Por Amazônia Real, compartilhado de Projeto Colabora –
Cientistas atestam que exposição ao elemento químico pode ser resultado da queima de combustíveis fósseis nas mineradoras da cidade do Pará
(Por Cícero Pedrosa Neto) – Barcarena (PA) – Às margens da rodovia estadual PA 483, uma das vias que liga Belém a Barcarena, nordeste do Pará. Dom Manoel não tem mais moradores. Uma pequena placa suspensa em uma parada de ônibus assinala a entrada do “bairro fantasma”. As casas começaram a ser desmontadas em 2012, dando lugar a pilhas de tijolos que, com o tempo, foram levados para outros lugares ou furtados. Muitos desses vestígios e escombros permanecem como testemunhas da história de abandono do local – as 147 famílias que viviam ali saíram às pressas.
O estudo socioeconômico produzido naquele ano, pela Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) e a Fundação de Apoio à Pesquisa, Extensão e Ensino em Ciências Agrárias (Funpea), confirmou que o abandono de Dom Manoel se deu pela acentuada poluição das indústrias mineradoras que armazenam diferentes produtos danosos à saúde. Dentre eles estão: combustíveis fósseis, como o coque de petróleo (conhecido como petcoke) e o carvão mineral; manganês, bauxita e caulim. O estudo não apontou o elemento químico e sua consequência à saúde da população vizinha do Parque Industrial de Barcarena.
Ex-moradora de Dom Manoel, onde viveu por 30 anos, Maria das Graças dos Anjos, de 48, disse à agência Amazônia Real que, antes de deixar sua casa, pesquisadores do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão do Ministério da Saúde, coletaram amostras de seu sangue e retiraram fios do cabelo para exames. Ela nunca soube o resultado. “Comecei a sentir dor no estômago, coceira na garganta e na pele. Esse problema na minha pele dura até hoje, não sei se ainda fico boa disso. A gente está doente e sem saber do quê”, lamenta ela.
Sua filha, Valdenice dos Anjos, afirmou ter denunciado às autoridades a contaminação da população pela poluição das mineradoras. “Denunciamos na Secretaria de Meio Ambiente do Estado e do Município, e também no Ministério Público. Ninguém quis ver nossa situação”, completou ela, neta de Manoel Brandão, o fundador da comunidade “Cabeceira do Curuperé”, que, com a criação do parque industrial, passou a se chamar Dom Manoel, em homenagem a ele.
Raimunda Baía, 71 anos, estava deitada, por conta de um derrame cerebral que sofreu antes de deixar Dom Manoel, em 2014. Seu esposo, Ulisses Baía, 87 anos, disse que ela adoeceu devido à influência da poluição. Ele recorda que na casa havia uma pequena roça que provia o sustento da família. “Aquilo ali era um paraíso, a gente tinha de tudo lá. Só de açaí eram 900 pés. Nossos filhos foram criados com o que tirávamos da roça. Aí chegaram as indústrias e não prestou mais”, contou, às lágrimas, na casa em Vila do Conde, também em Barcarena.
Uma das filhas do casal, Eunice Baía, protagonizou o filme “Tainá – uma aventura na Amazônia”, história da menina indígena defensora da floresta. Ela foi escolhida para viver a personagem, após uma seleção com mais de 3 mil crianças de todo o país. Atualmente é a caçula, Rackel, de 26 anos, que cuida dos pais. Ela diz que dona Raimunda ficou doente ainda em Dom Manoel. “Primeiro ela teve uma demência, depois uma falta de ar e uma moleza que não tinha fim. Aí veio o derrame e ela ficou assim [acamada]. Minha mãe era saudável e ficou doente por conta da poluição que chegou. Primeiro foi a Buritirama e depois a Tecop. Tinha dia que a gente acordava com o nariz todo preto daquele pó. A gente varria a casa e era aquele monte de poeira preta. Se estendesse uma roupa branca no varal, já era”, relembrou.
O presidente da Associação de Moradores do Bairro Dom Manoel, Lúcio Negrão, disse que solicitou os resultados dos exames ao IEC, mas foi informado que os resultados serão entregues dentro de programação que ainda não foi divulgada. Ele contou que um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em 2015, foi firmado entre o Ministério Público do Pará, o Ministério Público Federal, a Companhia de Desenvolvimento Econômico do Estado do Pará (Codec), o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e a Companhia de Habitação do Estado do Pará (Cohab), para mediar o remanejamento e/ou indenização das famílias moradoras de Dom Manoel. “Faltam ainda umas 20 pessoas receberem a indenização. Sou uma delas”.
