Por Fabian Bosch, sobre comentário ao post “Falta um 11º mandamento na lista bíblica de Dallagnol” no Jornal GGN –
Em momento raro, concordo inteiramente com a análise de Nassif, dando realce ao aspecto importantíssimo que é o elo entre os interesses hegemônicos ianques e a atuação estatal-jurídica brasileira contra a chamada corrupção.
Entretanto, há uma lacuna na exposição de Nassif, que gostaria de tentar preencher, embora duvide eu mesmo de minha capacidade para tanto. Vou ousar fazê-lo, usando um perigoso processo de simplificação. As observações que seguem estão coladas na minha experiência pessoal, de uns 23 anos de Ministério Público (estadual e federal). Igualmente, em reflexões e estudos. Compus e ajuizei dezenas de ações civis públicas que visavam a restituição de recursos roubados do contribuinte, ao longo de todas as etapas abaixo descritas. Como combatente marxista, não escrevi um artigo, um ensaio, sequer. Escrevi centenas de páginas no contencioso, como era de meu mister. São páginas anônimas, assim é a luta popular.
A história do desvio da mais-valia apropriada pelo Estado brasileiro pode ser esquematizada assim:
1- Período de completa ‘aceitação’ da confusão entre o público e o privado, período da livre rapinagem pela elite político-econômica, sobretudo, do produto do trabalho.
Neste período não havia instrumentos adequados para o Ministério Público enfrentar os grandes alcances (furtos, na antiga linguagem), restando-lhe apenas processar criminalmente pequenos furtos de bens públicos de pequeno valor, ilícitos administrativo-penais de pouca monta.
O ilícitos dos prefeitos municipais, por exemplo, eram subsumidos no Decreto-lei 201, baixado pela Ditadura (1967). A jurisprudência a respeito era extremamente leniente, entendendo, por exemplo, que o uso pelo prefeito de veículos, de empregados da Prefeitura, não passava de mera irregularidade, sem tipicidade penal. Embora os prefeitos estivessem sob a jurisdição penal dos juízes de primeiro grau, era quase impossível obter uma condenação por apropriação ou desvio de recursos públicos.
Não somente inexistiam instrumentos processuais adequados, como escapava da visão e atuação do Ministério Público, enquanto tal, o espetáculo que o cidadão comum enxergava diuturnamente, de roubo e desmandos dos recursos públicos.
Até a Constituição de 1988, o Ministério Público era o órgão de repressão dos delitos de sangue, a realização do Promotor de Justiça mediano era obter penas altas para os indivíduos da classe de baixo. Este viés ainda está presente, pois o Direito Penal continua sendo uma reação estatal contra determinada classe social. Então, como hoje, os homicidas das classes de cima conseguiam protelar sem fim os julgamentos.
2- Transição.
Mesmo após a vigência da Constituição atual, a falta de uma lei sobre a improbidade administrativa (noção então introduzida no ordenamento jurídico) tornava muito difícil a atuação dos membros do Ministério Público que ensaiavam os primeiros passos para levar ao Judiciário os grandes desmandos administrativos.
Nesta fase, ajuizei uma ação civil de ressarcimento contra a OAS e o Prefeito Municipal de Maceió, em litisconsórcio com outros servidores públicos. Era um superfaturamento brutal. Foi difícil conseguir o apoio do CREA. Afinal, um engenheiro topou assinar um laudo. Seguiu-se uma condenação, e, depois de bom tempo, um estranho encerramento do processo. Assim, um trabalho de uns 4 meses, incluindo inspeções nos locais das alegadas obras, tudo foi perdido.
Severa limitação à atuação do Ministério Público já se sentia quanto à estrutura para enfrentar os ataques aos cofres públicos. Ainda hoje, o Ministério Público, de regra, não conta com assessoramento contábil. Já recentemente, interpelei um Procurador Geral da República sobre a falta de um assessor contábil, uma vez que havia assessorias de comunicação e de segurança.
Fico a cavaleiro para assinalar esta lacuna, pois tenho alguma formação contábil, como autodidata. Atuei como auditor fiscal, alguns anos.
3 – Fase atual, com a lei de improbidade, mais normas sobre a lavagem de dinheiro, e sobre a dita delação premiada. Há, afinal, instrumentos bastantes (talvez ainda insuficientes) para um membro do Ministério Público se desincumbir de seus deveres constitucionais.
