Por Tatiana Carlotti em Carta Maior –
Em defesa de seus interesses, as empresas de comunicação talharam a turbulência política, criando mocinhos e bandidos de ocasião.
Em tempos de midiatização da vida pública e de domínio dos meios de comunicação, não apenas o conteúdo divulgado, mas, sobretudo, o modo de apresentação das notícias desempenha um papel crucial na formação da opinião do leitor. Neste 2015, ano em que a onda conservadora subiu a crista e ameaçou direitos e conquistas sociais, obtidas a duras penas, é imperativa uma análise da narrativa disseminada no país pelo oligopólio midiático.
Uma breve passagem pelas capas dos principais jornais brasileiros, ao longo deste ano, traz a imagem de um país em frangalhos, (des)governado pelo partido mais corrupto da história e sitiado por sindicatos, movimentos sociais e populares encrenqueiros – mesmo que entre os “encrenqueiros” estejam professores em luta por melhores salários ou adolescentes defendendo seu direito à escola.
Na contramão de outros países democráticos, no Brasil, as empresas de comunicação atuam sem qualquer regulamentação. Não é à toa que, cinquenta anos após a ditadura militar, tenhamos visto o ressuscitar da Marcha da Família e outras excrescências semelhantes. Afinal, a pauta do ano reverberou o tudo ou nada para a manutenção do terceiro turno eleitoral – forjado e sustentando pela mídia em conluio com a oposição partidária.
Em defesa de seus interesses, as empresas de comunicação do país talharam a turbulência política, criando mocinhos e bandidos de ocasião, sem qualquer profundidade analítica quanto aos reais entraves que emperram as instituições políticas e de representação no país. Seguindo a cartilha dos “dois pesos, duas medidas” – aos afins, a complacência; aos demais, o ataque – utilizaram manchetes tendenciosas, editorializaram reportagens e minimizaram o contraditório, suportado, aqui e ali, em nome de um mínimo de credibilidade.
Aos que ainda creem em isenção da mídia, recomendamos uma visita ao site Manchetômetro, uma excelente iniciativa do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMPE) que vem se consolidando como importante instrumento de averiguação das tendências da imprensa. O site atesta, por exemplo, a prevalência da pauta negativa contra o governo, a presidenta da República e o PT nas manchetes dos jornais.
Em artigo publicado na Folha, sob o título Seletividades, o cientista político André Singer observa que “enquanto o PT aparece, diuturnamente, como o mais corrupto da história nacional”, transitando na área do “megaescândalo”; o PSDB, quando apanhado, “merece manchetes, chamadas e registros relativamente discretos”, ocupando a “dimensão da notícia comum”. E provoca: “se uma vinheta do tipo ‘e o metrô de São Paulo?’ aparecesse todo dia na imprensa, em poucas semanas teríamos importantes novidades”.
No reino das más notícias
Ao longo do ano, as manchetes dos principais jornais do país bateram nas mesmas teclas: o caos econômico, a corrupção “histórica” do PT e a fragilidade do governo Dilma. Também tentaram construir uma narrativa “institucional” lançando acusações ditas por terceiros como verdades absolutas, e apostaram nas “pedaladas fiscais” como justificativa para o impeachment. Ainda que não produza impacto isoladamente, na somatória dos dias, das semanas, dos meses e do ano – e, obviamente, de treze anos de governos Lula e Dilma -, o acúmulo da pauta catastrofista nos dá uma boa explicação sobre a explosão de ódio nas ruas.
Em seu artigo, A contribuição milionária da imprensa para ampliar a crise econômica, publicado no Diário do Centro do Mundo, o jornalista Paulo Nogueira cita a expressão do cientista social norte-americano, Roberto Merton, self fulfilling prophecy (profecia autorrealizável). “Você tanto fala numa coisa com bases falsas que ela acaba se tornando realidade. O Brasil vive um momento de profecia autorrealizável. Tanto a mídia, por motivações políticas, gritou que o Brasil vivia um inferno econômico que as coisas, efetivamente, se complicaram. Não há economia que resista a maciços ataques de catastrofismo”, avalia.
Seguindo essa lógica, reparem no bombardeio de más notícias na Folha, um mês antes das manifestações: “Brasil vira problema para firmas estrangeiras” (15.02.2015); “Dilma atrasa repasses para cursos técnicos” (19.02.2015); “Dilma sobe tributo em 150% e empresas preveem demissões” (20.02.2015); “Crise e corrupção tiram selo de bom pagador da Petrobras” (25.02.2015); “Dados negativos ampliam ceticismo sobre ajuste fiscal” (26.02.2015).