Níveis de chumbo
Em 22 de agosto passado, o Instituto Evandro Chagas (IEC) divulgou o estudo “Níveis de Chumbo no Sangue Humano e a Primeira Evidência de Exposição Ambiental a Poluentes Industriais na Amazônia” (publicado em inglês com o título “Human Blood Lead Levels and the First Evidence of Environmental Exposure to Industrial Pollutants in the Amazon”), que trouxe luz à desinformação sobre a poluição em Barcarena. A pesquisa consistiu na coleta e análise de amostras de sangue dos moradores de Dom Manoel (localizado entre 20 e 200 metros do Parque Industrial de Barcarena) e Laranjal (distante entre 3 e 5 quilômetros). As comunidades foram escolhidas por estarem próximas de possíveis focos de contaminação por efluentes industriais descartados, sobretudo pelas indústrias de beneficiamento mineral localizadas a montante, comprometendo os cursos d’água, o solo e o ar.
A pesquisa revelou que em Dom Manoel a população está ambientalmente exposta a chumbo, independentemente de gênero, tempo de residência e outros dados epidemiológicos. “No sangue, os níveis do elemento foram detectados em valores até nove vezes maiores que os resultados encontrados na comunidade do Laranjal”, atesta o IEC, apontando que no sangue dos moradores há nível médio de chumbo de 281,6 microgramas por litro, 12 vezes mais alto do que na Grande São Paulo, uma das regiões mais industrializadas do Brasil (média e 23,7 microgramas por litro). Entre os moradores de Laranjal, o nível médio de chumbo no sangue é de 32,8 microgramas por litro.
Conforme a pesquisa, “os níveis de chumbo em adultos de Dom Manuel foram até cinco vezes maiores que os recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS): 11,1% dos jovens, 26,3% dos adultos e 50% dos idosos tinham níveis de chumbo na faixa de 300 a 500 microgramas por litro, ou seja, cerca de três a cinco vezes o limite tolerável pela OMS, que é de 100 microgramas por litro em adultos”.
“Os níveis em crianças de zero a 10 anos atingiram 27,3% das crianças de zero a dez anos de idade apresentaram níveis de chumbo no sangue entre 300 e 400 microgramas por litro, cerca de 6 a 8 vezes mais do que o limite recomendado pela OMS no organismo humano infantil, de 50 microgramas por litro”, prossegue o estudos, assinado pelos cientistas Thaís Karolina Lisboa de Queiroz, Karytta Sousa Naka, Lorena de Cássia dos Santos Mendes, Brenda Natasha Souza Costa, Iracina Maura de Jesus, Volney de Magalhães Câmara e Marcelo de Oliveira Lima, e publicado na revista suíça International Journal of Environmental Research and Public Health. “Esta é a primeira evidência de exposição ambiental a poluentes industriais na Amazônia”, constatam os pesquisadores.
Combustível fóssil
Os cientistas observaram que a queima de combustíveis fósseis pode ser uma das causas para a contaminação por chumbo no bairro Dom Manoel. Em Laranjal os níveis foram considerados seguros. “O uso do carvão mineral, assim como do coque de petróleo (petcoke), também utilizados nas indústrias de Barcarena como alternativa energética, produzem quantidade significativa de materiais tóxicos, incluindo o chumbo”, sublinha a pesquisa. O estudo comprova que, mesmo tendo sido proibida a presença de chumbo em combustíveis desde a década de 1990 no Brasil, o carvão mineral continua sendo utilizado nas caldeiras das indústrias na cidade. “Combustíveis fósseis, como carvão mineral, emitem poluentes atmosféricos e geram resíduos e efluentes industriais com altos níveis de chumbo”, destaca o texto.
Em nota enviada à Amazônia Real, o Instituto Evandro Chagas informou que “os resultados do estudo ainda não consideram a análise de outros contaminantes”, e que os dados obtidos “não permitem identificar as rotas de exposição (água, ar ou alimentos), sendo necessários estudos mais aprofundados acerca da exposição ao chumbo”. Mas o estudo sugere acompanhamento dos moradores de Barcarena. “O IEC vem contribuindo com os órgãos de saúde e Ministério Público, no sentido de se delinear encaminhamentos que visem encontrar soluções para mitigar e/ou sanar o cenário observado até o momento”, acrescenta a nota.