Entretanto, há uma distância quase infinita entre as condições de trabalho dos Procuradores da “Lava Jato” e os demais no resto do País. Um desses pontos de desigualdade reside…no juiz federal. A grande maioria de juízes federais deste País não teria acatado nenhuma medida cautelar, nem mesmo denúncias contra aquele pessoal das empreiteiras e doleiros. Prova disso é a chamada operação “Zelotes”, esquecida e desviada.
Outro aspecto está na concentração dos grandes golpes na Região Centro-Sul. Em Alagoas, por exemplo, onde atuei durante uns 15 anos, não existe (nem existirá ?) um elo forte com o grande tráfico de influências, distribuição de propinas, etc. Aqui, há riscos pessoais, mas o trabalho é anônimo, quase. Lembre-se do caso das vacas de papel do Senador alagoano. Foi ajuizado em Brasília, devido a seu privilégio de jurisdição, sim, mas não somente. Por que a Receita Federal em Alagoas não levantou a fraude, encaminhando-a à Procuradoria da República local?
Parênteses de cunho pessoal: padeci uns 3 meses, recebendo diariamente ameaças de morte, devido a uma intervenção em um processo de expropriação, por haver apontado um sobrepreço de uns 2 milhões de reais, enquanto o Procurador do INCRA silenciava. Sempre desconfiei do Perito judicial, sem provas. Neste caso, tive êxito, processual e físico – sobrevivi. Um exemplo de caráter tão pessoal, servirá, talvez, para os que estão acusando Procuradores da República, chegando quase a injuriá-los, sem distinguir.
Penso que não há bastante clareza no pensamento de Nassif, quanto a esta possibilidade de conduzir uma investigação/acusação contra um Presidente da Odebrecht, por exemplo. É lembrar das chamadas operações Satiagraha e Castelo de Areia. Do destino de Protógenes.
Nassif não hesita em aceitar um tremendo progresso na capacidade de agir do Estado contra essa sangria infinita de recursos. Não. Mas, às vezes, aumenta a importância dos desvios neste agir:
– 1- A parcialidade político-partidária, deixando em segundo plano um partido e certos políticos. O uso de informações (vazamentos) para encobrir os crimes de certos políticos, e para desestabilizar um partido e movimentos de esquerda. Em suma, uma tomada de posição clara pro direita.
– 2- A aparente indiferença diante dos riscos de colapso de empresas nacionais dotadas de alta capacidade tecnológica, responsáveis por milhares de empregos.
Sobre esse aspecto, há uma lacuna nas reflexões do próprio Nassif e deste blog. Cuida-se da realidade das sociedades anônimas: há as anônimas de fato, e aquelas, não tanto. As empreiteiras brasileiras têm estrutura familiar, basta atentar para os nomes: Odebrecht, Camargo Correa, Andrade Gutierrez…
A que serve a estrutura de sociedade anônima? Para encobrir responsabilidades? Para reduzir os riscos dos capitalistas investidores? Riscos quando trilham caminhos do crime?
Quando esta cobertura (garantia) de S.A. chegou a atingir outros capitalistas, a jurisprudência inglesa (caso Salomon v. Salomon & Co. Ltd.) criou a figura do ‘disregard of legal entity, da desconsideração da personalidade jurídica.
A estratégia da S.A. seria um longo capítulo, nestas reflexões, por isso é deixada de lado. Fica a questão de como separar uma família e seus crimes, da estrutura, nada anônima, de sua empresa, de um acúmulo tremendo de capital, fruto de eficiência gerencial e de parasitismo criminoso no Estado.
Nassif e seu blog, e seguidores, não perceberam este paradoxo. Como punir pessoas (a família proprietária da empreiteira), e poupar a empresa. Como separar os patrimônios, de fato? Eis o problema da “disregard doctrine”, da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.
Lembro de como Marcelo Odebrecht respondeu ao Ministério Público que não tinha ‘competência’para inibir atuações de advogados da empresa na Suíça, tendentes a impedir a remessa de dados sobre contas bancárias para o Brasil
Não estou desconhecendo as funções econômicas da S.A. Apenas as deixo de lado aqui.
Reconheço que não sei como resolver esta questão. Apenas estou repelindo respostas simplistas, como são as do próprio Nassif, algumas vezes. Nada esclarece o problema o fato de acordos de leniência serem adotados por aí, mundo afora.
É possível que Procuradores da República e Juiz estejam conscientes do serviço que prestam aos interesses ianques, desmontando nossas empreiteiras e a Petrobrás. Não acredito que sejam capazes do raciocínio que Nassif expôs aqui. Podem estar agindo com uma nebulosa consciência fascista de direita. Isso parece provável. Entretanto, a solução não seria oferecer prêmios a Marcelo Odebrecht, et caterva.