Vejam, também, o ataque à Petrobras perpetrado pelas manchetes de O Globo, ao longo de, praticamente, uma semana inteira em abril: “Petrobras recebe socorro de R$ 9 bi e vende plataformas” (18.04.2015); “Petrobras escondeu US$ 8 bi da fiscalização” (19.04.2015); “Petrobras paga por equipamento inútil” (20.04.2015); “Levy: balanço marcará reconstrução da Petrobras” (21.04.2015); “Estatal admite corrupção de R$ 6 bi e prejuízo de R$ 21 bi” (23.04.2015); “Petrobras admite até vender fatias do pré-sal” (24.04.2015).
O sociólogo João Feres Jr., coordenador do LEMEP que faz o levantamento do Manchetômetro, chama a atenção para os artifícios da linguagem usados pela imprensa. Ele cita, por exemplo, a reprodução com destaque dos clichês nas falas “lamentáveis” de Aécio Neves; as “manobras regimentais” de Eduardo Cunha no lugar de “obstrução da justiça” (quando ainda eram cúmplices – PSDB e ele). “Quaisquer eventos que contabilizem pequenas vitórias da oposição que se tornam grandes derrotas do governo”, destaca.
Em 3 de janeiro, entre todas as frases ditas por Gilberto Carvalho, ex-secretário geral da Presidência, em sua entrevista na Folha, a selecionada para estampar a manchete do jornal foi: “Não somos ladrões, diz principal aliado de Lula”. Em que pese os tropeços da legenda, a tentativa de fazer do PT o partido mais corrupto da história é um acinte à inteligência do leitor. Soma-se a esse tipo de escolha, o imenso destaque dado às afirmações de delatores e doleiros na cobertura da Lava Jato, transformando acusações em verdades absolutas, antes de qualquer julgamento, nas manchetes dos jornais como, por exemplo, em O Globo no dia 6 de fevereiro: “PT recebeu US$ 200 milhões diz delator; Câmara cria CPI”.
A perniciosa polarização social
Muito já se disse – e com razão – sobre a disparidade da cobertura da mídia dos atos pró e contra o governo Dilma. Em 15.03.2015, véspera do primeiro ato da direita, o Estadão publicava: “Ato contra Dilma coincide com pessimismo econômico” e estampava após a manifestação: “Protesto contra Dilma é maior manifestação desde as ´Diretas Já´”. Com direito à foto panorâmica e imagem de crianças junto à Polícia Militar – a mesma que agrediria adolescentes de colégios estaduais no último bimestre do ano – o destaque de página inteira do jornal para o ato contra Dilma se contrasta com a cobertura dada à Marcha pela Democracia e contra o golpe.
Em 14.03.2015, uma foto central ilustrava a manchete daquele ato: “CUT, UNE e MST fazem atos pró-Dilma em 23 Estados”. Nomeados os movimentos – diga-se de passagem, movimentos que o Estadão critica o quanto pode em suas páginas – a manchete contrapunha a ideia de um ato organizado com a de um ato “espontâneo” e “apartidário”, mesmo com todo o peso da imprensa na divulgação da agenda do evento em prol do impeachment que contou, inclusive, com cobertura em tempo real na TV.
A construção da polarização também se fez notar na cobertura dos conflitos de rua. Em 12.06.2015, o Estadão publicou a foto de um desses confrontos. Na legenda: “Militantes do PT e da CUT trocaram insultos com grupos que pedem o impeachment da presidenta nas proximidades do hotel que abriga o 5° Congresso Nacional do PT”. Nenhum questionamento sobre o que os “apartidários” foram fazer nas “proximidades” do local onde o PT realizava o seu congresso.
Na mesma toada, a legenda de uma foto, divulgada pela Folha em 15.04.2015, afirmava: “simpatizante do PT (à dir.) discute com mulher em rua do centro de São Paulo, pessoas contrárias à gestão Dilma rasgaram material que era distribuído por petistas com críticas ao governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP)”. Apesar da foto trazer duas mulheres discutindo, a ação da discussão foi atribuída à petista, mesmo se sabendo que foram os “apartidários” que rasgaram o material.
Feres sustenta que a mídia tem capacidade de mobilização, mas essa capacidade não é constante para todas as classes sociais. “Ela tem mais capacidade de mobilizar a classe média, público potencial das passeatas anti-PT do que as classes populares. Estas não compraram o produto “impeachment”, não são passivas em relação às coisas que recebem da grande mídia.”
Ele avalia, também, a falta de apoio da mídia na última passeata da direita, atribuindo isso ao não apoio a Eduardo Cunha. “Tomando somente os editoriais dos três jornalões desde junho deste ano, da base do Manchetômetro, vemos claramente que os jornais tendem a se posicionar contrariamente a esse personagem, ainda que nutram esperanças de um impeachment sem Cunha no comando.” Vale destacar que ao cobrir a última manifestação da direita, neste dezembro, o Estadão já anunciou a agenda do próximo ato: “Protesto tem adesão menor e oposição se mobiliza para março” (14.12.2015).
