A sombrinha de Angélica e a pedagogia dos detalhes

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Por Rosane Borges via Guest Post, para o Portal Geledés – 

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O flagrante da expulsão da equipe do programa “Estrelas” (Rede Globo) do espaço da UNIRIO deixou escapar um microepisódio que provocou reação imediata nas redes sociais. O “detalhe” da imagem da sombrinha carregada por uma moça negra para abrigar a apresentadora Angélica tem força pedagógica, pois nos leva a refletir sobre os papeis subalternizados desempenhados em sua maioria por mulheres negras na estrutura ocupacional da indústria do entretenimento. A “naturalização” desses papeis racialmente demarcados compõe uma ação educativa, chancelada pelo legado da escravidão e reatualizada pelo racismo.

O valor das pequenas coisas

Thomas Piketty, em O capital do século XXI, livro que vem mudando substantivamente as formas de explicar (e entender) economia, apoia-se no cinema e na literatura (minhas duas paixões) para demonstrar como se tecem as relações desiguais, as profundas assimetrias inerentes ao capitalismo. De acordo com Piketty, “incorreríamos em grave erro se subestimássemos a importância dos conhecimentos intuitivos que cada um desenvolve sobre a distribuição da renda e do patrimônio de sua época, mesmo na ausência de uma estrutura teórica de análises estatísticas”.

Para o renomado autor, cinema e literatura, em particular os romances do século XIX, carregam informações extremamente precisas sobre os padrões de vida e níveis de fortuna dos diferentes grupos sociais. Jane Austen e Honoré de Balzac, a título de exemplo, apontam os meandros da distribuição da riqueza no Reino Unido e na França nos anos 1790-1830. Segundo Piketty, conhecedores da hierarquia das sociedades em que viviam, os dois escritores desenharam os contornos ocultos da riqueza, sinalizaram seus desdobramentos implacáveis na vida de homens e mulheres, incluindo as consequências para os enlaces matrimoniais, as esperanças pessoais e os infortúnios: “Austen, Balzac e outros escritores da época desnudaram os meandros da desigualdade com um poder evocativo e uma verossimilhança que nenhuma análise teórica ou estatística seria capaz de alcançar”.

Das estórias ficcionais de escritores mundialmente conhecidos, o economista francês põe em cena a manifestação das desigualdades em escala abrangente, donde podemos concluir que Deus está no particular, mora nos detalhes, lembrando a expressão de Dostoiévski, para ficarmos no diapasão da literatura. O microcosmo, o pequeno quadro, pode ser revelador do grande quadro, de processos globalizantes.

 

Do grande ao pequeno quadro: sinais do tempo presente e pretérito

Um acontecimento insólito nessas últimas semanas foi alvo de contundentes comentários nas redes sociais, reverberando na imprensa. Trata-se de uma ocorrência que nos faz prestar atenção nos detalhes, assim como fez Piketty. Impedida de gravar cenas para o programa “Estrelas” na UNIRIO, onde estudantes ressoaram o jargão ” o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”, Angélica foi flagrada sendo protegida do sol calcinante do Rio de Janeiro, aquele sol de juízo final, por uma sombrinha carregada por uma moça negra. A cena deu ocasião a paralelos com os tempos da escravidão, evocou as pinturas de Jean-Baptiste Debret. Do grande quadro – a expulsão da equipe do programa “Estrelas” da Universidade, a imagem arranhada da Rede Globo – escorregou-se para o pequeno quadro, o “mísero detalhe”, simbolizado pelo guarda-chuva e por quem o carrega.

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O jornalista Tony Goes desdenhou a comparação e disse que só mesmo os radicais, os militantes do tribunal da internet, são capazes de bizarra analogia que provocou uma caça às bruxas desnecessária: “Ai que preguiça!”, desabafa Goes. Para ele, qualquer pessoa que entende minimamente de produções dessa natureza sabe o quanto elas mobilizam um conjunto de aparatos que envolve cuidados minuciosos principalmente quando se trata de “externas”. As(os) artistas não podem suar, a maquiagem tem que permanecer impecável, os equipamentos precisam ser preservados. Pinçando do facebook trecho de depoimento da atriz Mika Lins em solidariedade a Angélica, o jornalista pretende fechar questão sobre o episódio: “Não sou amiga da Angélica, mas não posso ser hipócrita: quando gravamos externa na Globo sempre tem uma equipe de produção que nos protege do sol ou da chuva enquanto esperamos para gravar. Isso para não derreter o make ou molhar cara, cabelo e figurino. Já tive alguém segurando a sombrinha para mim sem que essa pessoa estivesse em situação de humilhação e sem que eu a deixasse de tratar com respeito pela sua função exercida naquele momento. Segurando um guarda-chuva, me trazendo uma cadeira ou servindo um copo d´água”.

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Em tom professoral, o jornalista nos dá mais uma lição: nada de enxergar racismo, reedição da escravidão onde apenas há execução de uma tarefa absolutamente necessária, dentro dos parâmetros normais da legislação trabalhista. A moça que carregava a sombrinha não é criada, mucama, escrava, mas uma profissional da equipe de produção do programa global; tampouco a apresentadora não é sinhazinha ou dondoca mimada que precisa de uma subalterna para carregar o instrumento de proteção. Dadas as explicações, assim, de forma linear e simples, Goes deplora a comparação (rica em seu minimalismo), avaliada por ele como esdrúxula, coisa de quem não tem o que fazer.