O Pará é o segundo estado no ranking da exploração e refinamento de minérios no Brasil, perdendo para Minas Gerais. Em 2018, 88% das exportações estaduais vieram das indústrias de mineração e refinamento de minérios. Dados do Sindicato das Indústrias Minerais do Estado do Pará apontam US$ 276 milhões são procedentes da extração e do refinamento de ouro, níquel, silício, caulim e bauxita, os dois últimos refinados em Barcarena.
As indústrias mineradoras se instalaram no Parque Industrial na década de 1980. Entre 2001 e 2018, mais de 25 desastres ambientais ocorreram lá. Destes, pelo menos 21 podem ser atribuídos às indústrias de transformação mineral que atuam no município, que tem uma população estimada em 124.680 pessoas, segundo o IBGE.
No inquérito civil público que obrigou judicialmente as indústrias a providenciar água potável à população contaminada de Barcarena, a Justiça Federal citou as indústrias Albras Alumínio Brasileiro S.A. e Alunorte Alumina do Norte do Brasil S.A. Ambas participam da cadeia produtiva do alumínio e são de propriedade do grupo norueguês Norsk Hydro. Também foi citada a francesa Imerys Rio Capim Caulim S.A., que possuiu duas minas em Ipixuna do Pará, também no nordeste paraense, de onde vem o minério bruto beneficiado em Barcarena. Além dessas, ainda são listadas na ação a multinacional norte-americana e produtora de coque de petróleo Oxbow Brasil Energia Indústria e Comércio Ltda. (antes chamada Tecop – Terminal de Combustíveis Sólidos da Paraíba Ltda), e a Mineração Buritirama S.A., que produz manganês, entre outras.
A Imerys é considerada uma recordista em desastres ambientais do Parque Industrial. A empresa possui no local dez barragens de rejeitos instaladas, conforme registros no Sistema Nacional de Informações Sobre Segurança de Barragens (SNISB), vinculado à Agência Nacional de Águas (ANA).
Em 2018, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) formalizaram um Termo de Ajustamento de Conduta com a Hydro Alunorte – a maior produtora de alumínio do mundo –, após o vazamento da bacia de resíduos sólidos DRS1. Conforme estudo do IEC, as amostras de águas das comunidades ribeirinhas de Barcarena tinham níveis de chumbo, sódio, nitrato e alumínio, estando este último 25% acima do permitido para a saúde humana.
O que dizem as mineradoras?
A agência Amazônia Real procurou as mineradoras sobre os questionamentos dos moradores e o resultado do artigo científico. Em notas a Albras e a Alunorte não negaram ter utilizado combustível fóssil como fonte de energia na produção de alumínio, e prometeram fazer mudanças na matriz energética. A francesa Imerys Rio Capim Caulim negou utilizar combustíveis de origem fóssil, afirmando ainda desconhecer qualquer problema relacionado à contaminação por chumbo nos bairros vizinhos às suas instalações, em Barcarena. A assessoria de imprensa da Mineração Buritirama S.A. disse em nota nunca ter tido operações de mineração na cidade, mas “apenas atividades referentes à logística”. Procurada por telefone e e-mail, a Oxbow Brasil Emergia (também conhecida como Tecop) não retornou.
O Ministério Público Federal no Pará tem investigação aberta sobre a questão e informou que irá incluir a pesquisa do Instituto Evandro Chagas no procedimento que “acompanha as consequências da poluição nos territórios das comunidades tradicionais Acuí, Arienga, Bairro Industrial, Canaã, Curuperé, Dom Manoel, Ilha São João, Maricá e Pramajó, localizadas em Barcarena/PA, em razão da implantação do complexo do Distrito Industrial de Barcarena/PA)”.
Sobre o inquérito civil público que em 2015 pediu judicialmente as mineradoras a providenciar água potável para a população de Barcarena, o MPF explicou que o processo foi enviado à Justiça paraense e aguarda decisão. Na prática, significa que Dom Manoel não recebeu, até o momento, o sistema de abastecimento permanente de água potável das mineradoras, o que impede os moradores de retornarem às suas casas, como desejam.