A orquestração do golpe
Na falta de um crime, a partir de junho, as chamadas “pedaladas fiscais” (não julgadas) receberam ênfase na pauta da imprensa. Elas foram o pretexto encontrado pelos partidos de oposição – com a cumplicidade da mídia – para legitimar o pedido de impeachment. Isso explica, em boa parte, a indignação contra o senador Adir Gurgacz (PDT-RO), após ele anunciar que não seguirá a determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), em sua relatoria das contas presidenciais. O Globo e a Folha reagiram, estampando em suas manchetes: “Relator contraria TCU e pede aprovação das contas de Dilma”; no Estadão, “Relator sugere aprovar contas de Dilma e contraria TCU”. Pela Constituição, o Senado é soberano, portanto, não é obrigado a seguir as recomendações do TCU.
Ao longo do ano, junto à pauta das pedaladas fiscais e das manchetes sugerindo “manobras” do governo contra o TCU, o que se viu nas capas dos principais jornais do país foram falas de terceiros contra a presidenta, por exemplo, “Para oposição, Dilma tenta inibir ações de tribunais” (OESP, 08.07.2015), ou “Empreiteiro afirma ter doado a Dilma por temer retaliação” (OESP, 09.05.2015). Além de comparações entre o atual governo e o do ex-presidente Fernando Collor: “Sob Dilma, PIB é o pior desde Collor” (FSP, 29.03.2015); “Rejeição a Dilma atinge nível de Collor pré-impeachment” (FSP, 21.06.2015).
Outro personagem atacado pelos jornais, sobretudo a partir de outubro, foi o ex-presidente Lula. No Estadão, quase metade das manchetes ou chamadas de capa em outubro tentaram relacioná-lo à corrupção. Na Folha, em 27.11.2015, uma pérola no trabalho com a imagens: ao invés de aparecer o senador Delcídio Amaral, preso pela Lava Jato, para ilustrar a manchete “Delcídio diz que agiu por ´questão humanitária´”, quem surge é o ex-presidente sozinho, em uma foto grande, com a legenda: “o ex-presidente Lula, que fez críticas ao senador Delcídio Amaral”.
Em contrapartida, o tratamento dispensado à dupla FHC e Aécio Neves deu o tom e a agenda do golpismo nas manchetes e chamadas dos jornais. Em junho, o Estadão publicou uma reportagem sobre os desafios do PSDB (07.06.2015). Em agosto, FHC disparou na Folha: “Renúncia de Dilma seria um gesto de grandeza” (18.08.2015) e, em O Globo, “FH surpreende, sugere renúncia e revolta o PT”. Em setembro, mais uma chamada no Estadão: “Não sabemos quem estará de pé em 3 meses” (05.09.2015). Em novembro, “Dilma está pagando pela herança maldita do Lula” (11.12.2015), afirmava o tucano, utilizando uma expressão atribuída ao seu governo – “a herança maldita” – que, pelo visto, não ele conseguiu digerir até agora.
Crítica e denúncia dos abusos
O papel da internet contra os abusos cometidos pela imprensa, trazendo à tona o contraditório e reorientando, inclusive, algumas pautas se fez notar ao longo do ano. Um dos exemplos foi o episódio da Carta do vice-presidente Michel Temer à presidenta Dilma. Chacota nacional nas redes sociais, a onda de escárnio se chocou com a construção minuciosa da imagem do vice pela imprensa durante 2015. Um exemplo emblemático na Folha: em 07.08.2015, Temer ocupa o topo inteiro do jornal, diante de um fundo com os dizeres “Governabilidade e Confiança”. Abaixo, a imagem do panelaço contra o PT, com a presidenta em uma televisão ao fundo.
Como explica Feres, há uma batalha pelo espaço público no Brasil. “Antes, a grande mídia tinha o monopólio da representação da opinião pública. Esse monopólio só era perdido em tempos de eleição, quando os partidos ganham acesso direto ao eleitorado. Hoje, a internet oferece uma alternativa, mas ainda é muito tímida, pois também na internet as grandes empresas usam de seu poder econômico para atrair mais audiência”.
“Uma das saídas para salvar a esfera pública é a realização de uma crítica cotidiana das práticas jornalísticas, denunciando o uso desses estratagemas de linguagem, das assimetrias e distorções da cobertura, do agendamento torpe e dos enquadramentos reacionários que pululam no jornalismo que eles produzem. Fazendo essa crítica contundente ao mesmo tempo criamos novos canais de comunicação para o cidadão brasileiro”, orienta o sociólogo.
Além do Manchetômetro, o LEMEP acaba de lançar o Congresso em Notas, um boletim semanal com notícias sobre o Legislativo que, definitivamente, não serão encontradas na imprensa brasileira.
Confiram abaixo imagens e capas que dão a dimensão dos dois pesos, duas medidas da mídia: