A expansão de universidades e institutos federais no Brasil promove uma oferta desmesurada de diplomas em comparação à demanda de vagas no mercado de trabalho.
Por Daniel Afonso da Silva, compartilhado de Jornal GGN
Sutil e discretamente vem ganhando destaque a discussão sobre a overeducation (sobre-educação) e os overeducated (sobre-educados) no Brasil. Virou consenso entre os universitários que há “muito estudo para pouco emprego” por aqui. Esse consenso virou constatação já tem muito. Mas nestes inícios de 2023 começa a ganhar ares de angústia coletiva.
Os dados reunidos pelo IBGE e divulgados em suas Pnads presumem que 4,9 milhões de brasileiros com formação universitária ocupavam, no segundo semestre de 2022, postos de trabalho com exigências inferiores à sua formação. Esse número é chocante, mas mais acachapante pode ser a mensuração dos diplomados desempregados ou desalentados.
São múltiplas as razões dessa situação. Mas a mais acentuada reside na ilusão da narrativa do mais estudo, mais emprego e mais trabalho. Essa narrativa politicamente correta e extremamente amigável não é consenso em nenhuma literatura especializada na área de Educação, Economia ou Políticas Públicas. Estudar mais não garante ganhar mais tampouco ganhar algo. Menos ainda num país tão historicamente desigual como o Brasil.
Essa situação vai acentuada pela histerese do mercado de trabalho e nos mundos do trabalho em escala mundial. O achatamento dos postos de trabalho nas economias industrializadas, europeias e norte-americana, desde os anos de 1970 e a precarização dos mundos do trabalho no conjunto dos países do dito “Sul Global” desde a ampliação de sua participação na globalização a partir dos anos de 1990 vêm desconjuntando o chamado “elevador social” outrora provido pela Educação. A Educação deixou de ser passaporte palpável de dias economicamente melhores.
A carta-diagnóstico-denúncia “Yo soy ‘mileurista’” de Carolina Alguacil, espanhola de 27 anos, publicada no El Pais de 21 de agosto de 2005 girou mundo e elevou o nível de consciência global sobre o problema da overeducation. [https://elpais.com/diario/2005/08/21/opinion/1124575203_850215.html]. No caso espanhol, milhões espanhóis, nascidos entre 1963 e 1982, com formação superior, um ou mais especializações e mestrados, um ou mais doutorados e pós-doutorados, domínio pleno de diversos idiomas e de habilidades high tech amargavam, em 2005, a precariedade de ocupações instáveis, mecânicas, inferiores à sua preparação e com remuneração máxima de mil euros.
O grito veio da Espanha. Mas, especialmente após a crise financeira de 2008, ele ecoou por todo o espaço europeu e norte-americano. O movimento dos coletes amarelos na França nada mais é que também uma reação a essa precarização dos mundos do trabalho.
O baixo crescimento econômico, a aceleração da desindustrialização e a onipresença da Economia 4.0 indicam uma evidente mutação do mercado de trabalho no mundo e no Brasil. No caso brasileiro, é de se adicionar o aspecto negativo do conjunto de turbulências políticas e sociais ocorridas desde 2013.
Olhando de perto, parte expressiva da insatisfação daqueles que povoaram as ruas nas noites de junho de 2013 advinha da percepção de um intenso mal-estar que aduzia que a “frustração vencera a esperança” uma vez que a insegurança profissional rondava as casas.
Os tombos sucessivos do PIB em 2015 e 2016 (- 3,4 e -3,6%) e seu impacto sobre os níveis de emprego e depois a pandemia de 2020-2022 agravaram ainda mais a situação. Mas o ensino superior seguiu se expandindo.
O número de outubro de 2022 da Revista Fapesp trouxe um gráfico muito eloquente sobre essa expansão [https://revistapesquisa.fapesp.br/expansao-do-ensino-superior-teve-impacto-tangivel-nas-realidades-locais-mas-ainda-enfrenta-obstaculos-para-se-consolidar/].
Uma análise rápida indica que é inegável o conjunto de externalidades positivas advindos dessa expansão. Mas é de se reconhecer que essa expansão agudizou a problemática – sem solucionática – da overeducation no Brasil.
Um primeiro reflexo tangível pode ser a consulta nos dados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE que demonstram que um número muito alto de diplomados passou por instituições com avaliação majoritariamente inferior de 3. [vide https://enade.inep.gov.br/enade/#!/index].
É preciso se eliminar a hipocrisia de que tudo é igual, bonito ou similar. Instituições de qualidade com profissionais motivados e bem preparados são socialmente melhores que instituições precárias com doutores fragilmente preparados e precariamente remunerados.
A expansão de universidades e institutos federais no Brasil promove uma oferta desmesurada de diplomas em comparação à demanda de vagas no mercado de trabalho. A perversidade dessa hipertrofia de diplomados é o claro rebaixamento dos marcadores de competência, mesmo no serviço público tangido por concursos. Além disso, a explosão da oferta de diplomados conduz à redução dos níveis médios de remuneração.
Essas distorções são observáveis em toda parte e em todas as áreas. O Rio de Janeiro e São Paulo devem de possuir os motoristas de Uber e entregadores via aplicativos mais bem qualificados do mundo. A gravidade de tudo isso vai desde o gasto público pessimamente empenhado até questões não menos dramáticas como aquelas contidas na reflexão silenciosa do cidadão que se obriga a se perguntar se é melhor estar desempregado ou subempregado com ou sem diploma.
Parafraseando o gigante russo: todos aqueles bem formados e bem empregados tendem a ser felizes e assemelhados; ao passo que cada desempregado ou subempregado bem ou mal-diplomado é infeliz à sua maneira.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.