Ocimar dos Santos Mattos Junior começou a trabalhar no ano passado como operador de serviços gerais, fazendo limpeza em uma empresa.
Por Thais Carrança, compartilhado da BBC News Brasil em São Paulo
Morador do município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, o rapaz de 20 anos é parte do contingente de quase 6 milhões de pessoas pretas ou pardas que conseguiram uma ocupação desde o segundo trimestre de 2020, quando a pandemia chegou com força ao país, interrompendo parte da atividade econômica e levando o desemprego a nível recorde.
Mas, para Ocimar, isso não é motivo de comemoração, e sim uma consequência da crise.
Com a pandemia, seu pai perdeu o emprego de pintor automotivo. Diante disso e dos problemas de saúde da mãe, ele se viu forçado a abandonar o cursinho que fazia, sonhando em cursar Nutrição ou Fisioterapia.
“Tive que assumir o papel de homem da casa e correr atrás para ajudar. Isso acabou atrapalhando meus estudos”, conta o jovem, que agora ajuda a sustentar a família, enquanto o pai faz bicos pintando carros quando aparece serviço.
O caso da família de Ocimar, que antes da pandemia tinha uma pessoa ocupada (o pai) e agora passou a ter duas (o filho e o pai, agora trabalhando informalmente), ajuda a explicar uma estatística inusitada.
No terceiro trimestre de 2021, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros no Brasil atingiu o menor patamar desde o terceiro trimestre de 2015.
O dado surpreende porque, há menos de dois anos, em consequência da dinâmica desigual do desemprego na pandemia, essa diferença tinha atingido nível recorde.
Menor diferença entre brancos e negros desde 2015
No segundo trimestre de 2020, momento mais forte de paralisação da atividade econômica, o percentual de pessoas brancas ocupadas em relação à população branca total em idade de trabalhar era de 52,8%.
Entre os negros (soma de pretos e pardos), essa taxa chegou então a 46,9%.
Com o forte impacto da pandemia sobre o emprego informal e a população de baixa renda, a diferença no nível de ocupação entre brancos e negros chegou naquele momento a 5,9 pontos percentuais, maior nível da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que teve início em 2012.
No terceiro trimestre de 2021, pouco mais de um ano depois, o nível de emprego dos brancos subiu para 55,8% e o dos negros, para 52,7%.
O dado do terceiro trimestre é o mais recente disponível da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Trimestral do IBGE, que traz estatísticas de emprego em mais detalhes do que o levantamento mensal, com dados por idade, gênero, raça e cor.
Assim, a diferença entre as taxas caiu a 3,1 pontos percentuais no terceiro trimestre de 2021, menor patamar desde os 2,9 pontos registrados em meados de 2015, quando o mercado de trabalho vinha de um dos momentos mais aquecidos de sua história, mas já começava a sentir os efeitos da recessão de 2015-2016.
Essa diferença chegou a 2,4 pontos no terceiro trimestre de 2014, logo antes de a taxa de desemprego atingir o patamar historicamente baixo de 6,6% ao fim daquele ano.
Lá em 2014, a redução da diferença no nível de emprego entre brancos e negros tinha uma explicação clara: com o mercado de trabalho superaquecido, era fácil tanto para brancos, como para negros — que tradicionalmente têm mais dificuldade para se empregar —, conseguir trabalho.
Mas e em 2021? O que explica a queda da diferença no nível de emprego entre brancos e negros, em um momento em que a taxa de desemprego estava em 12,6%, vindo de um recorde de 14,9% em 2020?
Aumento da informalidade na reabertura da economia
“Também foi uma surpresa para mim”, diz Daniel Duque, pesquisador do mercado de trabalho no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).
Para ele, a explicação mais plausível é o aumento da informalidade na reabertura da economia, após a fase mais dura de distanciamento social.
“Analisando os dados por setores da economia, idade, gênero, nada disso explica a redução da diferença. O que explica de fato é que o emprego informal se recuperou muito mais rápido do que o formal”, observa o economista.
Entre o terceiro trimestre de 2020 e igual período de 2021, foram criados 9,5 milhões de empregos no Brasil, segundo o IBGE. Mas, desse total de pessoas ocupadas a mais, 7 milhões estavam na informalidade.
“Como a população não branca geralmente acessa mais os empregos informais, isso acabou reduzindo a diferença no nível de emprego com relação à população branca, que em geral tem mais empregos formais, que não se recuperaram tão rapidamente.”
Ou seja: a redução da diferença racial é resultado de uma piora na qualidade do emprego, com aumento da informalidade e queda da renda.
Essa situação deve ser transitória, explica Duque, e deve ser revertida quando o emprego formal se recuperar.
“A situação que estamos vendo agora não é estrutural, é uma circunstância devido ao momento da recuperação econômica do mercado de trabalho na pandemia”, avalia.
Nos EUA, ‘diferença racial’ também está em baixa
A diferença no nível de emprego entre brancos e negros é um indicador bastante acompanhado nos Estados Unidos, onde o debate sobre igualdade racial no mercado de trabalho é mais avançado do que no Brasil.
Por lá, o Federal Reserve Bank of St. Louis — um dos 12 bancos regionais que compõem o sistema do Banco Central americano — mantém séries históricas do nível de emprego de brancos e pretos.
