liberdade em que possam usufruir o butim amealhado. Homens partidos são tangidos para a delação não em busca de títulos ou pensões – embora alguns tenham recebido vantagens pessoais na mesma bandeja em que serviram a cabeça dos delatados. De suas gargantas asfixiadas pelo garrote vil do constrangimento emergem novos autos de devassa, com sanha persecutória e desfecho semelhantes ao de Vila Rica. Na medida em que a prova se mostra débil, insuficiente, convoca-se um colaborador de plantão para transfundir sangue novo na anêmica artéria da acusação. Se no tempo dos porões do autoritarismo o preso era frequentemente levado ao pau de arara para novas confissões, os “colaboradores” agora são chamados a sucessivas etapas da delação conforme vão surgindo as necessidades acusatórias. Sua recusa significa imediato retorno à enxovia.

Quando, enfim, acabam por declarar tudo o que os inquisidores desejam ouvir, merecem fé pública – e é de auto de fé que se trata. Não há hoje nos nossos tribunais palavra mais ilibada, testemunho mais confiável, acusação mais idônea que a do delator gratificado. Na bíblia persecutória, seu verbo se faz prova inconteste. Não importa que a Lei n.º 12.850, que em 2013 instituiu a “colaboração premiada”, ressalve no parágrafo 16 do artigo 4.º que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.”

A delação extraída, fruto da pressão dos inquisidores e da desesperança do delator, em geral despida de ancoragem nas provas, deveria ser um ponto de partida da investigação criminal – e não, como tem sido regra, seu início, meio e fim. Rituais travestidos de procedimento legal remetem à Inquisição, ao Terror da Revolução Francesa, aos processos de Moscou e consolidam-se como gazuas a romper com a civilidade da justiça democrática do Direito Penal dos povos livres. Vetustos institutos, como presunção de inocência, obrigatoriedade do ônus da prova a cargo do acusador, observância rigorosa do devido processo legal, a par de prisões longevas sem culpa formada e condenação, são relegados em nome de uma suposta “guerra santa” que certos policiais, procuradores e até juízes se julgam messianicamente predestinados a travar.

No rol de pontos da fora da curva em que derrapa a delação premiada também cintilam extravagâncias como esse novo tipo de sequestro relâmpago oficial chamado “condução coercitiva”, prisões e afastamentos do cargo de senadores e deputados só alcançáveis por outro Poder se flagrados em crime inafiançável, perseguição a jornalistas e advogados. O espetáculo parece reger-se menos pelas leis que pelas “vozes das ruas”, amplificadas pela turba, como disse Rui Barbosa – “turba agitada por uma tromba de cólera.” É a sociedade da delação.

JOSÉ ROBERTO BATOCHIO – Advogado criminalista, foi presidente Nacional da OAB, da OAB/SP, da AASP Associação dos Advogados de São Paulo e deputado federal (PDT/SP)

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