Como profissional e docente da área, sabemos dos aparatos que qualquer filmagem mobiliza. O problema não está na necessidade do aparato, mas nos lugares hierarquicamente racializados que se repetem na acomodação dos profissionais que estão atrás e à frente das câmeras. Uma mirada a qualquer backstage (camarim, coxia, tudo o que está atrás do palco ou da cena) nos permitirá observar que o universo daqueles que cuidam de quem precisa se manter impecável nas telas é majoritariamente negro ou não-branco: contrarregras, costureiras, camareiras, maquiadoras cozinheiras, assistentes de câmeras…

É aí que o contra-ataque de Tony Goes revela sua fragilidade para seguir o detalhe, pois não consegue enxergar a reiteração dos corpos que carregam o guarda-sol e dos que sob ele se abrigam. Na observação e percepção do mundo vivo, pulsante, o jornalista não nota, nem de longe, os nexos que se articulam neste “flagrante”. Isso, sim, dá preguiça. É nos rastros dessa repetição que podemos homologar analogias entre as imagens de agora, ilustrada na cena da gravação malograda do programa “Estrela”, e as do tempo pretérito, em que corpos de mulheres negras prestavam-se ao cuidado de mulheres e homens brancos.

Esses detalhes, “meros detalhes”, são atravessados como cortina de fumaça pela estrutura midiática brasileira. Há alguns anos atrás, quando completou cem anos, “O Estado de São Paulo” (OESP) fez uma homenagem aos seus colaboradores. Na efeméride, o jornal agradecia aos homens brancos que, com seu intelecto, foram responsáveis pela construção de um jornalismo sério; aos homens negros reconheceu seu papel no empréstimo de seus músculos para o bom funcionamento das rotativas. Que homens negros sejam vistos como coisas, somente músculos, fragmentados em sua corporeidade, isso é “mero detalhe”.

Ao contrário do que pensa Tony Goes e muitos de seus colegas, essa monótona repetição nos convida a prestar atenção aos pormenores que tecem a vida presente como um continuum de um passado que não terminou, como disse o escritor americano William Faulkner. Sem sombra de dúvida, essas minudências e pequenos episódios compõem um rico material para educadoras(es), historiadoras(es), sociólogas(os), comunicadoras(es) e outras profissionais devotadas(os) em decifrar a vida social.

Pedagogia dos detalhes: uma consistente plataforma educativa

Nos sedimentos de um passado que insiste, incrustados nos detalhes, as constantes reguladoras da experiência escravocrata se mostram (quem cuida e quem é cuidado). Aprendemos que, para serem reconhecidos em sua importância social, os fatos devem passar pela verificação das regularidades, o que só é possível na diacronia das repetições. Os detalhes que se repetem são indício de algo que reclama por significação. O historiador Carlo Ginzburg aventurou-se na construção do paradigma de um saber indiciário, um método de conhecimento vertebrado pelas minúcias, mais do que pela dedução. Em Ginzburg, Charles Peirce, Morelli, Sigmund Freud e Sherlock Homes encontramos uma irmandade: semiótica, psicanálise, medicina e investigação policial edificam-se sobre indícios, não captados pela indução, tampouco pela dedução.

O brilhante artigo “Experiência de dor, resistência e liberdade: pequenas histórias de escravas fugidas“, publicado na semana passada no Portal Geledés, vem ao nosso auxílio. Nele, o estigma corporal da “fugitiva” é uma marca potente para informar de maneira global de quem se trata: “o elenco de traços que as identificam representam, portanto, parte de uma tecnologia política de produção e manutenção do regime”. E temos aqui mais um ponto de contato com Michel Foucault.

Num criterioso exame sobre a dinâmica da escravidão, o artigo dá ouvido, na trilha de Foucault, “à orquestração política dos detalhes”, na tentativa de “sentir o exercício do poder entranhado nas pequenas coisas”. Por meio deste texto, reproduzimos Foucault: (…) uma observação minuciosa do detalhe, e ao mesmo tempo um enfoque político dessas pequenas coisas, para controle e utilização dos homens, sobem através da era clássica, levando consigo todo um conjunto de técnicas, todo um corpo de processos e de saber, de descrições, de receitas e dados. E desses esmiuçamentos, sem dúvida, nasceu o homem do humanismo moderno.”

Não é à toa que atribuí à dinâmica dos detalhes um caráter pedagógico, pois considero que essas minúcias possuem uma diretriz orientadora de uma ação educativa, o que define a instituição pedagógica. Assim, a espacialidade do pedagógico dilata-se para além das fronteiras do espaço escolar na exata medida que as formas de educar, de orientar para o mundo, se estabelecem nas práticas cotidianas diversas. Vem desse fundamento uma forte motivação para fazermos das pequenas coisas ou dos pequenos enunciados, como disse Foucault, um recurso importante para entendermos a tessitura do mundo vivido.

Não é raro ouvirmos queixas de professoras(es) – da educação básica ao ensino superior – relativas à carência de materiais atualizados sobre o racismo e escravidão. Assim como alguns jornalistas, esses profissionais também parecem atravessar os detalhes sobre os quais tropeçamos no nosso dia a dia como cortina de fumaça.

No ano da Marcha de Mulheres Negras, que denuncia o racismo e defende o bem-viver como valor essencial, é preciso que estejamos atentas a esses detalhes que acabam por normatizar a nossa presença em lugares subalternizados, ratificando um modo de operação do racismo e limitando as múltiplas formas do bem viver por onde se afirma o sujeito de direitos, num país que se quer republicano. Assim como os romances de Jane Austen e Balzac, a sombrinha de Angélica tem, sim, muito a nos “dizer”, apresenta algumas cintilações sobre o grande quadro que se pinta a face da Nação.

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