O dado observado é o chamado “Employment-Population Ratio”, que é a proporção de pessoas ocupadas dentre o total de pessoas em idade de trabalhar para cada grupo racial.
Olhando para esse indicador, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros nos Estados Unidos chegou logo antes da pandemia ao menor nível da história.
Com 60,9% de brancos ocupados em relação à população branca total em idade de trabalhar e 59% de pretos ocupados na mesma métrica, a diferença caiu a apenas 1,9 ponto percentual em dezembro de 2019.
Na década de 1980, marcada por sucessivas recessões nos Estados Unidos, essa diferença atingiu quase 10 pontos.
Com a pandemia, a desigualdade entre brancos e negros voltou a crescer, e a diferença racial do mercado de trabalho americano bateu em quase 5 pontos em meados de 2020.
Mas, após a retomada das atividades, o indicador caiu novamente, o que os analistas creditam ao bom momento do mercado de trabalho, com forte criação de vagas e virtual pleno emprego, o que favorece a ocupação da população não branca.
“Se muita gente está conseguindo emprego, não há uma diferença grande entre grupos. Quando há uma situação em que falta mão de obra, fica mais difícil para os empregadores discriminar”, observa Duque.
A origem da desigualdade racial no mercado de trabalho
Embora tanto no Brasil como nos Estados Unidos a diferença no nível de emprego entre brancos e negros esteja em patamares historicamente baixos, os motivos para isso são bastante diferentes.
Primeiro, é preciso entender por que os negros historicamente têm mais dificuldade para encontrar trabalho do que os brancos. Isso tem origem na escravidão.
“A população branca teve acesso à educação muito mais do que a população não branca, desde há séculos. Isso só começou a se equalizar há poucas décadas e, até hoje, a desigualdade na educação entre jovens brancos e não brancos persiste, porque há uma transmissão geracional da educação”, diz Duque.
Filhos de pais com ensino superior têm, por exemplo, mais chance de concluir uma faculdade. E até a expansão do ensino superior e da implementação da lei de cotas a desigualdade racial no acesso ao ensino universitário no Brasil era enorme.
“Além disso, a população branca tem mais conexões, tem mais acesso a recursos parentais e a toda uma série de benefícios que a população não branca não tem”, acrescenta o economista.
Os jovens brancos têm ainda desde cedo acesso a cursos extraescolares, como inglês e informática, e a recursos culturais, como idas ao cinema, compra de livros e intercâmbios no exterior, por exemplo.
“Adicionalmente a tudo isso, existe a discriminação racial, que é bem documentada tanto no Brasil, quanto fora, e exerce uma influência muito forte na probabilidade de contratação entre brancos e não brancos no país e no mundo”, afirma.
Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, destaca que há também no Brasil um componente regional na desigualdade de acesso ao mercado de trabalho entre brancos e negros.
“A composição da população branca e negra é diferente no território brasileiro”, observa.
“Os negros estão mais presentes nos Estados do Norte e Nordeste, enquanto o Sudeste tem o mercado de trabalho mais desenvolvido e aquecido. Só isso já gera disparidades raciais no mercado de trabalho, simplesmente pelo contexto regional.”
Como diminuir a desigualdade racial do emprego de forma estrutural
Para Duque, diminuir a desigualdade racial no mercado de trabalho de forma permanente exige reduzir a disparidade educacional entre bancos e negros, já que a formação influencia a capacidade de conseguir emprego.
“Adicionalmente, é preciso uma mudança cultural, de reduzir a discriminação na contratação, que também é bastante relevante”, afirma.
França avalia que são necessárias políticas de redução da desigualdade mais amplas.
“Faço parte do grupo que acredita que é preciso investir pesadamente em educação, porque nossa educação é muito ruim, com discrepâncias importantes entre ensino público e privado e, mesmo no sistema público, entre escolas centrais e as mais periféricas. Mas é utópico acreditar que investir só na educação vai resolver tudo”, considera.
“São necessárias políticas de ação afirmativa em todos os campos da sociedade. Na política, no mercado de trabalho, na educação. Sem isso, o processo de inclusão será muito lento. Temos que botar cotas em tudo”, defende.
Nos Estados Unidos, discute-se a importância do mandato de pleno emprego do Banco Central americano, o Fed, para a redução da desigualdade racial no mercado de trabalho.
Esse mandato estabelece que é obrigação da autoridade monetária perseguir “o máximo nível de emprego ou menor nível de desemprego que a economia pode sustentar mantendo uma taxa de inflação estável”.
No Brasil, a lei que garantiu a autonomia do Banco Central, sancionada em fevereiro de 2021, estabeleceu o fomento do pleno emprego como um segundo objetivo da autoridade monetária, para além do combate à inflação.
Muitos economistas avaliam, porém, que isso tem sido ignorado e que o Banco Central continua atuando como se o controle da inflação fosse seu único objetivo.
A discussão tem ganhado espaço nos últimos meses, em meio ao ciclo de alta de juros, que alguns analistas avaliam que, se mal calibrado, pode levar o Brasil à recessão e ao aumento do desemprego em 2022.
“Agora que estamos com inflação alta, isso acaba sendo visto ainda como prioridade para o Banco Central, mas, sem dúvida, olhar para o emprego e para o combate ao desemprego através de ferramentas macroeconômicas seria bastante relevante para reduzir o hiato racial de empregos e salários no Brasil”, conclui Duque.