A travessia inacabada

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Por Patrick Mariano, publicado em Justificando  – 

Em 10 de dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade entregou nas mãos da então presidente Dilma Rousseff o seu relatório final em que determinava ao Estado brasileiro a responsabilização de 377 agentes que cometeram atos de violação aos direitos humanos durante a ditadura militar. Recomendava entre outros, a revogação de leis como a Lei de Segurança Nacional, dado seu evidente cariz autoritário.




Depois da conclusão dos trabalhos não se ouviu mais nada a respeito, tanto da parte de Dilma, muito menos de Temer. Dois anos se passaram, ninguém foi responsabilizado e a democracia sofreu mais um golpe contra a vontade popular. Em um dos protestos ocorridos em Brasília contra o nefasto plano de destruição dos direitos sociais por parte do governo golpista, a Lei de Segurança Nacional foi lembrada por delegados para enquadrar manifestantes.

A prática da tortura por agentes do Estado não é apenas memória, mas realidade vivida em milhares de delegacias contra os pobres, negros e jovens. É realidade, também, nos porões da república de Curitiba, quando prisões são decretadas sem qualquer fundamentação, apenas para obrigar delações.

Há poucos dias, o Brasil foi condenado por escravidão contemporânea e tráfico de pessoas. O Estado brasileiro terá que indenizar cada uma das 128 vítimas resgatadas durante fiscalizações do MPT na Fazenda Brasil Verde, sul do Pará, nos anos de 1997 e 2000.  Nessa fazenda, mais de 300 trabalhadores foram resgatados, entre 1989 e 2002. Segundo a Corte, o Poder Judiciário é cúmplice da discriminação desses trabalhadores escravizados.

A trágica situação carcerária que agora expõe suas vísceras é culpa de juízes irresponsáveis que julgam com parâmetros da época de regimes autoritários, dos meios de comunicação irresponsáveis e fascistas que estimulam e exigem o aumento constante do punitivismo, de uma classe média tomada pelo vírus da fascistização e de governantes omissos e pusilânimes, nisso incluindo os de centro e esquerda que passaram pelo Executivo. O sangue daquelas pessoas está nas mãos de todos.

Leio no Estadão que uma das primeiras medidas do prefeito João Dória foi colocar telas para separar pessoas em situação de rua do restante da cidade, como se já não fosse bastante a separação cotidiana da indiferença movida pela nossa própria insensibilidade.

As telas da avenida 9 de julho são os novos monumentos vivos da elite paulistana e representam um ódio secular aos pobres. É o mesmo ódio que estampa as estrelas no uniforme da Polícia Militar em homenagem aos bandeirantes e ao massacre de Canudos.

Dória, faz valer a máxima da canção de Belchior: “os tratam como gente – é claro! – aos pontapés.”

As ações de busca e apreensão coletivas em bairros pobres são resquícios da quebra das regras estabelecidas em pactos normativos e políticos que deveriam ter algum valor, ainda que apenas como referencial ético para a sociedade.

Perdemos várias oportunidades para recompor a verdade histórica, refletir profundamente sobre os períodos trágicos da nossa história e superá-los, ainda que com nódoas não cicatrizadas, porque há aquelas que não serão jamais, mas, com isso poderíamos evitar muitos nossos dissabores atuais.

A travessia entre as sombras da ditadura e o amanhecer da democracia nunca ocorreu completamente e, se em alguns poucos momentos poderíamos ter alguma convicção que estivéssemos todos quase ultrapassando a metade do caminho, noutros temos a sensação de que caminhamos pouco para além da sua margem.

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O ar mais fresco que se respirou pela América Latina com governos progressistas e anti neoliberais durou pouco mais de uma década. Alguns aproveitaram para mudar legislações e constituições, outros nem tanto. Em geral, todos conseguiram um pouco mais de justiça social. Isso serviu, no entanto, para iludir parte da esquerda e a fez pensar que fosse possível ocorrer transformações profundas, sem desestruturar alguns alicerces do capitalismo. Ou, talvez, para ser mais exato, nunca quisessem mesmo transformações mais profundas.

No entanto, o espectro autoritário estava sempre ali rondando, esperando a melhor hora de contra atacar. Ilusoriamente, chegou-se a acreditar que apenas a democracia e a vitória eleitoral poderia estancar processos profundos de autoritarismo. De fato, a eleição de governos progressistas no início dos anos 2000, fez refluir a sanha neoliberal que batia à nossa porta, mas uma vez reestabelecidas e recompostas as suas forças, não titubearam em destruir como um castelo de cartas o poder do voto e instalar governos marcados pela indigência moral e entrega total dos direitos sociais e do patrimônio público aos interesses privados.

A campanha sórdida de estimular o ódio contra políticos e símbolos da esquerda colhe agora seus frutos adoecidos, cancros disseminados que irradiam da política para a relação entre as pessoas, destruindo a alteridade e solidariedade.

Infelizmente, 2017 será ainda pior que 2016, mas pelo menos a passagem pode ter servido para reflexões e tentativas de mudança internas e coletivas.

Uma vez perguntaram a Leonardo Boff qual a melhor palavra para representar deus. Disse ele, entusiasmo. A palavra significa, traduzindo do grego, ter deus dentro de você. Diante de tudo isso, é preciso resgatar o entusiasmo e a perseverança, porque a história, apesar de Fukuyama, ainda está aí para ser edificada. E não há outro caminho para fugirmos da barbárie que não o socialismo. E no ritmo que as coisas andam, barbárie se tivermos sorte.

Patrick Mariano é escritor. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.

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